A Roda
O ar é límpido. Sinto-o nas narinas, como a deixar-me
viva, sem me faltar, sem me sufocar. É tudo claro: a água do lago e as nuvens,
o cão branco que rasga a terra em fúria. Como se todos os tons, todas as cores,
se fundissem numa só: aquela. Não posso dizer que é fria, como já uma vez foi.
Ou áspera, naquelas memórias que fazemos por esquecer. Rodeia-me uma
luminosidade que não me choca, que eu não temo, que só eu vejo. É só minha,
pertence-me. Só eu a percebo no meio da tralha do apartamento, na sombra das
árvores do condomínio. Só eu vejo o encanto e saboreio.
A vida tem muitos tons. Variam quando nela mergulhamos
aos quinze ou aos cinquenta anos. Observamo-la de perspetivas e ângulos
diferentes. Também dela nos alimentamos com um entusiasmo e calor em nada
semelhantes.
Parece muitas vezes rápida, muitas vezes lenta, tantas
vezes desinteressante, principalmente quando a comparamos com a vida dos outros
que nos rodeiam. Mas isso não é verdade:
temos estórias para contar, estórias que não contamos e estórias que ainda não
aconteceram. Somos estória, fazemos estórias. São dramas e alegrias, segredos e
orgulhos feridos ou partilhados, todos fios do mesmo novelo que enrolamos e
desenrolamos, cortamos com incansável labor.
Todos pintamos. Somos pintores de um quadro
interminável em que há sempre algo a acrescentar, a modificar: carregar um
pouco mais aquela cor, suavizar ou matizar aquela imagem. Também tecemos e
bordamos, tricotamos diferentes momentos que desenham puzzles, loucuras.
Desenleamos os nós, pesadelos, ou tentamos, misturamos tudo, mais ou menos, ou
nada. Construímos, destruímos, refazemos. Agora um cachecol colorido com
desenhos de outros, depois uma camisola à medida de nós mesmos, ainda uma outra
peça que queremos. Às vezes não. Escolhemos o modelo ou nem tanto. Vivemos.
Fingimos. Amamos. Morremos. Renascemos.
Tudo é
possível. Tão possível como o momento, agora, este.
Maria Luís Koen
thank you O. Amador and Mª João R.
Parte
I
1.
ROBERTA
Setembro. Está
sol.
Olhamos ambas
através dos óculos escuros. Há gestos sinuosos que nos dizem ser aquele um
encontro entre amantes e não entre namorados. Rimo-nos da nossa conversa sem
maldade, incomodamos o casalinho que nos olha de soslaio e, secretamente, ambas
desejamos ser ela, naquela mesma situação: a que recebe o presente de amor. O
mar fustiga-nos com aquele cheiro afrodisíaco, mas pequenos goles do fino
relembram-nos que estamos ali e só ali. Conversamos por entre tremoços gelados,
sem perdermos um gesto ou um beijo ou um olhar mais quente vindo do par nosso
vizinho. Que bom sentir aquele sol, ouvir aquele mar, receber aquela luz,
aquele amor! Habituámo-nos a esta conversa mensal, sempre ao som das ondas, às
vezes da música serena do bar, num doce e calmo entrelaçar de palavras, tantas
vezes as mesmas, sobre nós e as nossas vidas. O vento vem muitas vezes
sussurrar, ouvimos, por vezes nem falamos muito, não é preciso. A idade, a
amizade, ensinou-nos a amanhecer ou entardecer pacientemente, a suspirar, a
calar.
O bar do Zé do
Peixe é todo o ano visitado : o peixe é bom e fresco, a música agradável, as
bebidas sempre a saber ao que queremos. O Zé é calmo, embora brejeiro no trato,
sempre disponível para uma boa gargalhada ou uma piadinha mais seca.
Conhece-nos e quando ligamos para saber se é preciso marcar mesa, responde que
para nós há sempre lugar reservado. Havendo sol, ficamos numa mesa lá fora, nas tábuas castanhas e compridas da
esplanada; se frio e chuva, ficamos lá dentro, com os vidros molhados de gotas
doces e de mar... mas sempre sem falhar, como se de um ritual secreto se
tratasse – o de estarmos as duas, Roberta e eu. Amigas de infância, durante dez
anos perdemos o contacto mas, uma vez o reencontro, num café de esquina onde
nunca entráramos antes, mera coincidência não sei, não mais parámos. Roberta
agora casada, mas sempre magra. Roberta agora mãe de filhas, mas sempre criança.
Roberta agora nos quarenta, mas no olhar intenso, no corpo e na postura uma
mulher de trinta, aquela que sempre conhecera: alegre, comedida, tímida na sua
beleza latina. O casal do encontro levanta-se. Quem será ele? E ela? Que paixão
escondida partilham? Que história de amor não podem revelar? Roberta recomeça a
tagarelice, ri, fala das filhas, da escola, dos sobreiros, dos penteados das
miúdas, da azáfama do dia a dia. Do Rafael. O homem que com ela partilha os
suspiros e os desejos.
- És feliz Ana?
És feliz Ana.
A pergunta entra
e não para: Ana, tu és feliz?
És feliz?
És feliz?
Olhamo-nos nos
olhos. O mar fustiga-nos as narinas. Não consigo responder. Uma mordaça
invisível impede-me de responder.
Sou feliz?
A cerveja já não
tem bolhas, vejo de novo o poço escuro, as promessas não cumpridas, os olhos
tristes que me olhavam já sem desespero, numa desistência calma, do que não tem
remédio, e agora não sei, não sei se sou feliz.
Porquê esta
pergunta ao fim de tantos encontros mensais? Porquê esta e não outra qualquer?
Eu não sei se sou feliz. Tenho medo de me perguntar, de analisar, de buscar a verdade, a resposta.
Vejo-me em direcção ao quarto branco, lentamente reparo nas folhas caídas do
diário, nas fotografias que escondo dentro da caixa fechada a cadeado,
amarelecidas, gastas pelo uso dos meus olhos, penetro nos detalhes das imagens
que visualizo, distantes, o vestido branco, uns discos de que me lembro
vagamente, umas músicas a bailarem no vácuo das lembranças - na cabeça um labirinto de incertezas, a chuva
ou as lágrimas a molharem um qualquer jornal esborratado, a cama vazia, a dor
do não-precisar-de-ninguém. Também os cheiros a mogango com açúcar amarelo, as
narinas abertas ao aroma do café escuro, fumegante, e a chuva a bater sem
parar, sem parar, na solidão dos cigarros fumados sempre da mesma forma. O
último suspiro. Fugir é mais fácil, fugir à perda, à invasão do deserto, ao
pensamento do que foi, ao contacto turvo do passado.
Deixei que os
olhos negros de Roberta me trouxessem de novo à realidade, me afastassem da
tristeza congelada, da crueldade do tempo e que mergulhassem nos meus, que os
ouvidos voltassem, lentamente, aos sons da esplanada, que a sua voz suave me
encaminhasse do passado ao presente:
- Não respondes
Ana? És feliz ou não? Porque eu não sou. Tenho tudo e não sou feliz. Tenho
dinheiro e marido e casa e duas filhas maravilhosas e um bom emprego. Mas não
sou feliz.
Parecem-me pedras
no charco. O azul do céu fica mais escuro, impressão minha, as ondas revoltosas
de repente. A música continua a tocar e eu não sei se ouvi ou não, se percebi
bem. Parecem-me palavras sem sentido, as dela, fico doída, o azul esborratado do
mar a tolher-me, devagar, e o sol que se esconde a um canto. Mas penso que sim,
os meus olhos fixos nos dela, penso que sim, que este, afinal, é um dia em que
não podemos fugir, de nós, do que nos pesa, da nossa angústia escondida, da
fuga que nos assusta ou da falta, da tremenda falta do que queremos. Estou
encharcada das pingas de infelicidade de Roberta, a bela.
“When I’m feeling blue... I can
hear your heart beating...”, a música continua a tocar...
2.
JOANA
É Domingo, outra vez. Acordo sozinha como sempre. Gosto
do meu pequeno apartamento, decorado em tons brancos, com uns salpicos de cor
aqui e ali. Adoro a varanda larga e comprida, em u, de onde, um pouco ao longe ou do alto, é
certo, vislumbro o azul da piscina que quase sempre me faz lembrar o mar. O
suficiente para me acalmar quando acordo com pouco alento ou quando me sinto
sozinha ou um pouco mais deprimida. A culpa é dele, era sempre ele que, já na
caminhada sem retorno, me fazia sentir
assim, despida, crua, raivosa, retalhada das mentiras que dizia e que disse até
ao fim. Está tudo bem, sim não te preocupes, eu vou ganhar a batalha. O culpado
do tédio era ele, do bocejo nas esplanadas poeirentas e, agora, das memórias
que não param de me assolar, de me amargar, numa montanha infinita de sensações
desavergonhadamente frias, como a água, como o sem sentir dos objetos que me
rodeiam, assim, ocos, parados, desiludidos. Canso-me deste sentimento frio,
desta incapacidade de alegria, deste gelo nos joelhos. A água, essa que me lava
os copos vazios, que me transforma numa fresta de uma janela, essa, tem a
capacidade de quase me purificar, defender das energias menos positivas que
carrego, que odeio, que me embaraçam. Quando os meus olhos estão vazios, o tapete
rasgado, a folhagem seca, e tudo é definitivamente pouco interessante, mergulho
na água quente da banheira, ou fixo o olhar na piscina azul escura do
condomínio. Vejo-me de novo no mesmo sonho, no jorro quente do nascimento, na
água morna que me aplaca a dor, sabendo que não estou sozinha, que outra vem
atrás de mim, no mesmo jorro, na mesma água morna, no mesmo desejo de luz, que
só uma acaba por ver. Aí, recordo a minha tia que, sempre que me julgava de
olhos mais cinzentos, buscava uma taça com água límpida e, depois de alguma
reza e uns pingos de azeite, benzia e afastava o mau-olhado de que, segundo
ela, eu estava carregada. Calçava sapatos de pano branco ou botins brancos, um
horror, falta de gosto, mas não podia dizer, ela não gostaria e trazia-me sempre
flores, alento, muitas vezes dúvidas sobre o que eu sentia e vivia. Sempre que
vinha a minha casa, libertava-me da ansiedade, nunca duvidei dos seus poderes,
do anel que carregava no dedo, da lanterna que eram os olhos dela. Colocava,
dentro de um copo alto, liso e transparente, água até chegar a dois dedos da
borda, misturava sal grosso, que ia buscar à cozinha, e recomendava uma e outra
vez:
“Deixa sempre o copo atrás da porta da entrada
principal da tua casa, filha. Vinte e quatro horas depois, tens que deitar fora
a água que sobrou e o copo pode ser usado novamente, mas, não te esqueças, o
copo tem que estar bem limpo e a água também. Isto, minha filha, para afastar
os maus fluidos e os invejosos que entrarem na tua casa”.
O condomínio é sossegado, calmo, redondo, rodeado de
espaços verdes com uma pinta azul no meio, que o purifica. Não é o pântano que
muitas vezes vejo de noite quando acordo meio sonâmbula, ávida de algo que me
falta, esfomeada de sentir o que não sei e quero. Às vezes parece o paraíso,
como eu o imagino, o cheiro a jasmim e a ervas pelo ar, os anjos esvoaçando
brancos e brilhantes, a regar a secura do meu peito. Aí quase o sinto sagrado.
Não foi essa a opinião da minha tia quando me visitou pela primeira vez. Disse
até que não devia ter comprado ali apartamento ou coisa alguma. Que os fluidos
eram maus e que isso me traria desordens de caráter físico, a mim e a quem
aqui vivesse. Dizia que os ambientes eram turvos, com um pulsar desordenado e
que as folhas não estavam tão brilhantes quanto deveriam. Afirmou os fumos
negros que só ela via, as moscas fedorentas, sinal de azar, o odor a fruta
podre de quando se está a morrer. Não contente com estas afirmações, não esteve
com meias medidas, foi ao carro buscar a prenda que tinha escolhido para mim
por ter uma nova casa: uma linda pimenteira de tons amarelos e vermelhos, que
colocou do lado direito das grandes janelas, certa de que captaria todos os
maus fluidos que a casa tivesse e eu, de tal facto, teria a certeza se a dita a
qualquer momento secasse.
…
Foi uma sorte ter olhado para os anúncios do jornal da
terra nesse dia, que é coisa que nunca faço. Anúncios descartáveis, como as
cartas que me escrevias quando estavas longe. Agora já não escreves, já não me
deixas inquieta de tanta espera. Quando quero, sei que estás sempre ali,
fechado, naquele canto, naquele lugar para onde todos vamos um dia. Mas nada
acontece por acontecer: os sentimentos, as pessoas, as emoções, as paixões, as
bebidas que tomamos juntos, os filmes que alugamos, o nada que me deixaste, os
cacos de felicidade deitados no lixo. Acasos proibidos, ilusões.
Nesse dia, folheei sem objetivo as páginas do jornal,
sentada no sofá, o cinzeiro cheio de beatas malcheirosas de uma ou muitas
noites mal dormidas, como quando era feliz e esperava que tu viesses, limpa e
calma, a casa a cheirar a comida e a bolo de chocolate. Mas agora não, agora as
taquicardias deixaram de me preocupar, não tenho mais as unhas roídas,
afundo-me na ansiedade do dia a dia, do casa-trabalho, do quotidiano feio e sem
chama, as olheiras fundas de um cansaço que vem de dentro. No sofá, reparo em
letras mais gordas:
Vendo apartamento T2 no Condomínio da Roda
Excelente localização
2 quartos, armários no W.C. e cozinha, 1 lugar de
garagem, sistema automático no portão principal e nas entradas, madeira na sala, 5 anos de uso, único dono.
70.000,00.Euros
Contacto:
Isaac Azenha – 915 904 481
Localidade:Évora
Quartos: 2 quartos
Lugar de garagem: 1
Unidades por andar: 2 por andar
Área (m²): De 60 a 90m²
Valor de Condomínio: 70 euros
O imóvel possui: Armários no
W.C e cozinha, pré-instalação de ar condicionado e lareira na sala
O Condomínio possui: 2 court de ténis, piscina
exterior, sauna, banho turco, espaços verdes, garagens na cave, elevador,
portas com controlo automático, estacionamento exterior
Contacto: isaacazenha@hotmail.com
Durante todo o dia “A Roda” não me largou nem sequer
no consultório. O nome agradava-me, o preço também era bom, não podia deixar
escapar esta oportunidade de sair do local onde vivia no momento, que me
sufocava, me prendia, me deixava em insónias permanentes, que pareciam
espinhos, picos, arestas encontradas em feios barracões das quintas. O nome do
contacto também me trazia reminiscências positivas dos tempos em que Roberta e
eu conversávamos ininterruptamente ao longo da ribeira e em direção às
azenhas. Dizíamos tudo sem vergonha ou pudor, os sentimentos mais descarnados,
o amor de um só dia ou noite, a estranheza da solidão que existe no campo, a
vontade de construir não sei o quê, de destruir as rejeições, os quotidianos
dramáticos, o prazer artificial. Depois despíamos a roupa e mergulhávamos na
ribeira fresca, em risadas de alegria e cumplicidade.
Não é que não gostasse do local ou da pessoa com quem
atualmente partilhava as despesas, mas desejava muito ter o meu próprio
espaço. Outro espaço. Aquele em que me sentisse livre. De memórias, de
segredos, de vivências. Longe de recordações amargas, de recordações felizes,
de perdas ou loucuras. Sei que nem sempre era a companhia ideal e gostava de
uma certa solidão ou calma, sem
intromissões de qualquer espécie, o que se tornava difícil, dividindo o espaço
com uma pessoa tão extrovertida, constantemente a trocar de namorado - que
fazia questão em me apresentar - como a minha companheira de casa. Além do
mais, o nome deste contacto não me era totalmente estranho, mas não sabia bem
onde, ou da boca de quem, o tinha ouvido.
Quando saí, às nove, chego à antiga casa que partilho,
agora, com a interna de medicina e, já
no quarto, ligo ao senhor Isaac Azenha, combino para o dia seguinte a visita ao
dito apartamento. Daí à compra é um mês, que o dono queria vender, sem
especificar qualquer razão, apenas que queria vender. Estranhei, mas o espaço
acolhedor, o fim da tarde, o azul límpido da piscina, o cheiro a flores e a
verde já seco, a setembro, o sossego do local, foram suficientes para não
perguntar coisa alguma.
Vendeu.
(Artista: Malcolm T. Liepke )
Na varanda larga e comprida tenho, ao meio,
três vasos de barro, grandes e redondos, com malvas vermelhas cor de sangue e
daquelas cor de luxúria e brancas também, misturadas em arrufadas que não me
dão muito trabalho e, ainda, uma pequena mesinha em verga verde escura, com duas
cadeiras redondas, também em verga da mesma cor, com almofadas grandes e fofas
onde, por vezes, durante a primavera ou verão, tomo o pequeno almoço ou, nas
noites quentes, uma cerveja gelada. Da varanda partem grandes janelas, em todo
o comprimento da sala, que criam luminosidade e ar também no inverno, enquanto
no outono, deixam antever com facilidade as nuvens escuras que se aproximam no
horizonte, cheias de água ou granizo em dias de trovoada. É na sala que gosto
de me estiraçar no sofá, de andar descalça, escrevinhar umas notas ou analisar
os casos para o dia seguinte, ler. E é na sala que também gosto de praticar
meditação transcendental, técnica que ao longo dos anos me tem trazido grandes
benefícios. Na sala e em qualquer lado. Ao contrário do que muitos pensam,
meditar não é pensar, refletir, analisar, compreender, mas sim o oposto, é calar
o que nos vai na mente e na alma, o que nos persegue mesmo sem querermos, isto
é, é conseguir obter uma total calma interior, uma absoluta ausência, mesmo com
os pensamentos que teimam em aparecer,
mesmo com os sons exteriores que nos assaltam. Difícil. Viajar de fora para
dentro da nossa consciência é um caminho que aprendemos a trilhar com esta
técnica. Não pensar nas vertigens alucinadas, não perguntar as coisas boas que
vivemos, o vago que é, agora, sentir tudo e depois nada. Só assim me aquieto.
Relaxo a mente e o corpo. Só assim me compreendo e me liberto. Só assim, passo da superfície agitada do oceano dos
meus dias, à calma que me oferece a sua profundidade.
Maria Luís Koen
Artista: João Alfaro
Ontem fui à festa de despedida de solteira
da Joana. Joana, a louca. Trago do frigorífico um copo de leite frio, não me
apetece comer nada. Não estou desesperada, não estou nada. É esse o problema,
esta lucidez do nada de especial, do ninguém em particular, este lamurio
contínuo do que não se tem, este caroço na garganta, que não passa. A visão da
piscina redonda e azul lembra-me férias e descanso, fantasias e cansaços. Pouso
o copo na mesinha verde da varanda, sento-me agastada. É bom estar aqui. Acho
que ontem bebi demais… Tenho um fraquinho por gin tónico e abusei. É mesmo bom.
A minha casa é a minha concha, a minha proteção, embora não consiga tirá-lo da cabeça. Já
passaram cinco anos e às vezes não durmo, a cabeça cheia de teias, memórias
perdidas, andando pela casa até de madrugada, agulhas finas que se espetam, que
magoam, difíceis de controlar. A escuridão dos óculos escuros, o cheiro do
cemitério, a outra a chorar como eu. Há barulho na piscina, a que eu chamo, com
alguma ironia, o meu lago. Um lago azul de onde partem ou chegam vários
caminhos, mais precisamente oito, que levam aos diferentes apartamentos do
condomínio redondo, como se de uma roda gigante se tratasse. Do lago chegam
vozes de brincadeira, salpicos de alegria que condizem com o espaço. Fecho os
olhos, saboreio o momento vivo, não tenho saída, não quero beber demais, não
vale a pena arranjar uma razão à pressa para viver, para ser idiota em querer
encontrar o verdadeiro amor, aquele que é eterno. Não existe, é história de
príncipe encantado, cavaleiro montado em corcel branco. Suspiro com um certo
desgaste, como nos dias em que não há trabalho e que, ainda assim, nos sentimos
pesadas. Um peso doentio, que nunca deixa saudade, um pó que custa a limpar, um
vazio de nada querer, nada fazer, nada poder.
Começo a estar cansada das festas de
despedida de solteira da Joana. Esta é a terceira, mas não é o terceiro
casamento. Nem sequer o primeiro e não sei se ela vai ficar por aqui. Quando me
telefonou nem imaginei que fosse mais do mesmo:
- Ana, a minha festa de despedida de solteira
é no próximo Sábado, no “Arriba”. Aparece
cá em casa por volta das dez da noite. Depois conto, aparece.
A Joana sempre me conseguiu surpreender com
as suas maluquices. Boa advogada, independente, mas com dois terríveis defeitos:
falar demais e adorar homens. Sim, sempre procurou conquistá-los mas,
conseguido o feito... acabava o romance, o amor, como ela diz. De facto, nunca entendi
bem este lado tão exageradamente sensual de Joana.
“O que queres, Ana? Não consigo evitar,
aqueles olhos verdes ... aquela boca ... aquelas mãos ... quero tudo para mim, por
toda a minha vida. Este é o tal, Ana.”
Quantas vezes ouvi estas palavras ou similares?
Sorrio. A Joana não é bonita. É cor de chocolate de leite, baixinha e um pouco
roliça, mas tem um charme e uma sensualidade felina que põe de lado qualquer
mulher. Quando ela anda, eles olham. E quando ela fala... não conseguem evitá-la. Um perigo ambulante, como gostam de me confidenciar. “Quando casar aquilo passa”, dizia-me em
segredo a avó. “Eu também era assim. Até que conheci o meu homem e me perdi de
amores por ele. Aos quinze anos fugi para a mata para me encontrar com um rapaz
de quem muito gostava e só parei quando, na Praça, um homem me deu tal encontrão, que deixei cair as maças. Foi fulminante, filha. Tiro e queda. Até ao dia em que ele morreu não quis outro homem”. O avô de Joana não era
homem pobre, a herdade onde vivia era grande como ele, como a vontade dele, as
viagens e as mulheres que tinha sem conhecimento da esposa, pensava ele. Mas a
avó de Joana sabia. E sofria. Minguava a
olhos vistos, mas sorria. Anos e anos sorriu e dormiu com ele, amou-o cheia de
dor, de desespero, de raiva. Amou-o de solidão, amou-o até um dia, seca de
paixão, ele morrer. Talvez que a Joana tivesse herdado essa costela passional da
avó, do avô as inúmeras paixões descartáveis, consideradas mais masculinas do
que femininas. Por isso, era muitas vezes criticada, em especial por colegas
invejosos ou por mulheres mal amadas, mas ela somava e seguia. Como me dizia a
avó: “Enrolados num cordel chegam até
Portel!”. Já teve namorados e noivos de todos os géneros e feitios. Mas todos com um denominador comum: sempre engenheiros. Poderia chamar-lhe fetiche e, quando abordo
essa questão, ela ri e diz que não sabe a razão de tal tendência. Talvez porque
goste de números, opostos a uma carreira de letras, como a dela. Para não
variar, o futuro marido é engenheiro. Não, não sei como ela os conhece, só sei que se apixona por eles e depois os deixa.
(continua)
...
Gostei do Miguel. Não senti qualquer agressividade relativamente a ele. O meu coração não se
engana. Fiquei até com uma pontinha de inveja… mas namorado de amiga é sagrado!
Do gostar, da pontinha de inveja, passei rapidamente a um sentimento de pena. Pena
dele. Quem diria? Pena que as janelas se fechem, que a toalha branca do chá
fique manchada, que a planta morra sem água. Que o lume se apague. Que oiça o
barulho das cordas na madeira, a terra a bater, seca. Mais um para a fogueira
de vaidades da Joana, pensei. Que fazer para ajudar aqueles lindos olhos verdes
sem trair a minha amiga ? Não é que não tivesse vontade mas… Não, não. Vou ficar quietinha no meu canto. Afinal solidariedade feminina é solidariedade feminina.
Quase
meio-dia e ainda nem banho tomei. É Domingo e não tenho nada de especial para
fazer. Estava esquecida. Dentro de
meia hora a Joana vem buscar-me. Combinámos um almoço com a Júlia no “Froscas”. A Joana não tem emenda
mesmo... Logo no “Froscas”... O dono do restaurante foi amante dela... E que
amante! Palavras dela, não minhas. Vou arranjar-me. Não vejo a Júlia
desde que me telefonou para o consultório. É raro isso acontecer. Pressinto que
ela quer dizer-me algo de importante. Talvez seja só uma intuição errada. Ou
não. Como a do vaso que se partiu naquela madrugada, tal velha da aldeia,
sempre de preto, a chorar o marido morto. Era Domingo de manhã, os sinos tinham
tocado, o ar não tinha movimento e o meu coração sabia que era o dia, a hora, o
momento. Perde-se tudo de repente.
(continua)
Maria Luís Koen
3.
JÚLIA
O “Froscas” é um restaurante típico, bem
situado, numa zona central da cidade, famoso pelas suas noites de fado e de
canções, às vezes modas, nunca esperadas, vindas de quem lá aparece para comer.
É discreto na decoração tipicamente alentejana e também discreto na iluminação
e até na loiça que usa, toda de barro. Tudo está sempre bem confecionado, a
doçaria é excelente, os empregados q.b. de simpatia. Foi comprado pelo
engenheiro Ruivo, homem moreno, com bigode muito português, por quem a Joana se
apaixonou numa noite de comes e bebes depois de um caso que no Tribunal lhe
dera muito trabalho mas que acabara por conseguir a favor do seu cliente. O
Ruivo, como tantos outros, não conseguiu resistir ao charme um pouco sensual e
louco de Joana e, nessa mesma noite, depois de várias ofertas da gerência da
casa, acabaram os dois na mesma cama e no seu apartamento. O romance ia de vento em popa e, uma semana após a festa de despedida de solteira da Joana, toca o telemóvel - era o Ruivo. Como explicar a um homem, português de
bigode, machista o suficiente, para quem as mulheres são seres frágeis e difíceis
de entender, pertença do macho e apenas isso, os medos e as paixões de Joana?
Vamos no carro, um Audi A4 azul escuro, e
ela não para de falar. Embora se diga que a mulher fala muito mais do que o
homem – divago - de qualquer forma, e sem abordar um tema especifico, nos
Estados Unidos onde fazem estudos sobre tudo e mais alguma coisa, um professor da
Universidade do Arizona investigou esta questão. Também no México, um grupo de
psicólogos decidiu saber se é de facto verdade que a mulher fala mais do que o
homem. Curiosamente ou não, o estudo veio provar que esta “tese” está errada e
que, na verdade, há apenas uma diferença de sete por cento no que respeita ao
número de palavras ditas pelos sexos masculino e feminino. Ora um tal número é pouco
ou nada relevante em termos estatísticos. Joana não entrou nos referidos estudos,
é certo, e a verborreia continua: casos do tribunal, pessoas que não conheço, dramas
dos clientes, uma qualquer associação que quer formar, do vestido que vai
comprar – Achas melhor branco ou creme, Ana? - da boda, do apartamento do
Miguel e da mobília dele que ela detesta, do avô que está quase morto e só
pensa em mulheres, da avó que doentiamente só pensa nele. Uma grande mistura de
palavras, personagens, temas e situações, que formam um grande novelo
emaranhado, um todo sem nexo à primeira vista, mas que acaba por tecer um
estreito fio conducente a uma teia cada vez maior, de que faço também parte,
mesmo sem querer. E o ciclo vai-se repetindo, situações que já vivi,
sentimentos que já partilhei, coisas em que já acreditei. Ela fala sem parar e
eu não sei, não percebo este rumo, não acredito neste amor de que ela fala, nos
sentimentos sem um fim, na felicidade sem limite. E as palavras dela batem no
meu destino, que não sei qual é, talvez até saiba, na minha luta íntima, do que
esperei e não consegui. Do que esvoaçou e perdi.
-Tu decides, Joana. Da última vez dei a minha opinião e não houve casamento. E, já agora, porque vamos ao Froscas? Achas que o Ruivo vai ficar contente por te ver? Sabendo
que vais casar e que o deixaste há seis meses sem uma explicação que se
perceba?
Eu sei que não sou bonita como a Roberta,
nem sensual como a Joana, ou inteligente como a Júlia, mas… de todas as minhas
amigas sou a única com um pingo de bom senso. Daquele bem seco, sabido,
conhecedor de ratoeiras, e de almas podres, bafientas, sujas e tristes. E o bom
senso diz-me que ir almoçar ao “Froscas”, neste Domingo com cheiro a trovoada,
não é uma boa escolha. Ana, a intuitiva, a falar. Tenta compreender em vão pois
Joana já combinou e reservou mesa em nome da Dra. Júlia Ribeiro, brilhante Juíza
da terra.
Que diferente era a Júlia dos tempos do
Secundário – demasiado tímida para se expor, demasiado introvertida para falar
em público. E agora…
Júlia foi e é uma grande admiradora da
Dra.Ruth Garcez, a primeira mulher juíz de Portugal. Por tanto a admirar, decidiu-se
por frequentar Direito e depois ingressou no curso de formação inicial de
magistrados, ministrado pelo CEJ - Centro de Estudos Judiciários, optando pela
Magistratura Judicial, ao contrário de Amélia que optou pela Magistratura do
Ministério Público. Sempre que a vejo sinto-me pequena. Júlia é brilhante e inteligente. Os olhos azuis, ora claros ora escuros, dizem tudo. Fala
rapidamente e o tom de voz, apesar de calmo, é objetivo e incisivo. Tem uma
vida boa, alguns sobressaltos, nada que não consiga superar, e três filhos adolescentes
lindos. Às vezes fico a pensar como seria bom se eu tivesse filhos. Sobrinhos não é a mesma coisa. Será o relógio biológico?
(continua)
Maria Luís Koen
...
Joana estaciona o carro e, às oito em ponto,
entramos no restaurante. Reparo que o olhar dela brilha e que, disfarçadamente,
procura alguém que não está. Júlia acena da mesa onde se encontra sentada. Não
parece ter cinquenta anos. Os olhos, hoje azuis escuros, condizem com o
conjunto turquesa e sorri. Escolhemos vinho da Herdade do Esporão e carne
grelhada. A conversa caminha e salta por temas diversos, uns mais, outros menos
fúteis, desde a atualidade política, a casos ligados à profissão, passando
pelo apartamento que Júlia comprou depois da separação, do tempo que levou a adaptar-se
à nova situação de divorciada, à falta de alguém com quem conversar e
partilhar, da solidão, do sofrimento calado, dos medos que a assolaram, do frio
nas costas quando se deitava do mesmo lado da cama, nunca ao meio ou do lado
onde ele dormia, das reações diferentes dos filhos e como conseguiu que estes
passassem pelo divórcio de um modo o mais pacífico possível, do tempo que
demorou a recompor-se do golpe, de como se colou à nova vida de solteira, terminando
no assunto principal: o casamento de Joana. Afinal a madrinha é a Júlia e há
certos pormenores que elas gostam e querem discutir. Na verdade, nem sei porque vim também. Teria ficado melhor em casa mas, por outro
lado, quando estamos juntas estamos bem, sentimo-nos mais fortes, mais
apoiadas, mais seguras, e acabamos por
nos habituar às singularidades e diferenças umas das outras. São estas que nos
aproximam. A conversa aborrece-me um pouco e acabo por divagar, durante
segundos apenas pois Júlia não resiste:
- Por favor Joana, casa com separação de
bens. É o melhor que tens a fazer. Repara no que aconteceu comigo. Ele, com as suas míseras traições, levou-me metade de tudo o que era meu.
- Não significa que aconteça o mesmo com a Joana,
digo, ou que os homens sejam todos iguais.
Mentira descarada, palavras falaciosas, nó
que se atravessa na garganta. Não há psicanálise que cure esta vontade de
batalhar inutilmente contra a maré, de iluminar as ruas escuras. O culpado é
ele, por me sentir sempre assim, por não ser capaz de parar, por não passar duas
horas por dia no ginásio, por não conseguir começar uma relação, que acaba sem
ter começado. O medo de ficar exausta e cega, de não ver os sinais, da cabeça a
ferver, das notícias tristes.
- Não sejas ingénua, Ana. Acorda para a
realidade. Este é um mundo de homens, feito por homens, para os homens. As
mulheres, algumas, começam agora a despertar. E a realidade é que os homens têm
no sangue o gene da traição. Mais tarde ou mais cedo, ela acontece.
E insiste.
- Joana, vais casar-te, portanto prepara-te
para te sentires enganada e traída.
- Não digas isso, Júlia. Nem todos os casos
são como o teu, digo.
Mas são. Vontade de dizer que são, mas não
digo. São como o dela e como o das outras. Vontade de destruir algo, mas não
faço. Vontade de requintadamente fazer mal, querer que chorem, que amaldiçoem o
dia, que saibam que é tempo perdido. Eles vão, partem de uma maneira ou outra,
partem sempre, ficam as culpas intermináveis, as memórias doces, doentias, as
flores brancas nas campas. …
(continua)
Maria Luís Koen
Amedeo Modigliani
O ex-marido de Júlia, Pedro, agora juiz no
Tribunal de outra Comarca, foi sempre um rapaz certinho e estudioso. Raramente
ia a festas, saídas à noite não gostava e, quando entrou na Faculdade de
Direito, quase se tornava eremita não fosse Amélia, sua prima, que de vez em quando
o obrigava a umas saídas. Fora precisamente numa dessas saídas com Amélia que a
nossa relação com o Santo, como gostávamos de lhe chamar, se tornou mais
estreita. Amélia, também estudante de Direito, tinha uma amiga especial com
quem partilhava o quarto: Júlia.
Júlia apaixonou-se loucamente por Pedro na
primeira noite em que o viu: completava vinte anos e decidira fazer uma pequena
festa de aniversário para os amigos mais chegados. Já ouvira vezes sem conta
falar de Pedro, pois Amélia era quase uma irmã para ele e falava muitas vezes
do rapaz, por isso, pedira a Júlia permissão para o levar à sua festa de
aniversário, numa tentativa de o socializar e de o tirar de casa. Nessa mesma
noite, assim que o viu, Júlia hipnotizada, tomou a decisão de o conquistar. Não
foi difícil, pois Pedro não era muito experiente com mulheres e, ao ver-se
assim assediado, resistiu pouco. Passados doze meses de namoro as famílias já
se conheciam e o casamento estava marcado: para o final do estágio. Três filhos
passados, fiquei admirada quando recebo um telefonema de Júlia no meu
consultório: estava em prantos. “Ele enlouqueceu, Ana. Só pode ser isso. Tens
que vir aqui avaliá-lo. Leva-o para um hospício, para um hospital de loucos!” Nessa
mesma tarde, com urgência, encontrámo-nos no Café do Hotel da Cartuxa para
uma conversa urgente. Li - lhe o desespero e a raiva nos olhos. “Leva-o, Ana,
que ele não está bem”. Levo-a comigo para casa, que quem não estava bem era
ela. A cara não enganava, o olhar também não. Liguei a televisão para amenizar
o ambiente, ela foi direta para a casa de banho vomitar, chorar, gritar:
“Leva-o para um hospício! Leva o cabrão!! Leva-o!” Fui até à casa-de-banho, dei-lhe um copo de
água que atirou ao chão. Depois pareceu
ficar mais tranquila e disse: “Ele anda com uma puta qualquer, Ana, uma puta da
pior espécie. Eu bem os vi a arrotar de volúpia, eu bem os vi. Como pôde ele
fazer-me isto?”. Fiquei a saber que Pedro, o Santo, queria o divórcio, pois
tinha outra mulher.
(Continua)
Maria Luís Koen
Gianni Strino
- Mas porque choras? Homens é o que não
falta por aí, dizia para a animar. Tu és linda e inteligente, ganhas bem, és
independente, podes refazer a tua vida sentimental com rapidez, se assim
quiseres.
Por tudo isto ela ainda se sentia mais
irritada por dentro. Pensava no seu orgulho ferido e não procurava perceber o
porquê de tudo aquilo. Quando voltou para casa, meio cega de dor, raiva,
desespero, procurou nas gavetas os álbuns e rasgou todas as fotos do casamento,
as cartas que ele lhe tinha escrito quando ainda namoravam, partiu as pulseiras,
deitou a aliança na sanita, destruiu os lençóis da cama, espezinhou as roupas. Gritou
no vazio da casa, fumou cigarros ininterruptamente e bebeu para esquecer. Quis
também apagar os cheiros, as imagens e as recordações. Chorou por não
conseguir. Anestesiou-se em comprimidos para dormir. Chorou muitos dias mais,
quando ninguém via, até uma manhã qualquer acordar e dizer: Basta! Os olhos não
mais se encharcaram, mas a angústia continuou por tempo indeterminado, o nó na
garganta. O vazio também. As recaídas de
pena de si mesma aconteceram amiúde. Deixou, no entanto, de haver raiva ou
ódio. O nó permanente na garganta, porém, continuou, a mágoa, a ferida por sarar,
luto continuado de marido vivo – ferida de combustão lenta, de evolução
sofrida. Não podia dizer: “Estou triste porque o meu marido morreu”. Mas
estava. Triste porque o marido morto, estava vivo. E as perguntas, sempre as
mesmas, continuaram a perturbá-la - por que é que o Pedro arranjara outra mulher?
Onde tinha falhado? Não era feia, considerava-se brilhante, entendiam-se bem
sexualmente. Da raiva, da interrogação, do desespero, passou pela solidão,
ansiedade, até fadiga. É o luto, a dor demonstrada da separação.
- Porquê, Ana? Onde falhei, Ana? Tenho tudo
e não tenho nada. Sinto-me totalmente vazia, oca, ferida de morte.
Não soube responder. Apenas quando conheci
a “puta”, mulher de Pedro, certa vez que os encontrei no “Froscas” e pude
conversar um pouco com o casal, só nessa altura pude dar resposta às perguntas
de Júlia. E entendi tão bem. A puta não era tão intensa e brilhante e
inteligente como Júlia mas, ao contrário desta, era meiga e de uma doçura capaz
de encantar o mais empedernido dos seres humanos. Pedro sempre vivera dominado
por Júlia, mulher de personalidade demasiado forte para ele, um homem
corpulento mas dócil. Ele admirava Júlia e sentia-se dominado por ela. No dia em que conheceu a puta, num acidente de viação um pouco grave, tudo
mudou para ele, para a puta da enfermeira que se tornaria na sua segunda mulher
e para Júlia.
- Pedimos sobremesa? Três saladas de fruta, por favor.
E eis que o Ruivo entra. No ar cheira a
tensão. Eu e Júlia trocamos olhares. Esperamos um turbilhão de sentimentos,
gestos ou palavras. Ele aproxima-se da nossa mesa. Sinto a palidez de Joana. Continuo sem perceber porque ela quis vir aqui.
- Boa noite minhas senhoras.
Ela levanta-se, dá-lhe um estalo e sai
porta fora.
Maria Luís Koen
Basi Mateo
4 .
ANA
É meia-noite, já passa. A televisão está ligada mas sem som, a música que se ouve, ao longe, vinda de um outro apartamento, não me ajuda na leitura. Leio "A Terceira Rosa" de Manuel Alegre. Tento, porque não consigo concentrar-me. Penso naquele estalo que me deixou perplexa. Nem eu nem a Júlia entendemos o que se passou. Joana saiu porta fora, sem explicação. Até agora não telefonou a qualquer uma de nós e o telemóvel está sempre desligado. Voltámos para casa logo após o ocorrido. Júlia não quis subir e ainda bem. Não me apetecia muito conversar. Tomei um duche quente, vesti o pijama, tentei preparar umas coisas para segunda-feira mas não consegui. Agora já estou deitada e penso que o dia de amanhã vai ser longo e aborrecido. Vou ter que telefonar à Roberta, combinar um café ao fim da tarde. Pressinto, pela voz, que não está nada bem. A minha profissão também não me ajuda – nem este hábito de conseguir ver para além do normal. Há quem lhe chame pressentimento, algo incompreensível para muitos, uma espécie de antena interior que uso para ver por dentro, ver o que muitas vezes não querem mostrar. Às vezes tenho medo. Medo do que não quero ver, medo do que vejo e não aconteceu ainda, medo das sensações que a visão me traz.
Anyes Galleani
Quando estudei Carl Jung na faculdade, aprendi que este considerava a intuição uma atividade psíquica característica dos seres humanos. Para ele, a intuição é um fator chave para podermos compreender a mente dos seres humanos. Não só a intuição, mas também outros fatores, como a sensação e o sentimento. Para entender a mente de um ser humano há que considerar todos estes aspetos. Na altura li o que pude e consegui sobre este tema, mas agradava-me saber que Jung dizia que a intuição acontecia, não a partir do nosso consciente, mas sim do inconsciente, e era um fator fundamental para a construção da nossa personalidade. Por isso, deixei de estranhar e nem me assusto já, ou fico perplexa, quando surge em mim, numa qualquer ocasião e a propósito de nada, uma sensação rápida e inexplicável, uma intuição, algo que me acontece sem um particular esforço ou premeditação. A cena no restaurante não me sai da cabeça e, apesar deste dom que julgo ter, não consigo perceber, intuir ou sequer antever, razões para o ocorrido. Ainda me levanto, já são duas da manhã, aqueço leite no micro-ondas, junto um pouco de chocolate, bebo devagar, enquanto oiço o relógio pendurado na parede da cozinha. Lembra-me outros relógios, outras horas passadas em tormenta, horas que nunca mais passam, minutos doridos de espera, incansavelmente lentos, pelo segundo em que tudo acaba. Vou até à sala, abro as janelas largas da varanda, mas o lago escuro não me acalma, não me aquieta. É aquela desorientação a que não me habituo nunca, aquele estar sem saber como, aquele não se sabe bem o quê que não está bem, aquela dor que não o é mas que aflige, contínua e surda. Entro de novo, volto a ligar a televisão, mas nada me prende a atenção. Arrumo o que vejo fora do sítio, como que alucinada, em gestos automáticos do tudo para preencher. São os olhos vazios dele que vejo, o silêncio que se interpôs no caminho, as emoções que não se mostram, a pele fria de tanto gelo, cera que ainda sinto. Vejo as palavras amargas e tristes a saírem da sua boca, que eu já sabia há muito, os gestos que não se fizeram, os comprimidos. A ventoinha cor de metal gira, finos aros juntos em encruzilhadas quase perfeitas, que formam teias de vento. Aquela falta de algo que me agonia, aquele silêncio de que não gosto, que me incomoda no vazio da sala grande. O cigarro nas mãos trementes dele, já quase no outro lado da vida, preso num fio invisível e cinzento. A morte pode ser imperfeita.
Adormeço com a cabeça num turbilhão.
(continua)
5.
Há uma química inequívoca entre os dois.
Ela deseja ser a capa que ele amacia, o tapete onde se
estende. Quer sentir o cheiro e as mãos. O corpo a arder, é isso que deseja.
Ele também. Percebe-se no olhar, na boca, nos gestos. As palavras que não diz,
ou diz de outra forma.
E este quero não quero, vejo não vejo, sinto não
sinto, continua.
Hoje conversam, amanhã vêm-se na normalidade da casa
dos amigos ou conhecidos. No meio de risos e bebidas e algumas descobertas,
ambos sentem o íman que os atrai.
Ele sente mas não avança, ela sente mas não diz. E
assim caminham nos meses, sem se tocarem.
- Ai Ana, nunca senti um desejo assim, que me consome
nos dias e nas noites, todas as horas e todos os minutos.
- É amor, Roberta?
- É loucura. A loucura de querer saborear aquele mel.
Invejo-a. Também quero sentir como Roberta – com todas
as emoções.
E a pergunta volta-me à memória:
És
feliz, Ana?
Eu não sei se sou feliz ou se a felicidade existe.
Vivo momentos de felicidade, como vivo obscuras raivas e profundas tristezas.
- Vou fazer tudo para estar com ele. Sim, Ana, eu sei
que sou casada mas aqueles lábios não me saem da cabeça. De noite e de dia, o
mesmo pensamento teima em perseguir-me. Chega a ser desumano, compreendes?
Olhamo-nos como sempre em frente ao mar. Ali há sempre
vento e é sempre maio.
- Não sei que diga nem se compreendo: uma paixão assim
nunca foi sentida por mim. É demasiado avassaladora para a minha pacatez sentimental.
Minto, minto, minto. Tenho vergonha de tanta mentira,
deste engano piedoso, deste suicídio lento que me acomete. Tenho vergonha desta
descontração, deste choro escondido e lento, desta falta de coragem, deste
disfarce inventado. Das palavras sem cor que pronuncio, acumuladas em anos a
viver numa caixa cheia de recriminações, de dores doentias, de atrofias
tortuosas, estranhamente falsas. Sempre tive medo de sentimentos abismais, de
me prender demasiado, de me expor. A paixão aterroriza-me, mas também me leva a
invejar e a querer experimentar ondas de loucura sem medos, sem feridas de
morte, sem arpões cobertos de sangue, sem choros sentidos, sem beijos
encantados. Justifico-me com o estou mais habituada a ouvir, muito pouco a
criticar. A escuridão dos olhos de Roberta, no entanto, diz-me tudo: agora não
vejo dor na sua palidez, mas muito ardor.
Linzi Louise
6.
JOANA
O bar restaurante toca música dos anos sessenta, que convida a
uma certa melancolia. Uma nuvem de fumo perfura o ar, mas ninguém parece notar. Olhos
que parecem todos iguais, não há diferença, não há distinção nas luzes que nos
tornam um pouco sobrenaturais. Os sons das palavras são abafados pela música e
apenas nos apercebemos do início ou do fim das mesmas, os lábios a mexerem em
conversas de mudos. O barman ruivo, talvez de origem escocesa não sei, parece
vindo de um outro tempo, o do barba-azul. Tenho sede. Traz-nos as bebidas e
quase imagino serem portadoras de uma qualquer potencialidade mágica. Sede do
que não tenho, sede da loucura que elas pensam que eu não conheço, sede do
intenso que provoca a cegueira. Somos cinco: umas com sede do que já viveram,
outras com sede do que sentem que lhes faz falta. Mulheres completamente
diferentes na personalidade, no vestir, na profissão. Mulheres incomuns e tão
comuns aos olhos dos outros. Tão belas ou tão chiques, tão misteriosas ou tão
claras. Somos nós, eu sei que somos nós mesmas quando estamos juntas, quando
gostamos de con -ou- desconversar, com ou sem domínio, de rir ao som da música e de estar, aqui ou
ali, mas estar. Uma grande amizade
torna-nos cúmplices, apesar das nossas divergências e diferenças. E essa
amizade torna-nos mais fortes e poderosas, quase um clã feminino.
Desta vez foi Joana quem telefonou.
andre kohn
-Vamos sair um pouco. Precisamos todas de rir um
bocado e beber uns copos, Ana. Vou telefonar à Roberta, à Júlia e à Amélia. Às
dez e meia na minha casa ou, se preferirem às onze no bar da Rua 16.
- Bar da Rua 16??
Na verdade, sinto-me cansada e seria melhor ficar no
sofá e terminar a Terceira Rosa, mas,
por outro lado, o dia duro que tive no consultório leva-me a querer tirar da
cabeça histórias e dramas quotidianos. A ideia de Joana acaba por me agradar
sobremaneira. Tomo um duche rápido que me revigora e, enquanto passo hidratante
no corpo, penso no pobre Miguel. Não sei porque me lembrei dele.
O escocês ruivo olha-nos um pouco de soslaio. E não é
para menos. Somos cinco mulheres que dominam o ambiente essencialmente
masculino. Coisas de Joana, a advogada feminista que gosta de provocação. Jogo
perigoso.
Quando cheguei ela já lá estava. Havia escolhido a
mesa central. O bar restaurante estava decorado em tons de azul cor do mar
revoltoso e branco, um balcão cor de areia, comprido, a contrastar. Quando telefonou pediu que fosse vestida de
branco.
- Branco? Sabes bem que não tenho roupa dessa cor!
- Vem de branco e vem bonita.
O que me obrigou a ir à boutique onde vou sempre
tentar comprar um fato branco. Felizmente que a Berta da boutique ainda tinha
dois em stock: calça e casaco que realçavam a minha figura. Berta tornou-se
numa amiga de tantos anos a visitar, de tanto me aconselhar, de tanto
confidenciar. Mas não parecia ela. Um olho arroxeado tornava-a diferente. De
uma queda, batera no vão, uma infelicidade, um azar apenas estético – foi a resposta
quando a questionei sobre o assunto. Na verdade não fiquei muito convencida, os
olhos não mentem, mas estava com alguma pressa e deixei o assunto arrumado para
mais tarde. “Volto depois para pagar, Berta”.
Sapatos castanhos e mala a condizer com os cabelos cor
de mel, a cair a meio dos ombros e olhos sombreados, foi assim que o barman me
viu entrar. Não fora o perfume favorito e o batom suave, e não me teria sentido
tão segura ao ser nitidamente esventrada por mil olhares, até me sentar ao lado
de Joana.
- Mas, porque escolheste este bar? Parece que só vejo
homens.
- Ó Ana, e isso importa? Sorriu, vestida sensualmente
num vestido branco decotado. Cabelo curto, castanho escuro avermelhado, com
madeixas, era aquela Joana enigmática e felina que os homens tanto queriam e
temiam.
Entretanto chega Roberta, fato saia e casaco branco,
lenço de seda preto e branco, cabelos negros compridos, olhos escuros de
pantera, que sorri para nós, de imediato acenando para Júlia, que espera por
Amélia.
Júlia, olhos azuis a condizer com a bijutaria, a blusa
branca com decote e a saia branca e justa a cobrir as botas brancas e, por fim,
Amélia, cabelo louro escuro, olhos verdes, sorriso franco a condizer com a saia
plissada e a blusa arrendada, brancas. Rimos as cinco porque nos achamos
bonitas e a ideia da Joana de irmos as cinco de branco foi seguida à risca,
formando um conjunto agradável ao olhar e que transmitia alegria e boa
disposição. Nestas alturas sentia-me sempre feliz, como se a carga do luto se
desvanecesse, e, secretamente, me sentisse de novo viva e com vontade de mais.
Uma paz que chegava devagarinho, subia pelo corpo até ao coração, um sol que
despontava de mansinho.
O barman tenta, ao que parece sem grande sucesso,
responder às múltiplas solicitações de alguns clientes e, talvez já irritado,
decide oferecer-nos uma bebida no intuito de evitar a curiosidade alheia.
Mas nós também estamos curiosas. Muito curiosas mesmo.
Queremos saber a razão da estalada no Ruivo, da cor branca, daquele bar e se o
noivado com o Miguel continua.
É jogo?
Maria Luis Koen
- As bebidas são por conta da casa, senhoras.
- Aqui podemos dançar?
- Sim, senhoras.
Mas não dançamos.
Um homem entra no bar e,
sem cerimónia, avança em direção ao disk-jockey, que parece ter entendido ser
melhor não protestar. A música para e a voz do homem anuncia que a cerimónia
terá lugar dentro de cinco minutos. O barman deixa uma garrafa de champanhe em
cada mesa e o número de copos correspondente ao número de pessoas que aí se
encontram. Olhamos umas para as outras sem perceber a razão da festa, apenas
Joana sorri, parecendo entender tudo ou esconder algo. O homem que entrou no bar
volta a anunciar ao microfone que a cerimónia se vai realizar e que as damas de
honor se podem dirigir ao palco. Diz estas palavras olhando para nós, enquanto o escocês aparece com um lindo bouquet de rosas, cor dos sapatos de Joana.
Só nessa altura entendo o que se vai passar, mas nem tempo tenho para dizer
algo, uma vez que somos obrigadas a ir até à espécie de palco, com um
sorriso nos lábios, enquanto Miguel de olhos verdes, aguarda que Joana se lhe
junte. Ainda não estou em mim com tamanha surpresa! Os olhos de Joana brilham
de felicidade, enquanto os amigos mais chegados de Miguel continuam a chegar. Agora
que olho com mais atenção, reparo que o escocês está vestido a rigor, que as
mesas do bar têm todas uma pequena jarra com um bouquet de flores brancas e
vermelhas e que a clientela é, afinal, selecionada.
Joana, a louca, acaba de me surpreender.
Maria Luís Koen
7 .
Ao ver o desejo nos olhos dele, ela pressiona-o. Vezes
sem conta ela dá a entender que quer sair com ele, quer estar com ele de outra
maneira. Mas a resposta não é a desejada. Andam em círculos como se seguissem
um caminho, labirinto sempre o mesmo, raios opostos de uma roda sem domínio,
que não para. Roberta hoje e amanhã vai dizendo o que quer. Eu vejo. Ela diz
que ele não vê ou não quer ver. Até que um dia, os círculos se juntam, raios de
uma teia, um choque em labaredas de beijos que não conseguem parar. Há toques e
corpos que se fundem em ânsia. Rodam juntos uma e outra vez, esquecendo as
pedras no caminho, o restolhar de conversas invejosas e maldizentes, o amor a
vaguear.
- Ana, não consigo parar. Ele consome-me o corpo e a
alma. Vejo-me a inventar palavras e situações só para estar com ele.
- Cuidado Roberta.
- Eu sei, sei que não posso nem devo, que as pessoas
vão falar, mas também sei que ele me faz viver, renascer. E, por mais voltas
que dê, é ele que eu saboreio nos sonhos de solidão.
corinne reignier
8 .
AMÉLIA
Sentada no sofá da minha sala, penso no que posso
fazer por Berta. Não acredito que ele lhe tenha dado um murro, mas deu. Um de
muitos, ao que parece. O divórcio é certo, a Joana encarrega-se das questões
legais, mas ficam as dores invisíveis, aquelas que não se tratam com
paracetamol, que deixam marcas sem cor, que sangram por dentro. É aí que entro.
E vou ajudar como ajudo muitas outras.
São prisioneiras do medo, sem esperança. Eles em liberdade, elas vítimas
e fugitivas eternas. Muitas vezes em casas de abrigo com os filhos, fogem ou
escondem-se de uma rotina de maus tratos. Mas querem recomeçar, têm direito a
isso e à vida. Concentro-me no que me espera amanhã. Não consigo. Berta não me
larga a memória. Triste por ela, triste por acontecer, ainda, todos os dias, a
tantas mulheres. Um inferno. Olho para o aquário grande na parede oposta ao
sofá. Os peixes são uma terapia para mim, mais uma que me ajuda a remexer no
lixo, nesta contínua dor dos outros que é minha, deste medo de morrer sozinha, como
eles. Basta estar dez minutos a olhar para os seus movimentos silenciosos e o
stress desaparece, a ansiedade também. O meu aquário é a minha tranquilidade ao
fim do dia, quando a tenho. Quando me perco nos seus movimentos calmos e de
súbito rápidos, quando me hipnotizam através do vidro, aí, esqueço o escuro da sepultura fechada, com
ele lá dentro. Foi a melhor prenda alguma vez recebida. Embora no início
tivesse ficado um pouco aborrecida, depressa esse sentimento deu lugar a outro
bem mais positivo. Volto aos papéis. Releio os apontamentos sobre a paciente
das nove: a POC pode transformar e infernizar a vida de quem sofre desta doença
e não se trata. Uma vez mais tenho dificuldade em concentrar-me. Os meus
pensamentos vagueiam em círculos ilimitados, sempre entrecortados pelos raios
dos que giram à minha volta. Raios independentes de quem me sinto dependente.
Às vezes odiamos aqueles que nos fazem sentir bem e com quem nos sentimos menos
sós. Fecho os olhos por um instante. A música alivia-me a alma, que sinto
doentia, entrecortada, raivosa, agitada. Volto aos apontamentos que os olhos
captam, mas o pensamento foge, para a maldição do que perdi irremediavelmente,
se é que perdi alguma coisa. Talvez não fosse amor, dizem que é eterno. A
campainha da porta toca. “São dez da noite”, penso, “Quem será a esta hora?”.
Visto rapidamente o robe, pergunto quem é.
- Sou eu, a Amélia. Deixa-me entrar.
- Sobe!
nathalie fougeras
Abro a porta e eis Amélia que aparece. Está já frio, o verão passou, o gorro e as luvas assim o demonstram. Entra sem cerimónia,
descalça as botas, tira o casaco e afins:
- Mmmm, aqui está quentinho!
- Algum problema, Amélia?
- Decidi visitar-te, vizinha. Espero que não te
importes. Estava sozinha e apetecia-me um pouco de companhia. Fazes um chá?
Vou até à cozinha, que é pequena como todo o
apartamento, à exceção da sala. Os móveis são em madeira clara, em contraste
com os cortinados, de um tom que parece variar de acordo com a cor do mar.
Procuro a cafeteira elétrica, que encho de água do luso, preparo o tabuleiro
com duas chávenas da Vista Alegre, o açucareiro e o bule. Abro o armário:
- Canela ou maçã? Ou queres chá verde?
- Canela e maçã está bem.
Enquanto espero que a água da cafeteira ferva,
pergunto-me o porquê de tão inesperada visita e tão pouco habitual na minha
vizinha de condomínio, e amiga, Amélia. Só quando fui visitar o apartamento com
o senhor Isaac é que percebi porque o nome do condomínio não me era totalmente
estranho. Afinal a Amélia era a moradora do número cinco e, quando ainda nesse
dia lhe telefonei a contar que tinha acabado de ver e estabelecer o primeiro
acordo para a compra de um T2 no número sete do seu condomínio, ela disse “Não
sei se fizeste bem”. Mas, na excitação do momento, não liguei ao que me disse a
minha futura vizinha e ainda não tivera oportunidade ou a lembrança de lhe
perguntar a razão de tal reação. Talvez hoje consiga perceber porque não fiz
bem em ser proprietária no Condomínio da Roda. Oiço-a a colocar mais lenha na lareira, a mudar o cd de música e a
comentar os vasos de flores que dão colorido à sala.
João Alfaro
- O chá
está quase pronto. Queres bolachas?
- Só se forem de manteiga - responde.
Procuro nos armários, pois sei que me deve restar um pacote de
bolachas. Ah, aqui estão. Junto um prato cheio delas ao tabuleiro que levo até
à salinha.
- Belo chá.
- Sim é bom - digo a sorrir.
- Venho da casa da Mafalda.
- Mafalda? Não conheço. É tua colega?
- Não.
Parece-me haver uma ligeira hesitação mas,
logo de seguida, continua :
- É
minha amante.
Por momentos julgo não ter ouvido bem. Bebo
mais um gole de chá. A vida às vezes é estúpida e dura e má e nós também. Os
dias passam tantas vezes vazios de substância, sempre os mesmos, frios e
deformados, semanas e meses de vazios, em que nada acontece, em que é sempre
tudo o mesmo, em que as pessoas que conhecemos nos massacram de nada ou dos
seus cansaços que são nossos. Outras vezes parece que tudo isso muda, que há um
tremor qualquer que tudo vai agitar, tal bola de neve, agita-me a mim e vai
agitar o outro e por aí fora, sem parar. Então aparecem mil estórias que
preenchem, vêm ter connosco e nós, mesmo assim, cheias do nosso próprio vazio, não entendemos nada.
- Amante??
(continua)
Maria Luís Koen
Patricia Ariel
- Não aguentava mais, Ana, tinha que contar isto a alguém. Saí de casa dela, não quis ficar. Durante a viagem de duas horas senti um enorme desejo de dizer isto a alguém. À Joana, nem pensar, ela não ia entender. A Roberta é minha amiga desde sempre, acho que nem sonha que eu gosto mesmo é de mulheres. A Júlia é demasiado séria para saber uma coisa destas, por isso digo-te a ti.
Que dizer nestes momentos, meu Deus, e porquê a mim? Porque sou psicóloga?
- E que queres que faça com essa informação?
- Não estás surpreendida ou chocada?
- Não. Sim. Um pouco. Isto é, só não estava à espera de uma revelação como essa, numa quinta feira às dez da noite.
- Pois é. Desculpa, Ana. Andei às voltas no carro, com o coração apertado e a pensar, porque não hei-de dizer? Tenho que dizer! Preciso dizer. Preciso de te dizer, Ana.
- E essa Mafalda quem é?
- Conheci-a através da internet.
As pessoas conseguem, ainda, surpreender-me. E Amélia, que sempre achei sensaborona, surge agora perante mim com uma nova luminosidade. É uma luz crua, despida de floreados, sem mistério. É uma luz de fogueira, quente, contam apenas as brasas, as cinzas espalham-se quando vem a brisa, às vezes vento.
(continua)
Maria Luís Koen
Danielle Duer
- Conheci-a num chat. Ao fim de um ano de conversa decidimos conhecermo-nos pessoalmente. Combinámos um encontro, na baixa, em
Lisboa, num café conhecido de ambas e, nesse mesmo dia, ela convidou-me para ir
até ao apartamento onde vive. Jantámos e
falámos sem parar. Bebemos vinho e depois whisky. Acabámos na cama e ainda não
sei bem como. Só sei que adorei e
que nos encontramos muitas vezes por mês. Todas as que conseguimos. Ela tem um filho
e um namorado, o Jorge, que é um doce e nem sonha… Já conheço o filho, já mo
apresentou e jantámos os três. Mas a Mafalda mantém o namoro com o Jorge e o
romance comigo. Não o quer deixar e diz que a mim também não. Não sei o que
fazer. Não a consigo esquecer, não passo um minuto sem pensar nela. Também
penso no namorado. Só consigo odiá-lo. Por causa dele, ela não pode estar
comigo quando eu quero.
São palavras de mágoa, paixão e ódio as de
Amélia. O caminho dela é tortuoso, como é o meu , mas de maneira diferente. É
tortuoso o caminho das outras, que eu sei, difícil, enganador, cheio de
travessas labirínticas, com obstáculos que parece terem que vencer. Eu sei que não
há cura nem salvação para o amor. Ele desperta em nós o desejo, a loucura e às
vezes termina num silêncio duro e sem fim.
Maria Luís Koen
João Alfaro
- Queres um whisky?
- Pode ser.
Vou buscar os copos, o balde do gelo e o
whisky.
- Bebo sem gelo, ela diz.
Saboreamos ambas o acre-doce da bebida, sorrimos:
- Que merda de vida!
…
Amélia acabou por dormir no sofá. Bebeu
demais, estava agitada, não valia a pena ir de elevador para o primeiro direito
do número ao lado, podendo ali ficar. A náusea que bem conheço, ninguém quer
ficar com ela a vida toda. Às vezes acordava às cinco da manhã, agora já nem
tanto, bebia uns gins para acalmar, ficava zonza, com as palavras a querer
brotar, tentando que o alívio chegasse, que a tormenta passasse. Valia tudo. Os
cigarros que ardiam na garganta, os posts intermináveis na internet, os filmes
sem legenda, não interessava o quê. Tudo servia para me libertar do peso de
pensar, do pes0 de sentir a amargura, do destempero da raiva, da irritação
agitada da alma.
Quando acordei, às sete e trinta, tomei um duche quente e rápido
e só depois a acordei. Tinha os olhos inchados e pretos da maquilhagem por
tirar.
- Não trabalhas hoje, Amélia?
- Obrigada, amiga. Soube-me bem ficar contigo a falar destas
coisas que sinto.
- Se precisares de roupa tens aqui toalhas limpas e na cozinha
tudo o que precisas. Vou ter que sair agora para não apanhar muito trânsito.
Fecha bem a porta quando saíres.
- Obrigada, Ana.
- Convida-me para jantar. Quero conhecer a Mafalda, sorri.
Maria Luís Koen
Ira Tsantekidou
9.
MAFALDA
Olhos cor de violeta e o cabelo ruivo,
escuro, comprido. As sardas espalham-se pelo nariz e o sorriso maroto parece irradiar
simpatia. É diferente de todas as mulheres que conheço. Não a consigo ler.
Detesto isso. Na minha profissão habituei-me a observar os gestos. Às vezes
estes dizem mais do que as palavras ou dizem o oposto porque são feitos
involuntariamente e espelham as emoções, pensamentos e personalidade da pessoa.
Todos os psicólogos e psicanalistas valorizam a comunicação não verbal. Sempre
fui intuitiva, sempre dei grande importância aos sinais, muitas vezes mais
relevantes do que as próprias palavras, que podem ser enganadoras. Mas este é
um dom de família e de muitas mulheres. O que senti quando a vi foi
avassalador, estranho: os olhos dela eram iguais aos dele quando eu chorei três
dias e noites sem parar. Aquele vazio fundo voltou, foi difícil aceitar que
aquela mulher era a maldade personificada.
- Olá Ana, já tinha ouvido falar de si.
Maria Luís Koen
Wendy Ng
As mãos macias, as unhas arranjadas, nada, mas mesmo nada, descura a imagem de Mafalda – o andar, a roupa, o relógio, tudo parece um jogo simétrico que encanta e, acima de tudo, hipnotiza. A mim não. Eu vejo para além da aparência, mas, pela Amélia, faço um esforço:
- Olá Mafalda, prazer em conhecê-la.
Brincos e colar em pérolas brancas, pequenas, que contrastam com a cor do cabelo que usa solto. Comedida em tudo, até no falar: sabe escutar, faz as perguntas adequadas e responde com inteligência.
É a maldade pura, eu sei.
- Já sei que é psicóloga, Ana.
- Sabe mais do que eu que desconheço a sua profissão, disse.
- Sou médica - e sorri.
Pedimos uma tarte vegetariana para Amélia, peixe para mim e carne para Mafalda.
Maria Luís Koen
Cinzia Pellin
A conversa gira à volta de tudo um pouco, há
um desabrochar da personalidade que não consegui ler nos primeiros instantes –
aquela que ela quer que eu saiba, que eu aprenda, que eu conheça. O canto da
sereia. É isso que ela é. Sereia encantada ou bruxa má.
Mafalda é culta, vai ao cinema uma vez por
mês, ou tenta, como ela própria diz, para não morrer de pasmo. Aproveita sempre
que o filho fica com o ex-marido. Divorciou-se quando este tinha três anos. Não
aguentou a pressão do agora ex-marido. Não lhe batia, mas a pressão
psicológica era constante: nunca nada estava bem feito, nem em casa, nem com o
filho, nem no trabalho. Dizia que era um escravo dela, um criado e que , por
isso, ela tinha sucesso e ele não. Com o tempo ele foi conseguindo o que no
fundo queria: subjugá-la. A sua auto-estima ficou muito em baixo, já nem
conseguia decidir nada sem ele: o cinema ou o teatro, o vestido azul ou o preto
– era ele quem decidia tudo, quem controlava tudo. Aos poucos foi perdendo os
amigos, deixou de se encontrar com eles, nunca eram suficientemente
interessantes para o marido. Sozinha consigo mesma e com os seus medos
interiores, esmoreceu e com ela a relação. “Era uma relação tóxica, compreende?
Amorfa. Deixou de haver cumplicidade, confiança e afetividade entre nós”. Com
a ajuda de uma colega com quem fez psicanálise, conseguiu acabar com a tormenta
e não se arrependeu. Depois, foi um caminho de re-aprendizagem de tudo e dela
própria, de fazer amigos, de sair, de conversar ao telefone, de fazer as suas
próprias escolhas e tomar as suas decisões. Foi o extravasar de toda a
repressão.
Agora, de quinze em quinze dias dá-se a
pequenos luxos, como ficar todo o dia em pijama, não cozinhar ou, até, fazer uma
massagem Vichy. Com o filho em casa é sempre diferente. Quando ele não está, se
não vai ao cinema procura ir ao teatro, às vezes com o Jorge, outras vezes com
amigos. Adora ler e o passatempo eleito é surfar na net. Perde horas do seu
pouco tempo livre no computador - “uma maneira de relaxar” e de conhecer
outros.
Maria Luís Koen
Não acreditei em metade do que a bruxa
disse. Provavelmente arranjou um qualquer plano maquiavélico para dar cabo do
marido, livrar-se dele.
- Mas já conhecem muita gente através da Internet?
- De facto, não. Mas conheci Amélia e não estou nada arrependida.
Olham-se diretamente nos olhos, consigo finalmente
captar um brilho especial, uma emoção. Quase sei que, por baixo da mesa, as
mãos de ambas se tocam. Terminamos o jantar com um brinde. Visto o casaco, está
frio:
- Então até à próxima, Ana.
- Adeus, Mafalda. Vens, Amélia?
- Não, vou com a Mafalda.
Entram as duas no carro, aceno e entro no meu. Tenho as mãos geladas e o coração. Não me
deixei encantar pela sereia, sei que Amélia vai sofrer, que ela é má, que lhe
vai tirar a alegria, aquele olho não me enganou, o frio que senti, gelado, a
subir, quando olhei para ela, o reflexo escuro dos olhos violeta.
Dói-me tudo.
Dói-me a alma.
Mais cedo do que Amélia pensa, vai chorar sentada na cadeira, vai
desejar não a ter conhecido.
É sexta-feira à noite e estou sozinha. Penso que
às vezes é melhor nem começar seja o que for, quando se sabe que vai acabar
mal, que vai terminar. Terrivelmente sozinha é como me sinto e é como Amélia se
vai sentir quando o olho violeta daquela bruxa cair sobre ela e a ferir de
morte.
A solidão é um estado interior, um vazio que não se preenche. Às vezes a
solidão ataca forte. Torna-se problema. Porém, muitas vezes sinto a necessidade
de estar só, parece contradição, pois só dessa maneira consigo algum equilíbrio
emocional, pensar na minha experiência individual. Então, essa solidão comigo
mesma faz-me falta: é quando estou só que tranquilamente me recrio. Outras
vezes, como agora, a solidão é dorida e fria. Uma mágoa que me invade devagar,
amarga, cinzenta. Falta-me um certo aconchego que me abrace à noite na cama, me
segrede umas doçuras ao ouvido, mordisque e possua sem pressas. Dou uma volta
pelo centro, de carro, o telemóvel toca já perto de minha casa.
Maria Luís Koen
Bec Winnel
- Ana, queres sair? Vamos até ao Ventoso?
Não penso duas vezes e digo que sim. Esqueço por momentos o medo de me
queimar novamente, de abrir uma nova ferida, de enlouquecer e de me perder.
Esqueço o ódio e os pulsos cortados em tempos, a insatisfação do nada, a
vingança de Deus, a desorientação da dor, o desaprender o amor.
Ele vem buscar-me dentro de quinze minutos, é o que penso. Apenas isso.
Nada de estórias passadas, de memórias e caminhadas perdidas. Nada.
Estaciono o carro e subo rapidamente para lavar os dentes.
Maria Luís Koen
kari lise alexander
10.
- Somos seis. Seis devem chegar e cabem todas na tua casa, Ana. Qual o problema?
- Mas não me consultaste ou pediste ou falaste no assunto. Nem estou interessada em reunião nenhuma, sobre tema algum.
- Já dei a morada e vai ser hoje às vinte e duas horas, não posso voltar atrás. Além do mais, já paguei. Vais adorar!! Não sei porque te queixas. Achas que podia ser na casa das outras? E os maridos e os filhos? Na minha casa? O Miguel matava-me.
- Na tua não pode e na minha pode!!! - disse irritada.
- Ana, melhor do que na tua casa não há! Não te zangues. E podemos estar todas juntas na risota.
- Mas elas sabem ?
- Saber não sabem, mas insisti que viessem, que era algo muito importante para ti.
E riu.
Na verdade não gostei deste excesso de Joana, mas já sabia que, mesmo que dissesse que não, ela já tinha feito todos os contactos e não valia a pena protestar. Quando saí, cansada de uma semana de trabalho, estacionei o carro no condomínio, não subi as escadas mas utilizei o elevador para o terceiro andar, abri a porta do número sete, descalcei os sapatos e atirei-me para o grande sofá creme que tinha na sala. Pensei: apetecia-me tudo agora menos aturar uma reunião só de mulheres. Liguei a televisão, as notícias do costume. Fechei os olhos durante cinco minutos, a cabeça a vaguear no corpo bonito do Simão, nos lábios, no nariz, outra vez nos lábios, na conversa no Ventoso, que deu em nada. Simão, o historiador que conheci por acaso, quando quis estacionar o carro no único lugar vago que havia ao pé da Sé e, por descuido, ao fazer a manobra, esfolei o veículo que aí se encontrava estacionado. É preciso ter azar, pensei. E agora? Fujo ou fico? Acabei por deixar um bilhete no vidro do carro com a confissão de que tinha sido eu a causadora dos estragos, deixando o meu número de telemóvel. Já estava sentada no Arcada, às voltas com um pastel de nata, quando o dito toca e era o dono do carro, aborrecido com a amolgadela no automóvel que, afinal, só comprara há três meses. Disse-lhe para vir ter comigo ao café, que pagaria o arranjo, que tinha seguro contra todos os riscos. E ele foi. Vi logo que só podia ser aquele o dono do carro, quando apareceu, passos largos, boca franzida, nariz adunco, olhos escuros de irritação. Sinal vermelho! Há quanto tempo não via o sinal vermelho! Ou então não queria ver, não queria jogar, não queria sentir, não queria. Ele era um doce. Logo ali ficou combinado que o carro seria visto por um perito que ele conhecia.
Maria Luís Koen
- Sim, não se preocupe, eu concordo, mas é melhor assinarmos os papéis em
como tudo isto é amigável.
Finalmente o homem sorriu e apresentou-se:
-Simão Gonçalves, prazer. Desculpe a irritação mas não estava à espera de ver o veículo naquele
estado.
-Ana Cabral. Também fiquei irritada com a
minha aselhice- sorri.
Combinámos que à tarde, por volta das seis,
iria ter com ele a fim de ouvir o veredicto do tal perito. O carro ficou na oficina e eu tive que ir levar o dono do carro
a casa, um apartamento nos Álamos.
- Então até à próxima, disse.
- Até breve, disse ele.
O breve foi no dia seguinte enquanto comia
uma fatia de tarte, pobre jantar, e olhava para a chuva que batia forte nos
grandes vidros da sala que dava para a piscina do condomínio. Olhava para lá
sem ver, perdida na minha própria mente, como sempre, à espera de nada, que o
tempo passasse, que o jantar terminasse, que a hora de deitar viesse como
sempre, para poder dormir e voltar a acordar, na rotina do nada acontecer. Toca
o telemóvel, um número desconhecido. Fiquei
tão admirada que nem consegui recusar o convite para um cafezinho no
Evorahotel. E às nove a campainha
toca e lá vou eu, debaixo de chuva torrencial – “uma loucura, devo estar doida”,
pensei – com o estranho a quem amolguei o carro, de táxi, beber café ao
Évorahotel. Onde está agora a mágoa que tantas vezes me assola, onde pára a
terrível culpa, o inconsciente que me mortifica? Escolhemos um sofá perto do
bar mas longe dos que lá se encontravam. O barman, solicito, trouxe um chá de
menta para mim e para ele um Irish coffee.
-Você mora num lugar azarado, disse.
- Azarado??
- Sim, não sabe? Azarado e, dizem, assombrado – sorriu.
- Não sei do que fala. Ainda se disser redondo, agora azarado…-
sorri também.
- Você não sabe que mora no número sete e,
ainda por cima no lugar dos mortos?
- Não.
- O número sete é muitas vezes associado ao
mal que, dizem, procura imitar o bem.
- Sim? Tenho uma amiga que também tem uma
paixão especial por números, digo. Ela também tem uma fixação pelo número sete.
Mas afirma o oposto: diz que o sete é o numero perfeito.
- Sabe que o sete é a chave do Apocalipse?
- Sim, tenho uma vaga ideia: sete igrejas e sete estrelas e mais setes que não me lembro –
sorri.
(continua)
Maria Luís Koen
A Roda
O ar é límpido. Sinto-o nas narinas, como a deixar-me
viva, sem me faltar, sem me sufocar. É tudo claro: a água do lago e as nuvens,
o cão branco que rasga a terra em fúria. Como se todos os tons, todas as cores,
se fundissem numa só: aquela. Não posso dizer que é fria, como já uma vez foi.
Ou áspera, naquelas memórias que fazemos por esquecer. Rodeia-me uma
luminosidade que não me choca, que eu não temo, que só eu vejo. É só minha,
pertence-me. Só eu a percebo no meio da tralha do apartamento, na sombra das
árvores do condomínio. Só eu vejo o encanto e saboreio.
A vida tem muitos tons. Variam quando nela mergulhamos
aos quinze ou aos cinquenta anos. Observamo-la de perspetivas e ângulos
diferentes. Também dela nos alimentamos com um entusiasmo e calor em nada
semelhantes.
Parece muitas vezes rápida, muitas vezes lenta, tantas
vezes desinteressante, principalmente quando a comparamos com a vida dos outros
que nos rodeiam. Mas isso não é verdade:
temos estórias para contar, estórias que não contamos e estórias que ainda não
aconteceram. Somos estória, fazemos estórias. São dramas e alegrias, segredos e
orgulhos feridos ou partilhados, todos fios do mesmo novelo que enrolamos e
desenrolamos, cortamos com incansável labor.
Todos pintamos. Somos pintores de um quadro
interminável em que há sempre algo a acrescentar, a modificar: carregar um
pouco mais aquela cor, suavizar ou matizar aquela imagem. Também tecemos e
bordamos, tricotamos diferentes momentos que desenham puzzles, loucuras.
Desenleamos os nós, pesadelos, ou tentamos, misturamos tudo, mais ou menos, ou
nada. Construímos, destruímos, refazemos. Agora um cachecol colorido com
desenhos de outros, depois uma camisola à medida de nós mesmos, ainda uma outra
peça que queremos. Às vezes não. Escolhemos o modelo ou nem tanto. Vivemos.
Fingimos. Amamos. Morremos. Renascemos.
Tudo é
possível. Tão possível como o momento, agora, este.
Maria Luís Koen
thank you O. Amador and Mª João R.
...
thank you O. Amador and Mª João R.
Parte
I
1.
ROBERTA
Setembro. Está
sol.
Olhamos ambas
através dos óculos escuros. Há gestos sinuosos que nos dizem ser aquele um
encontro entre amantes e não entre namorados. Rimo-nos da nossa conversa sem
maldade, incomodamos o casalinho que nos olha de soslaio e, secretamente, ambas
desejamos ser ela, naquela mesma situação: a que recebe o presente de amor. O
mar fustiga-nos com aquele cheiro afrodisíaco, mas pequenos goles do fino
relembram-nos que estamos ali e só ali. Conversamos por entre tremoços gelados,
sem perdermos um gesto ou um beijo ou um olhar mais quente vindo do par nosso
vizinho. Que bom sentir aquele sol, ouvir aquele mar, receber aquela luz,
aquele amor! Habituámo-nos a esta conversa mensal, sempre ao som das ondas, às
vezes da música serena do bar, num doce e calmo entrelaçar de palavras, tantas
vezes as mesmas, sobre nós e as nossas vidas. O vento vem muitas vezes
sussurrar, ouvimos, por vezes nem falamos muito, não é preciso. A idade, a
amizade, ensinou-nos a amanhecer ou entardecer pacientemente, a suspirar, a
calar.
O bar do Zé do
Peixe é todo o ano visitado : o peixe é bom e fresco, a música agradável, as
bebidas sempre a saber ao que queremos. O Zé é calmo, embora brejeiro no trato,
sempre disponível para uma boa gargalhada ou uma piadinha mais seca.
Conhece-nos e quando ligamos para saber se é preciso marcar mesa, responde que
para nós há sempre lugar reservado. Havendo sol, ficamos numa mesa lá fora, nas tábuas castanhas e compridas da
esplanada; se frio e chuva, ficamos lá dentro, com os vidros molhados de gotas
doces e de mar... mas sempre sem falhar, como se de um ritual secreto se
tratasse – o de estarmos as duas, Roberta e eu. Amigas de infância, durante dez
anos perdemos o contacto mas, uma vez o reencontro, num café de esquina onde
nunca entráramos antes, mera coincidência não sei, não mais parámos. Roberta
agora casada, mas sempre magra. Roberta agora mãe de filhas, mas sempre criança.
Roberta agora nos quarenta, mas no olhar intenso, no corpo e na postura uma
mulher de trinta, aquela que sempre conhecera: alegre, comedida, tímida na sua
beleza latina. O casal do encontro levanta-se. Quem será ele? E ela? Que paixão
escondida partilham? Que história de amor não podem revelar? Roberta recomeça a
tagarelice, ri, fala das filhas, da escola, dos sobreiros, dos penteados das
miúdas, da azáfama do dia a dia. Do Rafael. O homem que com ela partilha os
suspiros e os desejos.
- És feliz Ana?
És feliz Ana.
A pergunta entra
e não para: Ana, tu és feliz?
És feliz?
És feliz?
Olhamo-nos nos
olhos. O mar fustiga-nos as narinas. Não consigo responder. Uma mordaça
invisível impede-me de responder.
Sou feliz?
A cerveja já não
tem bolhas, vejo de novo o poço escuro, as promessas não cumpridas, os olhos
tristes que me olhavam já sem desespero, numa desistência calma, do que não tem
remédio, e agora não sei, não sei se sou feliz.
Porquê esta
pergunta ao fim de tantos encontros mensais? Porquê esta e não outra qualquer?
Eu não sei se sou feliz. Tenho medo de me perguntar, de analisar, de buscar a verdade, a resposta.
Vejo-me em direcção ao quarto branco, lentamente reparo nas folhas caídas do
diário, nas fotografias que escondo dentro da caixa fechada a cadeado,
amarelecidas, gastas pelo uso dos meus olhos, penetro nos detalhes das imagens
que visualizo, distantes, o vestido branco, uns discos de que me lembro
vagamente, umas músicas a bailarem no vácuo das lembranças - na cabeça um labirinto de incertezas, a chuva
ou as lágrimas a molharem um qualquer jornal esborratado, a cama vazia, a dor
do não-precisar-de-ninguém. Também os cheiros a mogango com açúcar amarelo, as
narinas abertas ao aroma do café escuro, fumegante, e a chuva a bater sem
parar, sem parar, na solidão dos cigarros fumados sempre da mesma forma. O
último suspiro. Fugir é mais fácil, fugir à perda, à invasão do deserto, ao
pensamento do que foi, ao contacto turvo do passado.
Deixei que os
olhos negros de Roberta me trouxessem de novo à realidade, me afastassem da
tristeza congelada, da crueldade do tempo e que mergulhassem nos meus, que os
ouvidos voltassem, lentamente, aos sons da esplanada, que a sua voz suave me
encaminhasse do passado ao presente:
- Não respondes
Ana? És feliz ou não? Porque eu não sou. Tenho tudo e não sou feliz. Tenho
dinheiro e marido e casa e duas filhas maravilhosas e um bom emprego. Mas não
sou feliz.
Parecem-me pedras
no charco. O azul do céu fica mais escuro, impressão minha, as ondas revoltosas
de repente. A música continua a tocar e eu não sei se ouvi ou não, se percebi
bem. Parecem-me palavras sem sentido, as dela, fico doída, o azul esborratado do
mar a tolher-me, devagar, e o sol que se esconde a um canto. Mas penso que sim,
os meus olhos fixos nos dela, penso que sim, que este, afinal, é um dia em que
não podemos fugir, de nós, do que nos pesa, da nossa angústia escondida, da
fuga que nos assusta ou da falta, da tremenda falta do que queremos. Estou
encharcada das pingas de infelicidade de Roberta, a bela.
“When I’m feeling blue... I can
hear your heart beating...”, a música continua a tocar...
2.
JOANA
É Domingo, outra vez. Acordo sozinha como sempre. Gosto
do meu pequeno apartamento, decorado em tons brancos, com uns salpicos de cor
aqui e ali. Adoro a varanda larga e comprida, em u, de onde, um pouco ao longe ou do alto, é
certo, vislumbro o azul da piscina que quase sempre me faz lembrar o mar. O
suficiente para me acalmar quando acordo com pouco alento ou quando me sinto
sozinha ou um pouco mais deprimida. A culpa é dele, era sempre ele que, já na
caminhada sem retorno, me fazia sentir
assim, despida, crua, raivosa, retalhada das mentiras que dizia e que disse até
ao fim. Está tudo bem, sim não te preocupes, eu vou ganhar a batalha. O culpado
do tédio era ele, do bocejo nas esplanadas poeirentas e, agora, das memórias
que não param de me assolar, de me amargar, numa montanha infinita de sensações
desavergonhadamente frias, como a água, como o sem sentir dos objetos que me
rodeiam, assim, ocos, parados, desiludidos. Canso-me deste sentimento frio,
desta incapacidade de alegria, deste gelo nos joelhos. A água, essa que me lava
os copos vazios, que me transforma numa fresta de uma janela, essa, tem a
capacidade de quase me purificar, defender das energias menos positivas que
carrego, que odeio, que me embaraçam. Quando os meus olhos estão vazios, o tapete
rasgado, a folhagem seca, e tudo é definitivamente pouco interessante, mergulho
na água quente da banheira, ou fixo o olhar na piscina azul escura do
condomínio. Vejo-me de novo no mesmo sonho, no jorro quente do nascimento, na
água morna que me aplaca a dor, sabendo que não estou sozinha, que outra vem
atrás de mim, no mesmo jorro, na mesma água morna, no mesmo desejo de luz, que
só uma acaba por ver. Aí, recordo a minha tia que, sempre que me julgava de
olhos mais cinzentos, buscava uma taça com água límpida e, depois de alguma
reza e uns pingos de azeite, benzia e afastava o mau-olhado de que, segundo
ela, eu estava carregada. Calçava sapatos de pano branco ou botins brancos, um
horror, falta de gosto, mas não podia dizer, ela não gostaria e trazia-me sempre
flores, alento, muitas vezes dúvidas sobre o que eu sentia e vivia. Sempre que
vinha a minha casa, libertava-me da ansiedade, nunca duvidei dos seus poderes,
do anel que carregava no dedo, da lanterna que eram os olhos dela. Colocava,
dentro de um copo alto, liso e transparente, água até chegar a dois dedos da
borda, misturava sal grosso, que ia buscar à cozinha, e recomendava uma e outra
vez:
“Deixa sempre o copo atrás da porta da entrada
principal da tua casa, filha. Vinte e quatro horas depois, tens que deitar fora
a água que sobrou e o copo pode ser usado novamente, mas, não te esqueças, o
copo tem que estar bem limpo e a água também. Isto, minha filha, para afastar
os maus fluidos e os invejosos que entrarem na tua casa”.
O condomínio é sossegado, calmo, redondo, rodeado de
espaços verdes com uma pinta azul no meio, que o purifica. Não é o pântano que
muitas vezes vejo de noite quando acordo meio sonâmbula, ávida de algo que me
falta, esfomeada de sentir o que não sei e quero. Às vezes parece o paraíso,
como eu o imagino, o cheiro a jasmim e a ervas pelo ar, os anjos esvoaçando
brancos e brilhantes, a regar a secura do meu peito. Aí quase o sinto sagrado.
Não foi essa a opinião da minha tia quando me visitou pela primeira vez. Disse
até que não devia ter comprado ali apartamento ou coisa alguma. Que os fluidos
eram maus e que isso me traria desordens de caráter físico, a mim e a quem
aqui vivesse. Dizia que os ambientes eram turvos, com um pulsar desordenado e
que as folhas não estavam tão brilhantes quanto deveriam. Afirmou os fumos
negros que só ela via, as moscas fedorentas, sinal de azar, o odor a fruta
podre de quando se está a morrer. Não contente com estas afirmações, não esteve
com meias medidas, foi ao carro buscar a prenda que tinha escolhido para mim
por ter uma nova casa: uma linda pimenteira de tons amarelos e vermelhos, que
colocou do lado direito das grandes janelas, certa de que captaria todos os
maus fluidos que a casa tivesse e eu, de tal facto, teria a certeza se a dita a
qualquer momento secasse.
…
Foi uma sorte ter olhado para os anúncios do jornal da
terra nesse dia, que é coisa que nunca faço. Anúncios descartáveis, como as
cartas que me escrevias quando estavas longe. Agora já não escreves, já não me
deixas inquieta de tanta espera. Quando quero, sei que estás sempre ali,
fechado, naquele canto, naquele lugar para onde todos vamos um dia. Mas nada
acontece por acontecer: os sentimentos, as pessoas, as emoções, as paixões, as
bebidas que tomamos juntos, os filmes que alugamos, o nada que me deixaste, os
cacos de felicidade deitados no lixo. Acasos proibidos, ilusões.
Nesse dia, folheei sem objetivo as páginas do jornal,
sentada no sofá, o cinzeiro cheio de beatas malcheirosas de uma ou muitas
noites mal dormidas, como quando era feliz e esperava que tu viesses, limpa e
calma, a casa a cheirar a comida e a bolo de chocolate. Mas agora não, agora as
taquicardias deixaram de me preocupar, não tenho mais as unhas roídas,
afundo-me na ansiedade do dia a dia, do casa-trabalho, do quotidiano feio e sem
chama, as olheiras fundas de um cansaço que vem de dentro. No sofá, reparo em
letras mais gordas:
Vendo apartamento T2 no Condomínio da Roda
Excelente localização
2 quartos, armários no W.C. e cozinha, 1 lugar de
garagem, sistema automático no portão principal e nas entradas, madeira na sala, 5 anos de uso, único dono.
70.000,00.Euros
Contacto:
Isaac Azenha – 915 904 481
Localidade:Évora
Quartos: 2 quartos
Lugar de garagem: 1
Unidades por andar: 2 por andar
Área (m²): De 60 a 90m²
Valor de Condomínio: 70 euros
O imóvel possui: Armários no
W.C e cozinha, pré-instalação de ar condicionado e lareira na sala
O Condomínio possui: 2 court de ténis, piscina
exterior, sauna, banho turco, espaços verdes, garagens na cave, elevador,
portas com controlo automático, estacionamento exterior
Contacto: isaacazenha@hotmail.com
Durante todo o dia “A Roda” não me largou nem sequer
no consultório. O nome agradava-me, o preço também era bom, não podia deixar
escapar esta oportunidade de sair do local onde vivia no momento, que me
sufocava, me prendia, me deixava em insónias permanentes, que pareciam
espinhos, picos, arestas encontradas em feios barracões das quintas. O nome do
contacto também me trazia reminiscências positivas dos tempos em que Roberta e
eu conversávamos ininterruptamente ao longo da ribeira e em direção às
azenhas. Dizíamos tudo sem vergonha ou pudor, os sentimentos mais descarnados,
o amor de um só dia ou noite, a estranheza da solidão que existe no campo, a
vontade de construir não sei o quê, de destruir as rejeições, os quotidianos
dramáticos, o prazer artificial. Depois despíamos a roupa e mergulhávamos na
ribeira fresca, em risadas de alegria e cumplicidade.
Não é que não gostasse do local ou da pessoa com quem
atualmente partilhava as despesas, mas desejava muito ter o meu próprio
espaço. Outro espaço. Aquele em que me sentisse livre. De memórias, de
segredos, de vivências. Longe de recordações amargas, de recordações felizes,
de perdas ou loucuras. Sei que nem sempre era a companhia ideal e gostava de
uma certa solidão ou calma, sem
intromissões de qualquer espécie, o que se tornava difícil, dividindo o espaço
com uma pessoa tão extrovertida, constantemente a trocar de namorado - que
fazia questão em me apresentar - como a minha companheira de casa. Além do
mais, o nome deste contacto não me era totalmente estranho, mas não sabia bem
onde, ou da boca de quem, o tinha ouvido.
Quando saí, às nove, chego à antiga casa que partilho,
agora, com a interna de medicina e, já
no quarto, ligo ao senhor Isaac Azenha, combino para o dia seguinte a visita ao
dito apartamento. Daí à compra é um mês, que o dono queria vender, sem
especificar qualquer razão, apenas que queria vender. Estranhei, mas o espaço
acolhedor, o fim da tarde, o azul límpido da piscina, o cheiro a flores e a
verde já seco, a setembro, o sossego do local, foram suficientes para não
perguntar coisa alguma.
Vendeu.
(Artista: Malcolm T. Liepke )
Na varanda larga e comprida tenho, ao meio,
três vasos de barro, grandes e redondos, com malvas vermelhas cor de sangue e
daquelas cor de luxúria e brancas também, misturadas em arrufadas que não me
dão muito trabalho e, ainda, uma pequena mesinha em verga verde escura, com duas
cadeiras redondas, também em verga da mesma cor, com almofadas grandes e fofas
onde, por vezes, durante a primavera ou verão, tomo o pequeno almoço ou, nas
noites quentes, uma cerveja gelada. Da varanda partem grandes janelas, em todo
o comprimento da sala, que criam luminosidade e ar também no inverno, enquanto
no outono, deixam antever com facilidade as nuvens escuras que se aproximam no
horizonte, cheias de água ou granizo em dias de trovoada. É na sala que gosto
de me estiraçar no sofá, de andar descalça, escrevinhar umas notas ou analisar
os casos para o dia seguinte, ler. E é na sala que também gosto de praticar
meditação transcendental, técnica que ao longo dos anos me tem trazido grandes
benefícios. Na sala e em qualquer lado. Ao contrário do que muitos pensam,
meditar não é pensar, refletir, analisar, compreender, mas sim o oposto, é calar
o que nos vai na mente e na alma, o que nos persegue mesmo sem querermos, isto
é, é conseguir obter uma total calma interior, uma absoluta ausência, mesmo com
os pensamentos que teimam em aparecer,
mesmo com os sons exteriores que nos assaltam. Difícil. Viajar de fora para
dentro da nossa consciência é um caminho que aprendemos a trilhar com esta
técnica. Não pensar nas vertigens alucinadas, não perguntar as coisas boas que
vivemos, o vago que é, agora, sentir tudo e depois nada. Só assim me aquieto.
Relaxo a mente e o corpo. Só assim me compreendo e me liberto. Só assim, passo da superfície agitada do oceano dos
meus dias, à calma que me oferece a sua profundidade.
Maria Luís Koen
Artista: João Alfaro
Ontem fui à festa de despedida de solteira
da Joana. Joana, a louca. Trago do frigorífico um copo de leite frio, não me
apetece comer nada. Não estou desesperada, não estou nada. É esse o problema,
esta lucidez do nada de especial, do ninguém em particular, este lamurio
contínuo do que não se tem, este caroço na garganta, que não passa. A visão da
piscina redonda e azul lembra-me férias e descanso, fantasias e cansaços. Pouso
o copo na mesinha verde da varanda, sento-me agastada. É bom estar aqui. Acho
que ontem bebi demais… Tenho um fraquinho por gin tónico e abusei. É mesmo bom.
A minha casa é a minha concha, a minha proteção, embora não consiga tirá-lo da cabeça. Já
passaram cinco anos e às vezes não durmo, a cabeça cheia de teias, memórias
perdidas, andando pela casa até de madrugada, agulhas finas que se espetam, que
magoam, difíceis de controlar. A escuridão dos óculos escuros, o cheiro do
cemitério, a outra a chorar como eu. Há barulho na piscina, a que eu chamo, com
alguma ironia, o meu lago. Um lago azul de onde partem ou chegam vários
caminhos, mais precisamente oito, que levam aos diferentes apartamentos do
condomínio redondo, como se de uma roda gigante se tratasse. Do lago chegam
vozes de brincadeira, salpicos de alegria que condizem com o espaço. Fecho os
olhos, saboreio o momento vivo, não tenho saída, não quero beber demais, não
vale a pena arranjar uma razão à pressa para viver, para ser idiota em querer
encontrar o verdadeiro amor, aquele que é eterno. Não existe, é história de
príncipe encantado, cavaleiro montado em corcel branco. Suspiro com um certo
desgaste, como nos dias em que não há trabalho e que, ainda assim, nos sentimos
pesadas. Um peso doentio, que nunca deixa saudade, um pó que custa a limpar, um
vazio de nada querer, nada fazer, nada poder.
Começo a estar cansada das festas de
despedida de solteira da Joana. Esta é a terceira, mas não é o terceiro
casamento. Nem sequer o primeiro e não sei se ela vai ficar por aqui. Quando me
telefonou nem imaginei que fosse mais do mesmo:
- Ana, a minha festa de despedida de solteira
é no próximo Sábado, no “Arriba”. Aparece
cá em casa por volta das dez da noite. Depois conto, aparece.
A Joana sempre me conseguiu surpreender com
as suas maluquices. Boa advogada, independente, mas com dois terríveis defeitos:
falar demais e adorar homens. Sim, sempre procurou conquistá-los mas,
conseguido o feito... acabava o romance, o amor, como ela diz. De facto, nunca entendi
bem este lado tão exageradamente sensual de Joana.
“O que queres, Ana? Não consigo evitar,
aqueles olhos verdes ... aquela boca ... aquelas mãos ... quero tudo para mim, por
toda a minha vida. Este é o tal, Ana.”
Quantas vezes ouvi estas palavras ou similares?
Sorrio. A Joana não é bonita. É cor de chocolate de leite, baixinha e um pouco
roliça, mas tem um charme e uma sensualidade felina que põe de lado qualquer
mulher. Quando ela anda, eles olham. E quando ela fala... não conseguem evitá-la. Um perigo ambulante, como gostam de me confidenciar. “Quando casar aquilo passa”, dizia-me em
segredo a avó. “Eu também era assim. Até que conheci o meu homem e me perdi de
amores por ele. Aos quinze anos fugi para a mata para me encontrar com um rapaz
de quem muito gostava e só parei quando, na Praça, um homem me deu tal encontrão, que deixei cair as maças. Foi fulminante, filha. Tiro e queda. Até ao dia em que ele morreu não quis outro homem”. O avô de Joana não era
homem pobre, a herdade onde vivia era grande como ele, como a vontade dele, as
viagens e as mulheres que tinha sem conhecimento da esposa, pensava ele. Mas a
avó de Joana sabia. E sofria. Minguava a
olhos vistos, mas sorria. Anos e anos sorriu e dormiu com ele, amou-o cheia de
dor, de desespero, de raiva. Amou-o de solidão, amou-o até um dia, seca de
paixão, ele morrer. Talvez que a Joana tivesse herdado essa costela passional da
avó, do avô as inúmeras paixões descartáveis, consideradas mais masculinas do
que femininas. Por isso, era muitas vezes criticada, em especial por colegas
invejosos ou por mulheres mal amadas, mas ela somava e seguia. Como me dizia a
avó: “Enrolados num cordel chegam até
Portel!”. Já teve namorados e noivos de todos os géneros e feitios. Mas todos com um denominador comum: sempre engenheiros. Poderia chamar-lhe fetiche e, quando abordo
essa questão, ela ri e diz que não sabe a razão de tal tendência. Talvez porque
goste de números, opostos a uma carreira de letras, como a dela. Para não
variar, o futuro marido é engenheiro. Não, não sei como ela os conhece, só sei que se apixona por eles e depois os deixa.
(continua)
...(continua)
Gostei do Miguel. Não senti qualquer agressividade relativamente a ele. O meu coração não se
engana. Fiquei até com uma pontinha de inveja… mas namorado de amiga é sagrado!
Do gostar, da pontinha de inveja, passei rapidamente a um sentimento de pena. Pena
dele. Quem diria? Pena que as janelas se fechem, que a toalha branca do chá
fique manchada, que a planta morra sem água. Que o lume se apague. Que oiça o
barulho das cordas na madeira, a terra a bater, seca. Mais um para a fogueira
de vaidades da Joana, pensei. Que fazer para ajudar aqueles lindos olhos verdes
sem trair a minha amiga ? Não é que não tivesse vontade mas… Não, não. Vou ficar quietinha no meu canto. Afinal solidariedade feminina é solidariedade feminina.
Quase meio-dia e ainda nem banho tomei. É Domingo e não tenho nada de especial para fazer. Estava esquecida. Dentro de meia hora a Joana vem buscar-me. Combinámos um almoço com a Júlia no “Froscas”. A Joana não tem emenda mesmo... Logo no “Froscas”... O dono do restaurante foi amante dela... E que amante! Palavras dela, não minhas. Vou arranjar-me. Não vejo a Júlia desde que me telefonou para o consultório. É raro isso acontecer. Pressinto que ela quer dizer-me algo de importante. Talvez seja só uma intuição errada. Ou não. Como a do vaso que se partiu naquela madrugada, tal velha da aldeia, sempre de preto, a chorar o marido morto. Era Domingo de manhã, os sinos tinham tocado, o ar não tinha movimento e o meu coração sabia que era o dia, a hora, o momento. Perde-se tudo de repente.
Quase meio-dia e ainda nem banho tomei. É Domingo e não tenho nada de especial para fazer. Estava esquecida. Dentro de meia hora a Joana vem buscar-me. Combinámos um almoço com a Júlia no “Froscas”. A Joana não tem emenda mesmo... Logo no “Froscas”... O dono do restaurante foi amante dela... E que amante! Palavras dela, não minhas. Vou arranjar-me. Não vejo a Júlia desde que me telefonou para o consultório. É raro isso acontecer. Pressinto que ela quer dizer-me algo de importante. Talvez seja só uma intuição errada. Ou não. Como a do vaso que se partiu naquela madrugada, tal velha da aldeia, sempre de preto, a chorar o marido morto. Era Domingo de manhã, os sinos tinham tocado, o ar não tinha movimento e o meu coração sabia que era o dia, a hora, o momento. Perde-se tudo de repente.
(continua)
Maria Luís Koen
3.
JÚLIA
O “Froscas” é um restaurante típico, bem
situado, numa zona central da cidade, famoso pelas suas noites de fado e de
canções, às vezes modas, nunca esperadas, vindas de quem lá aparece para comer.
É discreto na decoração tipicamente alentejana e também discreto na iluminação
e até na loiça que usa, toda de barro. Tudo está sempre bem confecionado, a
doçaria é excelente, os empregados q.b. de simpatia. Foi comprado pelo
engenheiro Ruivo, homem moreno, com bigode muito português, por quem a Joana se
apaixonou numa noite de comes e bebes depois de um caso que no Tribunal lhe
dera muito trabalho mas que acabara por conseguir a favor do seu cliente. O
Ruivo, como tantos outros, não conseguiu resistir ao charme um pouco sensual e
louco de Joana e, nessa mesma noite, depois de várias ofertas da gerência da
casa, acabaram os dois na mesma cama e no seu apartamento. O romance ia de vento em popa e, uma semana após a festa de despedida de solteira da Joana, toca o telemóvel - era o Ruivo. Como explicar a um homem, português de
bigode, machista o suficiente, para quem as mulheres são seres frágeis e difíceis
de entender, pertença do macho e apenas isso, os medos e as paixões de Joana?
Vamos no carro, um Audi A4 azul escuro, e
ela não para de falar. Embora se diga que a mulher fala muito mais do que o
homem – divago - de qualquer forma, e sem abordar um tema especifico, nos
Estados Unidos onde fazem estudos sobre tudo e mais alguma coisa, um professor da
Universidade do Arizona investigou esta questão. Também no México, um grupo de
psicólogos decidiu saber se é de facto verdade que a mulher fala mais do que o
homem. Curiosamente ou não, o estudo veio provar que esta “tese” está errada e
que, na verdade, há apenas uma diferença de sete por cento no que respeita ao
número de palavras ditas pelos sexos masculino e feminino. Ora um tal número é pouco
ou nada relevante em termos estatísticos. Joana não entrou nos referidos estudos,
é certo, e a verborreia continua: casos do tribunal, pessoas que não conheço, dramas
dos clientes, uma qualquer associação que quer formar, do vestido que vai
comprar – Achas melhor branco ou creme, Ana? - da boda, do apartamento do
Miguel e da mobília dele que ela detesta, do avô que está quase morto e só
pensa em mulheres, da avó que doentiamente só pensa nele. Uma grande mistura de
palavras, personagens, temas e situações, que formam um grande novelo
emaranhado, um todo sem nexo à primeira vista, mas que acaba por tecer um
estreito fio conducente a uma teia cada vez maior, de que faço também parte,
mesmo sem querer. E o ciclo vai-se repetindo, situações que já vivi,
sentimentos que já partilhei, coisas em que já acreditei. Ela fala sem parar e
eu não sei, não percebo este rumo, não acredito neste amor de que ela fala, nos
sentimentos sem um fim, na felicidade sem limite. E as palavras dela batem no
meu destino, que não sei qual é, talvez até saiba, na minha luta íntima, do que
esperei e não consegui. Do que esvoaçou e perdi.
-Tu decides, Joana. Da última vez dei a minha opinião e não houve casamento. E, já agora, porque vamos ao Froscas? Achas que o Ruivo vai ficar contente por te ver? Sabendo que vais casar e que o deixaste há seis meses sem uma explicação que se perceba?
-Tu decides, Joana. Da última vez dei a minha opinião e não houve casamento. E, já agora, porque vamos ao Froscas? Achas que o Ruivo vai ficar contente por te ver? Sabendo que vais casar e que o deixaste há seis meses sem uma explicação que se perceba?
Eu sei que não sou bonita como a Roberta,
nem sensual como a Joana, ou inteligente como a Júlia, mas… de todas as minhas
amigas sou a única com um pingo de bom senso. Daquele bem seco, sabido,
conhecedor de ratoeiras, e de almas podres, bafientas, sujas e tristes. E o bom
senso diz-me que ir almoçar ao “Froscas”, neste Domingo com cheiro a trovoada,
não é uma boa escolha. Ana, a intuitiva, a falar. Tenta compreender em vão pois
Joana já combinou e reservou mesa em nome da Dra. Júlia Ribeiro, brilhante Juíza
da terra.
Que diferente era a Júlia dos tempos do
Secundário – demasiado tímida para se expor, demasiado introvertida para falar
em público. E agora…
Júlia foi e é uma grande admiradora da
Dra.Ruth Garcez, a primeira mulher juíz de Portugal. Por tanto a admirar, decidiu-se
por frequentar Direito e depois ingressou no curso de formação inicial de
magistrados, ministrado pelo CEJ - Centro de Estudos Judiciários, optando pela
Magistratura Judicial, ao contrário de Amélia que optou pela Magistratura do
Ministério Público. Sempre que a vejo sinto-me pequena. Júlia é brilhante e inteligente. Os olhos azuis, ora claros ora escuros, dizem tudo. Fala
rapidamente e o tom de voz, apesar de calmo, é objetivo e incisivo. Tem uma
vida boa, alguns sobressaltos, nada que não consiga superar, e três filhos adolescentes
lindos. Às vezes fico a pensar como seria bom se eu tivesse filhos. Sobrinhos não é a mesma coisa. Será o relógio biológico?
(continua)
Maria Luís Koen
...
Joana estaciona o carro e, às oito em ponto,
entramos no restaurante. Reparo que o olhar dela brilha e que, disfarçadamente,
procura alguém que não está. Júlia acena da mesa onde se encontra sentada. Não
parece ter cinquenta anos. Os olhos, hoje azuis escuros, condizem com o
conjunto turquesa e sorri. Escolhemos vinho da Herdade do Esporão e carne
grelhada. A conversa caminha e salta por temas diversos, uns mais, outros menos
fúteis, desde a atualidade política, a casos ligados à profissão, passando
pelo apartamento que Júlia comprou depois da separação, do tempo que levou a adaptar-se
à nova situação de divorciada, à falta de alguém com quem conversar e
partilhar, da solidão, do sofrimento calado, dos medos que a assolaram, do frio
nas costas quando se deitava do mesmo lado da cama, nunca ao meio ou do lado
onde ele dormia, das reações diferentes dos filhos e como conseguiu que estes
passassem pelo divórcio de um modo o mais pacífico possível, do tempo que
demorou a recompor-se do golpe, de como se colou à nova vida de solteira, terminando
no assunto principal: o casamento de Joana. Afinal a madrinha é a Júlia e há
certos pormenores que elas gostam e querem discutir. Na verdade, nem sei porque vim também. Teria ficado melhor em casa mas, por outro
lado, quando estamos juntas estamos bem, sentimo-nos mais fortes, mais
apoiadas, mais seguras, e acabamos por
nos habituar às singularidades e diferenças umas das outras. São estas que nos
aproximam. A conversa aborrece-me um pouco e acabo por divagar, durante
segundos apenas pois Júlia não resiste:
- Por favor Joana, casa com separação de
bens. É o melhor que tens a fazer. Repara no que aconteceu comigo. Ele, com as suas míseras traições, levou-me metade de tudo o que era meu.
- Não significa que aconteça o mesmo com a Joana,
digo, ou que os homens sejam todos iguais.
Mentira descarada, palavras falaciosas, nó
que se atravessa na garganta. Não há psicanálise que cure esta vontade de
batalhar inutilmente contra a maré, de iluminar as ruas escuras. O culpado é
ele, por me sentir sempre assim, por não ser capaz de parar, por não passar duas
horas por dia no ginásio, por não conseguir começar uma relação, que acaba sem
ter começado. O medo de ficar exausta e cega, de não ver os sinais, da cabeça a
ferver, das notícias tristes.
- Não sejas ingénua, Ana. Acorda para a
realidade. Este é um mundo de homens, feito por homens, para os homens. As
mulheres, algumas, começam agora a despertar. E a realidade é que os homens têm
no sangue o gene da traição. Mais tarde ou mais cedo, ela acontece.
E insiste.
- Joana, vais casar-te, portanto prepara-te
para te sentires enganada e traída.
- Não digas isso, Júlia. Nem todos os casos
são como o teu, digo.
Mas são. Vontade de dizer que são, mas não
digo. São como o dela e como o das outras. Vontade de destruir algo, mas não
faço. Vontade de requintadamente fazer mal, querer que chorem, que amaldiçoem o
dia, que saibam que é tempo perdido. Eles vão, partem de uma maneira ou outra,
partem sempre, ficam as culpas intermináveis, as memórias doces, doentias, as
flores brancas nas campas. …
(continua)
Maria Luís Koen
Amedeo Modigliani
O ex-marido de Júlia, Pedro, agora juiz no
Tribunal de outra Comarca, foi sempre um rapaz certinho e estudioso. Raramente
ia a festas, saídas à noite não gostava e, quando entrou na Faculdade de
Direito, quase se tornava eremita não fosse Amélia, sua prima, que de vez em quando
o obrigava a umas saídas. Fora precisamente numa dessas saídas com Amélia que a
nossa relação com o Santo, como gostávamos de lhe chamar, se tornou mais
estreita. Amélia, também estudante de Direito, tinha uma amiga especial com
quem partilhava o quarto: Júlia.
Júlia apaixonou-se loucamente por Pedro na
primeira noite em que o viu: completava vinte anos e decidira fazer uma pequena
festa de aniversário para os amigos mais chegados. Já ouvira vezes sem conta
falar de Pedro, pois Amélia era quase uma irmã para ele e falava muitas vezes
do rapaz, por isso, pedira a Júlia permissão para o levar à sua festa de
aniversário, numa tentativa de o socializar e de o tirar de casa. Nessa mesma
noite, assim que o viu, Júlia hipnotizada, tomou a decisão de o conquistar. Não
foi difícil, pois Pedro não era muito experiente com mulheres e, ao ver-se
assim assediado, resistiu pouco. Passados doze meses de namoro as famílias já
se conheciam e o casamento estava marcado: para o final do estágio. Três filhos
passados, fiquei admirada quando recebo um telefonema de Júlia no meu
consultório: estava em prantos. “Ele enlouqueceu, Ana. Só pode ser isso. Tens
que vir aqui avaliá-lo. Leva-o para um hospício, para um hospital de loucos!” Nessa
mesma tarde, com urgência, encontrámo-nos no Café do Hotel da Cartuxa para
uma conversa urgente. Li - lhe o desespero e a raiva nos olhos. “Leva-o, Ana,
que ele não está bem”. Levo-a comigo para casa, que quem não estava bem era
ela. A cara não enganava, o olhar também não. Liguei a televisão para amenizar
o ambiente, ela foi direta para a casa de banho vomitar, chorar, gritar:
“Leva-o para um hospício! Leva o cabrão!! Leva-o!” Fui até à casa-de-banho, dei-lhe um copo de
água que atirou ao chão. Depois pareceu
ficar mais tranquila e disse: “Ele anda com uma puta qualquer, Ana, uma puta da
pior espécie. Eu bem os vi a arrotar de volúpia, eu bem os vi. Como pôde ele
fazer-me isto?”. Fiquei a saber que Pedro, o Santo, queria o divórcio, pois
tinha outra mulher.
(Continua)
Maria Luís Koen
Gianni Strino
- Mas porque choras? Homens é o que não
falta por aí, dizia para a animar. Tu és linda e inteligente, ganhas bem, és
independente, podes refazer a tua vida sentimental com rapidez, se assim
quiseres.
Por tudo isto ela ainda se sentia mais
irritada por dentro. Pensava no seu orgulho ferido e não procurava perceber o
porquê de tudo aquilo. Quando voltou para casa, meio cega de dor, raiva,
desespero, procurou nas gavetas os álbuns e rasgou todas as fotos do casamento,
as cartas que ele lhe tinha escrito quando ainda namoravam, partiu as pulseiras,
deitou a aliança na sanita, destruiu os lençóis da cama, espezinhou as roupas. Gritou
no vazio da casa, fumou cigarros ininterruptamente e bebeu para esquecer. Quis
também apagar os cheiros, as imagens e as recordações. Chorou por não
conseguir. Anestesiou-se em comprimidos para dormir. Chorou muitos dias mais,
quando ninguém via, até uma manhã qualquer acordar e dizer: Basta! Os olhos não
mais se encharcaram, mas a angústia continuou por tempo indeterminado, o nó na
garganta. O vazio também. As recaídas de
pena de si mesma aconteceram amiúde. Deixou, no entanto, de haver raiva ou
ódio. O nó permanente na garganta, porém, continuou, a mágoa, a ferida por sarar,
luto continuado de marido vivo – ferida de combustão lenta, de evolução
sofrida. Não podia dizer: “Estou triste porque o meu marido morreu”. Mas
estava. Triste porque o marido morto, estava vivo. E as perguntas, sempre as
mesmas, continuaram a perturbá-la - por que é que o Pedro arranjara outra mulher?
Onde tinha falhado? Não era feia, considerava-se brilhante, entendiam-se bem
sexualmente. Da raiva, da interrogação, do desespero, passou pela solidão,
ansiedade, até fadiga. É o luto, a dor demonstrada da separação.
- Porquê, Ana? Onde falhei, Ana? Tenho tudo
e não tenho nada. Sinto-me totalmente vazia, oca, ferida de morte.
Não soube responder. Apenas quando conheci
a “puta”, mulher de Pedro, certa vez que os encontrei no “Froscas” e pude
conversar um pouco com o casal, só nessa altura pude dar resposta às perguntas
de Júlia. E entendi tão bem. A puta não era tão intensa e brilhante e
inteligente como Júlia mas, ao contrário desta, era meiga e de uma doçura capaz
de encantar o mais empedernido dos seres humanos. Pedro sempre vivera dominado
por Júlia, mulher de personalidade demasiado forte para ele, um homem
corpulento mas dócil. Ele admirava Júlia e sentia-se dominado por ela. No dia em que conheceu a puta, num acidente de viação um pouco grave, tudo
mudou para ele, para a puta da enfermeira que se tornaria na sua segunda mulher
e para Júlia.
- Pedimos sobremesa? Três saladas de fruta, por favor.
E eis que o Ruivo entra. No ar cheira a
tensão. Eu e Júlia trocamos olhares. Esperamos um turbilhão de sentimentos,
gestos ou palavras. Ele aproxima-se da nossa mesa. Sinto a palidez de Joana. Continuo sem perceber porque ela quis vir aqui.
- Boa noite minhas senhoras.
Ela levanta-se, dá-lhe um estalo e sai
porta fora.
Maria Luís Koen
Basi Mateo
4 .
ANA
É meia-noite, já passa. A televisão está ligada mas sem som, a música que se ouve, ao longe, vinda de um outro apartamento, não me ajuda na leitura. Leio "A Terceira Rosa" de Manuel Alegre. Tento, porque não consigo concentrar-me. Penso naquele estalo que me deixou perplexa. Nem eu nem a Júlia entendemos o que se passou. Joana saiu porta fora, sem explicação. Até agora não telefonou a qualquer uma de nós e o telemóvel está sempre desligado. Voltámos para casa logo após o ocorrido. Júlia não quis subir e ainda bem. Não me apetecia muito conversar. Tomei um duche quente, vesti o pijama, tentei preparar umas coisas para segunda-feira mas não consegui. Agora já estou deitada e penso que o dia de amanhã vai ser longo e aborrecido. Vou ter que telefonar à Roberta, combinar um café ao fim da tarde. Pressinto, pela voz, que não está nada bem. A minha profissão também não me ajuda – nem este hábito de conseguir ver para além do normal. Há quem lhe chame pressentimento, algo incompreensível para muitos, uma espécie de antena interior que uso para ver por dentro, ver o que muitas vezes não querem mostrar. Às vezes tenho medo. Medo do que não quero ver, medo do que vejo e não aconteceu ainda, medo das sensações que a visão me traz.
Anyes Galleani
Quando estudei Carl Jung na faculdade, aprendi que este considerava a intuição uma atividade psíquica característica dos seres humanos. Para ele, a intuição é um fator chave para podermos compreender a mente dos seres humanos. Não só a intuição, mas também outros fatores, como a sensação e o sentimento. Para entender a mente de um ser humano há que considerar todos estes aspetos. Na altura li o que pude e consegui sobre este tema, mas agradava-me saber que Jung dizia que a intuição acontecia, não a partir do nosso consciente, mas sim do inconsciente, e era um fator fundamental para a construção da nossa personalidade. Por isso, deixei de estranhar e nem me assusto já, ou fico perplexa, quando surge em mim, numa qualquer ocasião e a propósito de nada, uma sensação rápida e inexplicável, uma intuição, algo que me acontece sem um particular esforço ou premeditação. A cena no restaurante não me sai da cabeça e, apesar deste dom que julgo ter, não consigo perceber, intuir ou sequer antever, razões para o ocorrido. Ainda me levanto, já são duas da manhã, aqueço leite no micro-ondas, junto um pouco de chocolate, bebo devagar, enquanto oiço o relógio pendurado na parede da cozinha. Lembra-me outros relógios, outras horas passadas em tormenta, horas que nunca mais passam, minutos doridos de espera, incansavelmente lentos, pelo segundo em que tudo acaba. Vou até à sala, abro as janelas largas da varanda, mas o lago escuro não me acalma, não me aquieta. É aquela desorientação a que não me habituo nunca, aquele estar sem saber como, aquele não se sabe bem o quê que não está bem, aquela dor que não o é mas que aflige, contínua e surda. Entro de novo, volto a ligar a televisão, mas nada me prende a atenção. Arrumo o que vejo fora do sítio, como que alucinada, em gestos automáticos do tudo para preencher. São os olhos vazios dele que vejo, o silêncio que se interpôs no caminho, as emoções que não se mostram, a pele fria de tanto gelo, cera que ainda sinto. Vejo as palavras amargas e tristes a saírem da sua boca, que eu já sabia há muito, os gestos que não se fizeram, os comprimidos. A ventoinha cor de metal gira, finos aros juntos em encruzilhadas quase perfeitas, que formam teias de vento. Aquela falta de algo que me agonia, aquele silêncio de que não gosto, que me incomoda no vazio da sala grande. O cigarro nas mãos trementes dele, já quase no outro lado da vida, preso num fio invisível e cinzento. A morte pode ser imperfeita.
Adormeço com a cabeça num turbilhão.
(continua)
5.
Há uma química inequívoca entre os dois.
Ela deseja ser a capa que ele amacia, o tapete onde se
estende. Quer sentir o cheiro e as mãos. O corpo a arder, é isso que deseja.
Ele também. Percebe-se no olhar, na boca, nos gestos. As palavras que não diz,
ou diz de outra forma.
E este quero não quero, vejo não vejo, sinto não
sinto, continua.
Hoje conversam, amanhã vêm-se na normalidade da casa
dos amigos ou conhecidos. No meio de risos e bebidas e algumas descobertas,
ambos sentem o íman que os atrai.
Ele sente mas não avança, ela sente mas não diz. E
assim caminham nos meses, sem se tocarem.
- Ai Ana, nunca senti um desejo assim, que me consome
nos dias e nas noites, todas as horas e todos os minutos.
- É amor, Roberta?
- É loucura. A loucura de querer saborear aquele mel.
Invejo-a. Também quero sentir como Roberta – com todas
as emoções.
E a pergunta volta-me à memória:
És
feliz, Ana?
Eu não sei se sou feliz ou se a felicidade existe.
Vivo momentos de felicidade, como vivo obscuras raivas e profundas tristezas.
- Vou fazer tudo para estar com ele. Sim, Ana, eu sei
que sou casada mas aqueles lábios não me saem da cabeça. De noite e de dia, o
mesmo pensamento teima em perseguir-me. Chega a ser desumano, compreendes?
Olhamo-nos como sempre em frente ao mar. Ali há sempre
vento e é sempre maio.
- Não sei que diga nem se compreendo: uma paixão assim
nunca foi sentida por mim. É demasiado avassaladora para a minha pacatez sentimental.
Minto, minto, minto. Tenho vergonha de tanta mentira,
deste engano piedoso, deste suicídio lento que me acomete. Tenho vergonha desta
descontração, deste choro escondido e lento, desta falta de coragem, deste
disfarce inventado. Das palavras sem cor que pronuncio, acumuladas em anos a
viver numa caixa cheia de recriminações, de dores doentias, de atrofias
tortuosas, estranhamente falsas. Sempre tive medo de sentimentos abismais, de
me prender demasiado, de me expor. A paixão aterroriza-me, mas também me leva a
invejar e a querer experimentar ondas de loucura sem medos, sem feridas de
morte, sem arpões cobertos de sangue, sem choros sentidos, sem beijos
encantados. Justifico-me com o estou mais habituada a ouvir, muito pouco a
criticar. A escuridão dos olhos de Roberta, no entanto, diz-me tudo: agora não
vejo dor na sua palidez, mas muito ardor.
Linzi Louise
6.
JOANA
O bar restaurante toca música dos anos sessenta, que convida a
uma certa melancolia. Uma nuvem de fumo perfura o ar, mas ninguém parece notar. Olhos
que parecem todos iguais, não há diferença, não há distinção nas luzes que nos
tornam um pouco sobrenaturais. Os sons das palavras são abafados pela música e
apenas nos apercebemos do início ou do fim das mesmas, os lábios a mexerem em
conversas de mudos. O barman ruivo, talvez de origem escocesa não sei, parece
vindo de um outro tempo, o do barba-azul. Tenho sede. Traz-nos as bebidas e
quase imagino serem portadoras de uma qualquer potencialidade mágica. Sede do
que não tenho, sede da loucura que elas pensam que eu não conheço, sede do
intenso que provoca a cegueira. Somos cinco: umas com sede do que já viveram,
outras com sede do que sentem que lhes faz falta. Mulheres completamente
diferentes na personalidade, no vestir, na profissão. Mulheres incomuns e tão
comuns aos olhos dos outros. Tão belas ou tão chiques, tão misteriosas ou tão
claras. Somos nós, eu sei que somos nós mesmas quando estamos juntas, quando
gostamos de con -ou- desconversar, com ou sem domínio, de rir ao som da música e de estar, aqui ou
ali, mas estar. Uma grande amizade
torna-nos cúmplices, apesar das nossas divergências e diferenças. E essa
amizade torna-nos mais fortes e poderosas, quase um clã feminino.
Desta vez foi Joana quem telefonou.
andre kohn
-Vamos sair um pouco. Precisamos todas de rir um
bocado e beber uns copos, Ana. Vou telefonar à Roberta, à Júlia e à Amélia. Às
dez e meia na minha casa ou, se preferirem às onze no bar da Rua 16.
- Bar da Rua 16??
Na verdade, sinto-me cansada e seria melhor ficar no
sofá e terminar a Terceira Rosa, mas,
por outro lado, o dia duro que tive no consultório leva-me a querer tirar da
cabeça histórias e dramas quotidianos. A ideia de Joana acaba por me agradar
sobremaneira. Tomo um duche rápido que me revigora e, enquanto passo hidratante
no corpo, penso no pobre Miguel. Não sei porque me lembrei dele.
O escocês ruivo olha-nos um pouco de soslaio. E não é
para menos. Somos cinco mulheres que dominam o ambiente essencialmente
masculino. Coisas de Joana, a advogada feminista que gosta de provocação. Jogo
perigoso.
Quando cheguei ela já lá estava. Havia escolhido a
mesa central. O bar restaurante estava decorado em tons de azul cor do mar
revoltoso e branco, um balcão cor de areia, comprido, a contrastar. Quando telefonou pediu que fosse vestida de
branco.
- Branco? Sabes bem que não tenho roupa dessa cor!
- Vem de branco e vem bonita.
O que me obrigou a ir à boutique onde vou sempre
tentar comprar um fato branco. Felizmente que a Berta da boutique ainda tinha
dois em stock: calça e casaco que realçavam a minha figura. Berta tornou-se
numa amiga de tantos anos a visitar, de tanto me aconselhar, de tanto
confidenciar. Mas não parecia ela. Um olho arroxeado tornava-a diferente. De
uma queda, batera no vão, uma infelicidade, um azar apenas estético – foi a resposta
quando a questionei sobre o assunto. Na verdade não fiquei muito convencida, os
olhos não mentem, mas estava com alguma pressa e deixei o assunto arrumado para
mais tarde. “Volto depois para pagar, Berta”.
Sapatos castanhos e mala a condizer com os cabelos cor
de mel, a cair a meio dos ombros e olhos sombreados, foi assim que o barman me
viu entrar. Não fora o perfume favorito e o batom suave, e não me teria sentido
tão segura ao ser nitidamente esventrada por mil olhares, até me sentar ao lado
de Joana.
- Mas, porque escolheste este bar? Parece que só vejo
homens.
- Ó Ana, e isso importa? Sorriu, vestida sensualmente
num vestido branco decotado. Cabelo curto, castanho escuro avermelhado, com
madeixas, era aquela Joana enigmática e felina que os homens tanto queriam e
temiam.
Entretanto chega Roberta, fato saia e casaco branco,
lenço de seda preto e branco, cabelos negros compridos, olhos escuros de
pantera, que sorri para nós, de imediato acenando para Júlia, que espera por
Amélia.
Júlia, olhos azuis a condizer com a bijutaria, a blusa
branca com decote e a saia branca e justa a cobrir as botas brancas e, por fim,
Amélia, cabelo louro escuro, olhos verdes, sorriso franco a condizer com a saia
plissada e a blusa arrendada, brancas. Rimos as cinco porque nos achamos
bonitas e a ideia da Joana de irmos as cinco de branco foi seguida à risca,
formando um conjunto agradável ao olhar e que transmitia alegria e boa
disposição. Nestas alturas sentia-me sempre feliz, como se a carga do luto se
desvanecesse, e, secretamente, me sentisse de novo viva e com vontade de mais.
Uma paz que chegava devagarinho, subia pelo corpo até ao coração, um sol que
despontava de mansinho.
O barman tenta, ao que parece sem grande sucesso,
responder às múltiplas solicitações de alguns clientes e, talvez já irritado,
decide oferecer-nos uma bebida no intuito de evitar a curiosidade alheia.
Mas nós também estamos curiosas. Muito curiosas mesmo.
Queremos saber a razão da estalada no Ruivo, da cor branca, daquele bar e se o
noivado com o Miguel continua.
É jogo?
Maria Luis Koen
- As bebidas são por conta da casa, senhoras.
- Aqui podemos dançar?
- Sim, senhoras.
Mas não dançamos.
Um homem entra no bar e, sem cerimónia, avança em direção ao disk-jockey, que parece ter entendido ser melhor não protestar. A música para e a voz do homem anuncia que a cerimónia terá lugar dentro de cinco minutos. O barman deixa uma garrafa de champanhe em cada mesa e o número de copos correspondente ao número de pessoas que aí se encontram. Olhamos umas para as outras sem perceber a razão da festa, apenas Joana sorri, parecendo entender tudo ou esconder algo. O homem que entrou no bar volta a anunciar ao microfone que a cerimónia se vai realizar e que as damas de honor se podem dirigir ao palco. Diz estas palavras olhando para nós, enquanto o escocês aparece com um lindo bouquet de rosas, cor dos sapatos de Joana.
Só nessa altura entendo o que se vai passar, mas nem tempo tenho para dizer algo, uma vez que somos obrigadas a ir até à espécie de palco, com um sorriso nos lábios, enquanto Miguel de olhos verdes, aguarda que Joana se lhe junte. Ainda não estou em mim com tamanha surpresa! Os olhos de Joana brilham de felicidade, enquanto os amigos mais chegados de Miguel continuam a chegar. Agora que olho com mais atenção, reparo que o escocês está vestido a rigor, que as mesas do bar têm todas uma pequena jarra com um bouquet de flores brancas e vermelhas e que a clientela é, afinal, selecionada.
Um homem entra no bar e, sem cerimónia, avança em direção ao disk-jockey, que parece ter entendido ser melhor não protestar. A música para e a voz do homem anuncia que a cerimónia terá lugar dentro de cinco minutos. O barman deixa uma garrafa de champanhe em cada mesa e o número de copos correspondente ao número de pessoas que aí se encontram. Olhamos umas para as outras sem perceber a razão da festa, apenas Joana sorri, parecendo entender tudo ou esconder algo. O homem que entrou no bar volta a anunciar ao microfone que a cerimónia se vai realizar e que as damas de honor se podem dirigir ao palco. Diz estas palavras olhando para nós, enquanto o escocês aparece com um lindo bouquet de rosas, cor dos sapatos de Joana.
Só nessa altura entendo o que se vai passar, mas nem tempo tenho para dizer algo, uma vez que somos obrigadas a ir até à espécie de palco, com um sorriso nos lábios, enquanto Miguel de olhos verdes, aguarda que Joana se lhe junte. Ainda não estou em mim com tamanha surpresa! Os olhos de Joana brilham de felicidade, enquanto os amigos mais chegados de Miguel continuam a chegar. Agora que olho com mais atenção, reparo que o escocês está vestido a rigor, que as mesas do bar têm todas uma pequena jarra com um bouquet de flores brancas e vermelhas e que a clientela é, afinal, selecionada.
Joana, a louca, acaba de me surpreender.
Maria Luís Koen
7 .
Ao ver o desejo nos olhos dele, ela pressiona-o. Vezes
sem conta ela dá a entender que quer sair com ele, quer estar com ele de outra
maneira. Mas a resposta não é a desejada. Andam em círculos como se seguissem
um caminho, labirinto sempre o mesmo, raios opostos de uma roda sem domínio,
que não para. Roberta hoje e amanhã vai dizendo o que quer. Eu vejo. Ela diz
que ele não vê ou não quer ver. Até que um dia, os círculos se juntam, raios de
uma teia, um choque em labaredas de beijos que não conseguem parar. Há toques e
corpos que se fundem em ânsia. Rodam juntos uma e outra vez, esquecendo as
pedras no caminho, o restolhar de conversas invejosas e maldizentes, o amor a
vaguear.
- Ana, não consigo parar. Ele consome-me o corpo e a
alma. Vejo-me a inventar palavras e situações só para estar com ele.
- Cuidado Roberta.
- Eu sei, sei que não posso nem devo, que as pessoas
vão falar, mas também sei que ele me faz viver, renascer. E, por mais voltas
que dê, é ele que eu saboreio nos sonhos de solidão.
corinne reignier
8 .
AMÉLIA
Sentada no sofá da minha sala, penso no que posso
fazer por Berta. Não acredito que ele lhe tenha dado um murro, mas deu. Um de
muitos, ao que parece. O divórcio é certo, a Joana encarrega-se das questões
legais, mas ficam as dores invisíveis, aquelas que não se tratam com
paracetamol, que deixam marcas sem cor, que sangram por dentro. É aí que entro.
E vou ajudar como ajudo muitas outras.
São prisioneiras do medo, sem esperança. Eles em liberdade, elas vítimas
e fugitivas eternas. Muitas vezes em casas de abrigo com os filhos, fogem ou
escondem-se de uma rotina de maus tratos. Mas querem recomeçar, têm direito a
isso e à vida. Concentro-me no que me espera amanhã. Não consigo. Berta não me
larga a memória. Triste por ela, triste por acontecer, ainda, todos os dias, a
tantas mulheres. Um inferno. Olho para o aquário grande na parede oposta ao
sofá. Os peixes são uma terapia para mim, mais uma que me ajuda a remexer no
lixo, nesta contínua dor dos outros que é minha, deste medo de morrer sozinha, como
eles. Basta estar dez minutos a olhar para os seus movimentos silenciosos e o
stress desaparece, a ansiedade também. O meu aquário é a minha tranquilidade ao
fim do dia, quando a tenho. Quando me perco nos seus movimentos calmos e de
súbito rápidos, quando me hipnotizam através do vidro, aí, esqueço o escuro da sepultura fechada, com
ele lá dentro. Foi a melhor prenda alguma vez recebida. Embora no início
tivesse ficado um pouco aborrecida, depressa esse sentimento deu lugar a outro
bem mais positivo. Volto aos papéis. Releio os apontamentos sobre a paciente
das nove: a POC pode transformar e infernizar a vida de quem sofre desta doença
e não se trata. Uma vez mais tenho dificuldade em concentrar-me. Os meus
pensamentos vagueiam em círculos ilimitados, sempre entrecortados pelos raios
dos que giram à minha volta. Raios independentes de quem me sinto dependente.
Às vezes odiamos aqueles que nos fazem sentir bem e com quem nos sentimos menos
sós. Fecho os olhos por um instante. A música alivia-me a alma, que sinto
doentia, entrecortada, raivosa, agitada. Volto aos apontamentos que os olhos
captam, mas o pensamento foge, para a maldição do que perdi irremediavelmente,
se é que perdi alguma coisa. Talvez não fosse amor, dizem que é eterno. A
campainha da porta toca. “São dez da noite”, penso, “Quem será a esta hora?”.
Visto rapidamente o robe, pergunto quem é.
- Sou eu, a Amélia. Deixa-me entrar.
- Sobe!
nathalie fougeras
Abro a porta e eis Amélia que aparece. Está já frio, o verão passou, o gorro e as luvas assim o demonstram. Entra sem cerimónia,
descalça as botas, tira o casaco e afins:
- Mmmm, aqui está quentinho!
- Algum problema, Amélia?
- Decidi visitar-te, vizinha. Espero que não te
importes. Estava sozinha e apetecia-me um pouco de companhia. Fazes um chá?
Vou até à cozinha, que é pequena como todo o
apartamento, à exceção da sala. Os móveis são em madeira clara, em contraste
com os cortinados, de um tom que parece variar de acordo com a cor do mar.
Procuro a cafeteira elétrica, que encho de água do luso, preparo o tabuleiro
com duas chávenas da Vista Alegre, o açucareiro e o bule. Abro o armário:
- Canela ou maçã? Ou queres chá verde?
- Canela e maçã está bem.
Enquanto espero que a água da cafeteira ferva,
pergunto-me o porquê de tão inesperada visita e tão pouco habitual na minha
vizinha de condomínio, e amiga, Amélia. Só quando fui visitar o apartamento com
o senhor Isaac é que percebi porque o nome do condomínio não me era totalmente
estranho. Afinal a Amélia era a moradora do número cinco e, quando ainda nesse
dia lhe telefonei a contar que tinha acabado de ver e estabelecer o primeiro
acordo para a compra de um T2 no número sete do seu condomínio, ela disse “Não
sei se fizeste bem”. Mas, na excitação do momento, não liguei ao que me disse a
minha futura vizinha e ainda não tivera oportunidade ou a lembrança de lhe
perguntar a razão de tal reação. Talvez hoje consiga perceber porque não fiz
bem em ser proprietária no Condomínio da Roda. Oiço-a a colocar mais lenha na lareira, a mudar o cd de música e a
comentar os vasos de flores que dão colorido à sala.
João Alfaro
- O chá
está quase pronto. Queres bolachas?
- Só se forem de manteiga - responde.
Procuro nos armários, pois sei que me deve restar um pacote de
bolachas. Ah, aqui estão. Junto um prato cheio delas ao tabuleiro que levo até
à salinha.
- Belo chá.
- Sim é bom - digo a sorrir.
- Venho da casa da Mafalda.
- Mafalda? Não conheço. É tua colega?
- Não.
Parece-me haver uma ligeira hesitação mas,
logo de seguida, continua :
- É
minha amante.
Por momentos julgo não ter ouvido bem. Bebo
mais um gole de chá. A vida às vezes é estúpida e dura e má e nós também. Os
dias passam tantas vezes vazios de substância, sempre os mesmos, frios e
deformados, semanas e meses de vazios, em que nada acontece, em que é sempre
tudo o mesmo, em que as pessoas que conhecemos nos massacram de nada ou dos
seus cansaços que são nossos. Outras vezes parece que tudo isso muda, que há um
tremor qualquer que tudo vai agitar, tal bola de neve, agita-me a mim e vai
agitar o outro e por aí fora, sem parar. Então aparecem mil estórias que
preenchem, vêm ter connosco e nós, mesmo assim, cheias do nosso próprio vazio, não entendemos nada.
- Amante??
(continua)
Maria Luís Koen
Patricia Ariel
- Não aguentava mais, Ana, tinha que contar isto a alguém. Saí de casa dela, não quis ficar. Durante a viagem de duas horas senti um enorme desejo de dizer isto a alguém. À Joana, nem pensar, ela não ia entender. A Roberta é minha amiga desde sempre, acho que nem sonha que eu gosto mesmo é de mulheres. A Júlia é demasiado séria para saber uma coisa destas, por isso digo-te a ti.
Que dizer nestes momentos, meu Deus, e porquê a mim? Porque sou psicóloga?
- E que queres que faça com essa informação?
- Não estás surpreendida ou chocada?
- Não. Sim. Um pouco. Isto é, só não estava à espera de uma revelação como essa, numa quinta feira às dez da noite.
- Pois é. Desculpa, Ana. Andei às voltas no carro, com o coração apertado e a pensar, porque não hei-de dizer? Tenho que dizer! Preciso dizer. Preciso de te dizer, Ana.
- E essa Mafalda quem é?
- Conheci-a através da internet.
As pessoas conseguem, ainda, surpreender-me. E Amélia, que sempre achei sensaborona, surge agora perante mim com uma nova luminosidade. É uma luz crua, despida de floreados, sem mistério. É uma luz de fogueira, quente, contam apenas as brasas, as cinzas espalham-se quando vem a brisa, às vezes vento.
(continua)
Maria Luís Koen
Danielle Duer
- Conheci-a num chat. Ao fim de um ano de conversa decidimos conhecermo-nos pessoalmente. Combinámos um encontro, na baixa, em
Lisboa, num café conhecido de ambas e, nesse mesmo dia, ela convidou-me para ir
até ao apartamento onde vive. Jantámos e
falámos sem parar. Bebemos vinho e depois whisky. Acabámos na cama e ainda não
sei bem como. Só sei que adorei e
que nos encontramos muitas vezes por mês. Todas as que conseguimos. Ela tem um filho
e um namorado, o Jorge, que é um doce e nem sonha… Já conheço o filho, já mo
apresentou e jantámos os três. Mas a Mafalda mantém o namoro com o Jorge e o
romance comigo. Não o quer deixar e diz que a mim também não. Não sei o que
fazer. Não a consigo esquecer, não passo um minuto sem pensar nela. Também
penso no namorado. Só consigo odiá-lo. Por causa dele, ela não pode estar
comigo quando eu quero.
São palavras de mágoa, paixão e ódio as de
Amélia. O caminho dela é tortuoso, como é o meu , mas de maneira diferente. É
tortuoso o caminho das outras, que eu sei, difícil, enganador, cheio de
travessas labirínticas, com obstáculos que parece terem que vencer. Eu sei que não
há cura nem salvação para o amor. Ele desperta em nós o desejo, a loucura e às
vezes termina num silêncio duro e sem fim.
Maria Luís Koen
João Alfaro
- Queres um whisky?
- Pode ser.
Vou buscar os copos, o balde do gelo e o
whisky.
- Bebo sem gelo, ela diz.
Saboreamos ambas o acre-doce da bebida, sorrimos:
- Que merda de vida!
…
Amélia acabou por dormir no sofá. Bebeu
demais, estava agitada, não valia a pena ir de elevador para o primeiro direito
do número ao lado, podendo ali ficar. A náusea que bem conheço, ninguém quer
ficar com ela a vida toda. Às vezes acordava às cinco da manhã, agora já nem
tanto, bebia uns gins para acalmar, ficava zonza, com as palavras a querer
brotar, tentando que o alívio chegasse, que a tormenta passasse. Valia tudo. Os
cigarros que ardiam na garganta, os posts intermináveis na internet, os filmes
sem legenda, não interessava o quê. Tudo servia para me libertar do peso de
pensar, do pes0 de sentir a amargura, do destempero da raiva, da irritação
agitada da alma.
Quando acordei, às sete e trinta, tomei um duche quente e rápido
e só depois a acordei. Tinha os olhos inchados e pretos da maquilhagem por
tirar.
- Não trabalhas hoje, Amélia?
- Obrigada, amiga. Soube-me bem ficar contigo a falar destas
coisas que sinto.
- Se precisares de roupa tens aqui toalhas limpas e na cozinha
tudo o que precisas. Vou ter que sair agora para não apanhar muito trânsito.
Fecha bem a porta quando saíres.
- Obrigada, Ana.
- Convida-me para jantar. Quero conhecer a Mafalda, sorri.
Maria Luís Koen
Ira Tsantekidou
9.
MAFALDA
Olhos cor de violeta e o cabelo ruivo,
escuro, comprido. As sardas espalham-se pelo nariz e o sorriso maroto parece irradiar
simpatia. É diferente de todas as mulheres que conheço. Não a consigo ler.
Detesto isso. Na minha profissão habituei-me a observar os gestos. Às vezes
estes dizem mais do que as palavras ou dizem o oposto porque são feitos
involuntariamente e espelham as emoções, pensamentos e personalidade da pessoa.
Todos os psicólogos e psicanalistas valorizam a comunicação não verbal. Sempre
fui intuitiva, sempre dei grande importância aos sinais, muitas vezes mais
relevantes do que as próprias palavras, que podem ser enganadoras. Mas este é
um dom de família e de muitas mulheres. O que senti quando a vi foi
avassalador, estranho: os olhos dela eram iguais aos dele quando eu chorei três
dias e noites sem parar. Aquele vazio fundo voltou, foi difícil aceitar que
aquela mulher era a maldade personificada.
- Olá Ana, já tinha ouvido falar de si.
Maria Luís Koen
Wendy Ng
As mãos macias, as unhas arranjadas, nada, mas mesmo nada, descura a imagem de Mafalda – o andar, a roupa, o relógio, tudo parece um jogo simétrico que encanta e, acima de tudo, hipnotiza. A mim não. Eu vejo para além da aparência, mas, pela Amélia, faço um esforço:
- Olá Mafalda, prazer em conhecê-la.
Brincos e colar em pérolas brancas, pequenas, que contrastam com a cor do cabelo que usa solto. Comedida em tudo, até no falar: sabe escutar, faz as perguntas adequadas e responde com inteligência.
É a maldade pura, eu sei.
É a maldade pura, eu sei.
- Já sei que é psicóloga, Ana.
- Sabe mais do que eu que desconheço a sua profissão, disse.
- Sou médica - e sorri.
Pedimos uma tarte vegetariana para Amélia, peixe para mim e carne para Mafalda.
Maria Luís Koen
Cinzia Pellin
A conversa gira à volta de tudo um pouco, há
um desabrochar da personalidade que não consegui ler nos primeiros instantes –
aquela que ela quer que eu saiba, que eu aprenda, que eu conheça. O canto da
sereia. É isso que ela é. Sereia encantada ou bruxa má.
Mafalda é culta, vai ao cinema uma vez por
mês, ou tenta, como ela própria diz, para não morrer de pasmo. Aproveita sempre
que o filho fica com o ex-marido. Divorciou-se quando este tinha três anos. Não
aguentou a pressão do agora ex-marido. Não lhe batia, mas a pressão
psicológica era constante: nunca nada estava bem feito, nem em casa, nem com o
filho, nem no trabalho. Dizia que era um escravo dela, um criado e que , por
isso, ela tinha sucesso e ele não. Com o tempo ele foi conseguindo o que no
fundo queria: subjugá-la. A sua auto-estima ficou muito em baixo, já nem
conseguia decidir nada sem ele: o cinema ou o teatro, o vestido azul ou o preto
– era ele quem decidia tudo, quem controlava tudo. Aos poucos foi perdendo os
amigos, deixou de se encontrar com eles, nunca eram suficientemente
interessantes para o marido. Sozinha consigo mesma e com os seus medos
interiores, esmoreceu e com ela a relação. “Era uma relação tóxica, compreende?
Amorfa. Deixou de haver cumplicidade, confiança e afetividade entre nós”. Com
a ajuda de uma colega com quem fez psicanálise, conseguiu acabar com a tormenta
e não se arrependeu. Depois, foi um caminho de re-aprendizagem de tudo e dela
própria, de fazer amigos, de sair, de conversar ao telefone, de fazer as suas
próprias escolhas e tomar as suas decisões. Foi o extravasar de toda a
repressão.
Agora, de quinze em quinze dias dá-se a
pequenos luxos, como ficar todo o dia em pijama, não cozinhar ou, até, fazer uma
massagem Vichy. Com o filho em casa é sempre diferente. Quando ele não está, se
não vai ao cinema procura ir ao teatro, às vezes com o Jorge, outras vezes com
amigos. Adora ler e o passatempo eleito é surfar na net. Perde horas do seu
pouco tempo livre no computador - “uma maneira de relaxar” e de conhecer
outros.
Maria Luís Koen
Não acreditei em metade do que a bruxa
disse. Provavelmente arranjou um qualquer plano maquiavélico para dar cabo do
marido, livrar-se dele.
- Mas já conhecem muita gente através da Internet?
- De facto, não. Mas conheci Amélia e não estou nada arrependida.
Olham-se diretamente nos olhos, consigo finalmente
captar um brilho especial, uma emoção. Quase sei que, por baixo da mesa, as
mãos de ambas se tocam. Terminamos o jantar com um brinde. Visto o casaco, está
frio:
- Então até à próxima, Ana.
- Adeus, Mafalda. Vens, Amélia?
- Não, vou com a Mafalda.
Entram as duas no carro, aceno e entro no meu. Tenho as mãos geladas e o coração. Não me
deixei encantar pela sereia, sei que Amélia vai sofrer, que ela é má, que lhe
vai tirar a alegria, aquele olho não me enganou, o frio que senti, gelado, a
subir, quando olhei para ela, o reflexo escuro dos olhos violeta.
Dói-me tudo.
Dói-me a alma.
Mais cedo do que Amélia pensa, vai chorar sentada na cadeira, vai
desejar não a ter conhecido.
É sexta-feira à noite e estou sozinha. Penso que
às vezes é melhor nem começar seja o que for, quando se sabe que vai acabar
mal, que vai terminar. Terrivelmente sozinha é como me sinto e é como Amélia se
vai sentir quando o olho violeta daquela bruxa cair sobre ela e a ferir de
morte.
A solidão é um estado interior, um vazio que não se preenche. Às vezes a
solidão ataca forte. Torna-se problema. Porém, muitas vezes sinto a necessidade
de estar só, parece contradição, pois só dessa maneira consigo algum equilíbrio
emocional, pensar na minha experiência individual. Então, essa solidão comigo
mesma faz-me falta: é quando estou só que tranquilamente me recrio. Outras
vezes, como agora, a solidão é dorida e fria. Uma mágoa que me invade devagar,
amarga, cinzenta. Falta-me um certo aconchego que me abrace à noite na cama, me
segrede umas doçuras ao ouvido, mordisque e possua sem pressas. Dou uma volta
pelo centro, de carro, o telemóvel toca já perto de minha casa.
Maria Luís Koen
Bec Winnel
- Ana, queres sair? Vamos até ao Ventoso?
Não penso duas vezes e digo que sim. Esqueço por momentos o medo de me
queimar novamente, de abrir uma nova ferida, de enlouquecer e de me perder.
Esqueço o ódio e os pulsos cortados em tempos, a insatisfação do nada, a
vingança de Deus, a desorientação da dor, o desaprender o amor.
Ele vem buscar-me dentro de quinze minutos, é o que penso. Apenas isso.
Nada de estórias passadas, de memórias e caminhadas perdidas. Nada.
Estaciono o carro e subo rapidamente para lavar os dentes.
Maria Luís Koen
kari lise alexander
10.
- Somos seis. Seis devem chegar e cabem todas na tua casa, Ana. Qual o problema?
- Mas não me consultaste ou pediste ou falaste no assunto. Nem estou interessada em reunião nenhuma, sobre tema algum.
- Já dei a morada e vai ser hoje às vinte e duas horas, não posso voltar atrás. Além do mais, já paguei. Vais adorar!! Não sei porque te queixas. Achas que podia ser na casa das outras? E os maridos e os filhos? Na minha casa? O Miguel matava-me.
- Na tua não pode e na minha pode!!! - disse irritada.
- Ana, melhor do que na tua casa não há! Não te zangues. E podemos estar todas juntas na risota.
- Mas elas sabem ?
- Saber não sabem, mas insisti que viessem, que era algo muito importante para ti.
E riu.
Na verdade não gostei deste excesso de Joana, mas já sabia que, mesmo que dissesse que não, ela já tinha feito todos os contactos e não valia a pena protestar. Quando saí, cansada de uma semana de trabalho, estacionei o carro no condomínio, não subi as escadas mas utilizei o elevador para o terceiro andar, abri a porta do número sete, descalcei os sapatos e atirei-me para o grande sofá creme que tinha na sala. Pensei: apetecia-me tudo agora menos aturar uma reunião só de mulheres. Liguei a televisão, as notícias do costume. Fechei os olhos durante cinco minutos, a cabeça a vaguear no corpo bonito do Simão, nos lábios, no nariz, outra vez nos lábios, na conversa no Ventoso, que deu em nada. Simão, o historiador que conheci por acaso, quando quis estacionar o carro no único lugar vago que havia ao pé da Sé e, por descuido, ao fazer a manobra, esfolei o veículo que aí se encontrava estacionado. É preciso ter azar, pensei. E agora? Fujo ou fico? Acabei por deixar um bilhete no vidro do carro com a confissão de que tinha sido eu a causadora dos estragos, deixando o meu número de telemóvel. Já estava sentada no Arcada, às voltas com um pastel de nata, quando o dito toca e era o dono do carro, aborrecido com a amolgadela no automóvel que, afinal, só comprara há três meses. Disse-lhe para vir ter comigo ao café, que pagaria o arranjo, que tinha seguro contra todos os riscos. E ele foi. Vi logo que só podia ser aquele o dono do carro, quando apareceu, passos largos, boca franzida, nariz adunco, olhos escuros de irritação. Sinal vermelho! Há quanto tempo não via o sinal vermelho! Ou então não queria ver, não queria jogar, não queria sentir, não queria. Ele era um doce. Logo ali ficou combinado que o carro seria visto por um perito que ele conhecia.
Maria Luís Koen
- Sim, não se preocupe, eu concordo, mas é melhor assinarmos os papéis em
como tudo isto é amigável.
Finalmente o homem sorriu e apresentou-se:
-Simão Gonçalves, prazer. Desculpe a irritação mas não estava à espera de ver o veículo naquele
estado.
-Ana Cabral. Também fiquei irritada com a
minha aselhice- sorri.
Combinámos que à tarde, por volta das seis,
iria ter com ele a fim de ouvir o veredicto do tal perito. O carro ficou na oficina e eu tive que ir levar o dono do carro
a casa, um apartamento nos Álamos.
- Então até à próxima, disse.
- Até breve, disse ele.
O breve foi no dia seguinte enquanto comia
uma fatia de tarte, pobre jantar, e olhava para a chuva que batia forte nos
grandes vidros da sala que dava para a piscina do condomínio. Olhava para lá
sem ver, perdida na minha própria mente, como sempre, à espera de nada, que o
tempo passasse, que o jantar terminasse, que a hora de deitar viesse como
sempre, para poder dormir e voltar a acordar, na rotina do nada acontecer. Toca
o telemóvel, um número desconhecido. Fiquei
tão admirada que nem consegui recusar o convite para um cafezinho no
Evorahotel. E às nove a campainha
toca e lá vou eu, debaixo de chuva torrencial – “uma loucura, devo estar doida”,
pensei – com o estranho a quem amolguei o carro, de táxi, beber café ao
Évorahotel. Onde está agora a mágoa que tantas vezes me assola, onde pára a
terrível culpa, o inconsciente que me mortifica? Escolhemos um sofá perto do
bar mas longe dos que lá se encontravam. O barman, solicito, trouxe um chá de
menta para mim e para ele um Irish coffee.
-Você mora num lugar azarado, disse.
- Azarado??
- Sim, não sabe? Azarado e, dizem, assombrado – sorriu.
- Não sei do que fala. Ainda se disser redondo, agora azarado…-
sorri também.
- Você não sabe que mora no número sete e,
ainda por cima no lugar dos mortos?
- Não.
- O número sete é muitas vezes associado ao
mal que, dizem, procura imitar o bem.
- Sim? Tenho uma amiga que também tem uma
paixão especial por números, digo. Ela também tem uma fixação pelo número sete.
Mas afirma o oposto: diz que o sete é o numero perfeito.
- Sabe que o sete é a chave do Apocalipse?
- Sim, tenho uma vaga ideia: sete igrejas e sete estrelas e mais setes que não me lembro –
sorri.
(continua)
Maria Luís Koen
HANDS OF GOD AND ADAM, DETAIL FROM THE CREATION OF ADAM, FROM THE SISTINE CEILING, 1511
Artist: Michelangelo Buonarroti
- Sete trovões, sete cabeças, sete
calamidades, sete reis.
- Tanto sete! Já vi que é fã incondicional
do sete.
- O sete é muitas vezes associado, como lhe
disse, ao mal. Sabia?
Sigo o movimento dos lábios de Simão, como
que hipnotizada.
- Não. Mas o que diz é um disparate total.
Prefiro a versão da minha amiga.
- Está a ver, a Ana mora no número sete da Roda, num condomínio que se pensa ficar precisamente no antigo
cemitério judaico. E é disparate porquê?
Será verdade? - penso.
-Bem, quanto ao número sete, também sei
algumas coisas – repito - pois tenho uma
amiga que tem uma fixação por ele. “Por ele e por outras coisas”, pensei. A
Bíblia apresenta este número como um número "perfeito" e posso dizer
que está presente em tudo na natureza. O sete é o número de Deus, ao contrário
do que você afirma.
- Acha isso?
- Sim. Tudo o que Deus faz
pelo homem acaba por resultar no número sete – está na Bíblia. Basta ler o primeiro capítulo e o primeiro versículo
para ficar elucidado. Na língua original, claro.
- Como assim?
- Do que sei, e sei porque achei muito interessante, é que - retiro da
mala um pequeno livrinho que a minha amiga me ofereceu quando fiz anos, onde
está escrito o que leio a seguir – precisamente no dia sete e leio: na sua língua original, este primeiro
versículo contém o seguinte:
"O número das palavras é sete; estas sete
palavras têm vinte e oito letras (quatro setes); as primeiras três palavras têm catorze
letras (dois setes). As últimas quatro palavras têm catorze letras (dois
setes); as palavras quarta e quinta têm sete
letras, as palavras sexta e sétima têm também sete letras; as palavras "DEUS" (sujeito da
oração) e "CÉUS", "TERRA" (complemento directo) têm, na língua
original, catorze letras (dois setes). As restantes palavras têm, também, o
valor numérico de catorze (dois setes); o valor numérico de cada uma das sete
palavras deste versículo é de mil trezentos e noventa e três (cento e noventa e
nove setes); a primeira letra da primeira palavra e a
última letra da terceira palavra somam quarenta e dois (seis setes); a primeira letra da quarta palavra e a
última letra da sétima somam noventa e um (treze setes) ficando, para as restantes, o valor
numérico de mil duzentos e sessenta, ou seja, cento e oitenta setes !” (sic) E isto repete-se quase versículo a
versículo em toda a Bíblia.
- Bem, retiro o que disse. Gosta de viver
na porta com esse número?
- Não me incomoda viver na porta ou no
andar com esse número: ao contrário do que você diz, o sete é o número de Deus.
Ainda assim, não sou supersticiosa.
Maria Luís Koen
- Penso que já o vi, sim. Muito interessante! É a sua área de
estudos, não?
Mas ele não esteve com meias medidas, que o assunto do cemitério seria
para o próximo encontro, já bastava a chatice, ou melhor, a sorte de eu lhe ter
batido no carro, que tínhamos mais era que beber o café e o chá, que já estavam
a arrefecer e pedirmos uma outra bebida para brindar a esta recente e promissora
amizade. Na altura achei um atrevimento mas, por outro lado, secretamente, sentia-me
infinitamente bem por aquele moreno historiador centrar as suas aptidões e
atenções em mim.
Rassouli
Já não mentia há tanto
tempo!
Não lhe falei das benzeduras da minha tia contra o mau-olhado ou da água
com sal que tenho disfarçada atrás da porta, da pimenteira no lado direito da
janela, da grande turmalina negra no centro da mesa que tenho
em frente à mesma janela, ou sequer, do olho de boi que trago sempre comigo na
carteira.
-Já quanto ao cemitério judaico, confesso
que é a primeira vez que oiço tal coisa. Onde foi buscar essa teoria?
-Não é teoria nenhuma. Sei do que falo, sou
historiador.
- Então, diga alguma coisa.
- Não sabe que em Évora existiu uma das
maiores judiarias do país?
- Ouvi qualquer coisa sobre o assunto mas
não sei muito sobre isso.
- Não sabe mas até deve conhecer a Rua do
Raimundo, as Portas de Alconchel, não? A Rua dos Mercadores?
- Sim, sei que essa é a zona da judiaria e
também sei que há a mouraria.
- Na judiaria antiga encontram-se vestígios
do século XIV. E, não sei se sabe, no Museu existe um túmulo com inscrições em
hebraico.
- Sim, neste momento, especializo-me
precisamente nessa área. Há diversos estudos sobre este tema e a Dra. Maria
José Ferro Tavares, por exemplo, tem livros publicados sobre os judeus.
- Quem?
- É uma especialista no estudo dos Judeus
em Portugal. Se quiser podemos falar sobre este tema, mas não hoje e não aqui.
Agora quero mesmo é falar sobre a mulher que me espatifou o carro.
-Não está certo. Acabou de me dizer que o
condomínio onde vivo afinal não é tão sagrado quanto eu pensava. Fiquei curiosa
com o que me disse – protestei.
... Saboroso que as teias não aparecessem, os
delírios parados num cantinho do cérebro, o zum zum dos suspiros dele sem som...
Deixei-me
embalar pelo tom ameno da voz do Simão, pelas histórias divertidas que contou,
pela quietude que me relaxou…
Curioso que recorde esta
conversa e que, nos vários encontros que entretanto tive com o Simão, não
voltássemos a falar sobre o condomínio azarado e que me esteja a lembrar do
assunto agora.
Maria Luís Koen
11.
O clã começa a chegar. Por ser de noite e a
lua, cheia, entrar pelos vidros da grande janela da sala, lembrei-me da casa da lua. Mas não sei se todas
estamos menstruadas. Quando, noutros tempos, as mulheres se juntavam em grupo, durante
um determinado período de tempo, menstruavam juntas. Está provado que acontece
assim, qualquer ginecologista dirá o mesmo. Tal facto conferia-lhes um grande
poder. Vários grupos de mulheres reuniam-se em tendas a que chamavam “tendas
vermelhas” , numa clara alusão ao sangue. Juntas nessas tendas, menstruavam
e eram poderosas por isso. Essas tendas também tinham outro nome: eram as
"casas da lua". O sangue menstrual era considerado sagrado - sangrar
sem morrer era poderoso e mágico - para as mulheres da Idade da Pedra e, ao
longo dos anos sempre existiram rituais femininos ligados à menstruação. Ainda
existem hoje. Por exemplo, existia o ritual chamado Thesmophoria. A sua origem perde-se no tempo. Era um
ritual realizado anualmente pelos gregos quando se semeava. Reuniam as mulheres
que se encontravam na menarca (primeira menstruação). Esse encontro acontecia num
campo considerado sagrado, e ao primeiro sinal da primeira menstruação, as
raparigas passavam por uma fenda para levar a sua oferenda – o sangue menstrual.
Faziam, então, outras oferendas às divindades: a oferta do melhor leitão que
existisse numa ninhada é um exemplo. Quando
a carne do leitão morto ficava podre, juntavam-lhe o sangue menstrual e as
sementes. Só depois de todos estes passos é que tudo era finalmente enterrado.
Era este o contributo, considerado sagrado, das mulheres, para que a colheita
desse ano fosse abundante.
Como este, há muitos rituais, ligando o
sangue menstrual a um poder sagrado que só as mulheres detinham: o de sangrarem
vários dias, todos os meses, sem morrer. No entanto, ao longo dos milénios muitos
destes rituais e celebrações foram desaparecendo ou foram sendo esquecidos ou foram-se
tornando quase secretos, alguns até foram considerados como parvoíces de
mulheres incultas das aldeias. A menstruação foi sendo cada vez menos apreciada
e nos anos 50, 60 ou 70, em Portugal, por exemplo, era praticamente um assunto
maldito ou secreto, tabu, considerado uma coisa suja, que só as mulheres
tinham, e que devia ser escondido dos outros, até dos próprios maridos. A
escritora Mirella Faür é clara: "Enquanto que nas sociedades matriarcais
as sacerdotisas ofereciam o seu sangue menstrual à Deusa e faziam suas
profecias durante os estados de extrema sensibilidade psíquica da fase
menstrual, a Inquisição atribuía a esse poder oracular a prova da ligação da
mulher com o diabo, punindo e perseguindo as mulheres 'videntes'”.
Maria Luís Koen
Liu Yuanshou
As mulheres modernas dos dias de hoje desconhecem
a sua história como mulheres, e muitas consideram a menstruação um episódio
mensal no mínimo aborrecido, um tremendo incómodo que não se importariam de
abolir de vez. As mulheres do século XXI deixaram de ter e de se juntar nas “casas de lua”, nas “tendas vermelhas” para
poderem descansar, conversar e partilhar as suas experiências, problemas,
aflições e medos, bem como a sua intuição , essa bem antiga. Mas a verdade é
que, quando acontecem jantares ou reuniões de mulheres, o resultado é que elas
ficam mais felizes e sentem-se bem e com vontade de estarem de novo juntas. Nas
antigas casas de lua, as mulheres mais velhas ensinavam às mais novas as
chamadas “coisas de mulheres”, tais como viver com os ciclos menstruais de uma forma calma e sem grandes dores, ou problemas.
Mas, ainda assim, apesar da era moderna em que vivemos, em algumas aldeias de
Portugal, as mulheres menstruadas ainda se juntam para analisar os ciclos, para
anotar a lua em que geralmente chega a menstruação (muitas vezes chamada “a Velha ”) e para conversarem. Conhecem as
luas e os seus poderes, sabem os períodos férteis, quando nascem os filhos.
Sabem que a Lua Nova significa o início do ciclo, que o Quarto Crescente tem a
ver com o amadurecimento, que a Lua Cheia quer dizer colheita e que o Quarto
Minguante é a altura certa para avaliar o que correu bem e o que correu mal, para assim poderem começar um novo ciclo. Este
conhecimento e observação fazia com que as mulheres das aldeias não fossem ao médico,
muitas ignoravam os métodos contraceptivos pois sabiam identificar os seus
períodos férteis e também as probabilidades dos nascimentos.
A psicoterapeuta Patricia Cuocolo, que
estudei nos tempos de faculdade e que se especializou nesta área, afirmou num
dos seus estudos, algo que todas as mulheres sabem: que a “Lua, Sangue e Mulher
sempre estiveram associadas. Em várias línguas as palavras menstruação e Lua
são as mesmas ou estão relacionadas”. Todas sabemos o que é “estar aluada”. A
primeira forma de medir o tempo foi, de facto, através do ciclo menstrual das
mulheres. Estes pareciam estar de algum modo ligados entre si. Essa sincronia apontava para uma ligação entre
as mulheres, a Lua e as deusas da fertilidade. De acordo com esta terapeuta,
muitas das queixas apresentadas atualmente pelas mulheres no seu (também no
meu) consultório, e na clínica médica de cuja equipa faz parte, tais como “Tensão
pré menstrual, cólicas, dificuldade em engravidar, doenças no útero, ovários e
seios, têm as suas origens no facto da mulher se ter distanciado de sua
natureza cíclica e sábia, onde a sua capacidade de se silenciar para ouvir a própria
intuição e as mensagens do seu reino interior ficou para trás, com prejuízos
drásticos para o seu equilíbrio físico - psíquico – espiritual” (sic).
Não é por acaso que na tradução da História
Natural de Plínio aparece: “«A mão de uma mulher com a menstruação transforma o
vinho em vinagre, seca as colheitas, mata as sementes, murcha os jardins, faz
cair a fruta das árvores, escurece os espelhos, oxida o ferro e o latão …, mata
as abelhas, tira o brilho ao marfim e enlouquece os cães que lambem o sangue da
menstruação…». Ainda hoje, nos países do sul da Europa, como Portugal, se continua a acreditar
que uma mulher menstruada azeda a cerveja se entrar numa cervejaria, estraga os
bolos que estiverem a ser confeccionados, desanda a maionese ou estraga a carne
dos enchidos quando estão a ser feitos. A mãe de uma amiga minha, de Sintra,
não permitia que alguém menstruado fizesse a maionese – saia sempre mal, era um
desperdício de ingredientes! A minha avó, quando matava e enchia as carnes, não
deixava entrar ninguém nesse quarto, especialmente se fosse mulher, sem saber
se “estava impura ou não”. Só depois de ser dito que se estava “pura” é que os
olhares das outras mulheres ajudantes, que tratavam da carne, se acalmavam e se
podia entrar.
Maria Luís Koen
Trish Laffrenere
O pensamento é interrompido pela campainha.
Por sorte cada uma das minhas amigas traz um doce, uma bebida, nenhuma de mãos
vazias. Um amontoado de casacos, luvas, cachecóis e malas no meu quarto, taças
na cozinha, bebidas no móvel da aparelhagem, a confusão da chegada e de
quererem saber a razão de ali estarem e da importância que tal teria para mim.
-Não sei. A Joana é que marcou isto tudo na
minha casa. Sabem como ela é. Gosta de surpresas e a maior surpresa é que ainda
não chegou.
O telemóvel toca.
- Está atrasada, mais dez minutos e já cá
está.
Todas conhecemos os dez minutos de Joana,
por isso atacamos o bolo de chocolate da Roberta e o abafadinho da Júlia enquanto
pomos a conversa em dia. Passados três dez minutos, a campainha do número sete
toca e eis a nossa querida Joana acompanhada de alguém que nunca viramos antes.
- Desculpem o atraso mas tive que ir buscar
a Gabriela. Com ela somos sete.
Olhámos umas para as outras. A Joana sempre
teve a mania, fixação, ou fetiche - mais um - por números. A tudo associava
números e vice-versa, até nós tínhamos números. Não gostava de alguns, como o
seis, e chegava a desmarcar compromissos quando o número não lhe agradava.
-E o que tem sermos seis ou sete? Pergunta
Mafalda, ainda novata nos gostos de Joana.
-Não sabes que o seis é de mau agouro e o
sete é um número tradicionalmente cheio de significados e simbologias? É um
número divino. Vou dar-te alguns exemplos.
- Então é melhor sentarmo-nos… - disse eu,
desagradada com tudo aquilo e ainda mais porque a bruxa estava na minha casa,
coisa que eu queria evitar a todo o custo. E o que é facto é que a pimenteira
murchou, como verifiquei no dia seguinte. Mas não podia fazer nada, o que me
irritava ainda mais, pois mesmo que quisesse explicar, como o iria fazer?
Sentia-me aleijada com aquela mulher na minha casa, a ver tudo com aqueles olhos de bicho frio. Louca, diriam por certo,
se alguma vez ousasse mencionar o que sabia.
- Olha Mafalda, para mim o sete é um número
muito especial. E vou dar-te vários exemplos do porquê desta minha convicção.
Como se a bruxa não soubesse – pensei.
- Por exemplo, os dias da semana são sete
por alguma razão, os planetas para o mundo antigo também são sete, existem sete
sábios Gregos e sete graus celestes .
-E uma rosa, imagina, tem nada mais nada
menos do que sete pétalas- acrescentam as
outras na risota.
E
Roberta diz:
-As cores do arco-íris são sete, e quantos
são os pecados mortais?
- Sete - respondem .
Cada uma acrescenta um ponto:
-As notas musicais são sete.
-Sabes quantas estrelas formam cada uma das
constelações da Ursa Maior e da Ursa Menor?
- Sete! Sete!
Já conhecedoras da sua paixão por este
número, continuam e ajudam na festa:
- Sim, o sete é também é um número
simbólico: simboliza as três virtudes teológicas.
- Pois é! A Fé e a …
- Esperança
- A caridade.
-E também há as quatro virtudes: prudência
e temperança …
-Justiça e força.
- De acordo com a Bíblia o mundo foi criado
em seis dias, sendo o sétimo, o dia do descanso.
- É verdade. É considerado dia Santo.
E
eu, para não me ficar atrás, não me tornar mal educada e gerar desconfiança, acrescento
e repito as palavras de Simão no Evorahotel:
-O número sete é a chave do Apocalipse.
- Sabes isso?
- Sim, é também símbolo da totalidade humana.
- Sim? Como?
- Adicionando o número quatro que simboliza
o homem com o número que simboliza a mulher, isto é, o três.
- Como é que sabes isso? – pergunta Joana.
- Li num site que encontrei na Internet,
minto.
Gun Legler
Joana continua :
-Estou impressionada convosco! Mas digo mais: o sete está presente em inúmeras histórias populares e lendas.
- Sim? Interessante. Dá exemplos!
- Por exemplo a história da Branca de Neve e dos sete anões.
Acrescentam:
- As sete léguas das botas do Pequeno Polegar.
-Pois é, formavam um grupo de sete rapazes.
- O sete possui um certo poder, é um número mágico. Para mim o sete está relacionado com a perfeição.
Mafalda fingiu estar boquiaberta e ligeiramente impressionada, apesar de não me enganar:
- Já vi que percebem de numerologia. Sabes muito sobre o número sete, Joana. E vocês também.
- Sei ainda mais – sorriu - mas agora quero apresentar-vos a Gabriela. Pedi à Gabriela que nos lesse ou nos ensinasse a ler as cartas.
Claro, só podia ser isso, pensei. Que treta. Isso ou uma reunião de tuppersex. Não sei qual a melhor. Para mim, nenhuma. Mas agora não posso fazer nada a não ser entrar no jogo, em mais uma brincadeira ao gosto de Joana. Uma brincadeira no meu apartamento, um pouco à minha revelia, o que me desagradou mais ainda.
A invasão do meu espaço, das minhas coisas, dos meus objectos era quase a invasão da minha alma, do que eu sentia. Era isso que não perdoava a Joana. Que trouxesse duas estranhas, uma bruxa e outra bruxa, a minha casa. Perturbava-me isso, como depois disse a Joana. Não sei se ela compreendeu, até acho que não, é muito prática a minha amiga. Mas disse-lhe na mesma. Não quero que ela repita a gracinha. Não quero pessoas que não conheço na minha casa. Não quero abrir as portas a qualquer um. Não quero ser sugada de surpresa por olhos cor de violeta como fui sugada pelos dele. Não quero passar pelo mesmo, pela morte, pela ida à sepultura colocar flores e vir de lá a cheirar a mortos. Não quero voltar a isso, nem lentamente, não quero pensar nele – escondi a cadeado as fotografias amarelecidas pelo tempo, as saudades, a escova do cabelo, o pente.
Maria Luís Koen
12.
Somos sete aros numa roda que é a mesa da
sala, pequena teia que dá para a piscina redonda do condomínio da Roda . Gabriela,
a taróloga, refere a perfeição como curiosidade. Por exemplo, as cartas números
quatro e três formam o par chamado Imperador
- Imperatriz, o pai e a mãe,
portanto a perfeição. E quatro com três soma sete. Disse também que as cartas cinco e dois são o par Papa - Papisa, o par da espiritualidade
. Número sete. Depois, que a
carta número sete é a Carroça, símbolo de cumprimento, realização. Gabriela continua
dizendo que o sete é, assim, o algarismo do homem perfeito. Finalmente, antes
de começar a sua lição sobre as cartas, acrescenta que “o sete representava
também os sete estados da matéria, os sete graus da consciência, as sete etapas
da evolução -consciência do corpo físico, da emoção, da inteligência, da
intuição, da espiritualidade, da vontade e da vida - e ainda os sete pecados
mortais, de todos conhecidos: Avareza, Inveja, Ira, Gula, Preguiça, Soberba e
Vaidade” (sic). E sorriu:
- Tudo se passa no universo dentro de um
ritmo septenário.
Maria Luís Koen
Perante o olhar curioso de todas, à excepção de uma, baralha e parte as cartas, com a face oculta, e coloca-as em circulo, começando pela parte de cima à direita e rodando no sentido dos ponteiros do relógio. Dispõe assim doze cartas, mais uma no centro. Depois, vira-as sequencialmente, começando pela primeira, explicando que “esta dará o ambiente global do mês”. “A segunda”, esclarece, “sobre o mês seguinte e assim sucessivamente, até ao fim dos doze meses”. E continua: “Depois de se ter virado e interpretado os doze arcanos, vira-se a carta que se colocou no meio do círculo, da roda. Esta irá dar-nos uma ideia geral do ano ou então do número de meses, quer estejamos em Janeiro ou noutro mês, fazendo assim um resumo dos meses”. Olhando para nós: “Se um dos meses estudados, ao ser comparado com o resultado dos outros, parecer mais estranho ou difícil de interpretar”, explica, “deve-se isolar essa carta e fazer um lançamento especial, do género 'lançamento em cruz', para saber mais sobre esse período que não se consegue interpretar com alguma precisão”.
Estamos atentas à explicação de Gabriela que fala no geral sobre a simbologia e o significado de cada carta do tarot, o que , para nós, leigas no assunto, é complicado e difícil, chegando rapidamente à conclusão que, aprender tudo num só dia, será uma missão impossível. Assim, sugerimos um intervalo, que chegava para a primeira lição. O que queríamos mesmo era que Gabriela nos lesse o futuro. Roberta peremptoriamente disse que nem pensar, não acreditava em futurologia e não queria sequer experimentar. Amélia concordou de imediato, seguida de Mafalda. Achei estranho, mas tenho a certeza que foi só para disfarçar. Demais conhece a bicha o seu futuro. Restava a dona da brilhante ideia, a dona da casa e Júlia, que não se negou. Afinal não tinha nada a perder, depois de perder o marido só tinha era que ver o que o futuro lhe reservava. Não querendo ser a primeira, aguardou expectante e com muita curiosidade que chegasse a sua vez. Gabriela foi clara nas exigências, que tinha que haver algum silêncio e concentração para além da vontade de cada uma das participantes.
Maria Luís Koen
13.
As reacções são diversas. E diferentes. Uns perdoam, outros fingem que não sabem, uns deprimem, outros matam-se, outros matam e outros vingam-se: temos o exemplo do marido inglês que leiloou a mulher na internet quando soube que tinha sido enganado; temos a mulher que decidiu vender tudo o que era do marido e ter alguns lucros; temos o homem que, por vingança, vendeu duzentas fotos sexy da ex-mulher no eBay quando soube que esta o tinha traído com o melhor amigo; temos a noiva italiana que, ao descobrir através do facebook que o noivo era um porco traidor, decidiu colar cartazes com a cara do desgraçado, agradecendo ao facebook; temos a australiana que fez um leilão virtual com as cuecas da amante do marido juntamente com um invólucro vazio de um preservativo “tamanho pequeno”; temos a mulher que teve um caso com o padre da freguesia fugindo e casando com ele e outra que começou a coleccionar amantes secretos. Também há outro tipo de reacções: a mulher que colocou nas redes sociais “sou corno” e “tenho chifres” e a outra que enviou emails dizendo que ele tinha palitos; a mulher que se atirou da varanda, partiu a bacia mas não morreu; o homem que atirou ácido à cara da namorada e aquele que inventou boatos pouco abonatórios sobre a mulher.
Desespero
Raiva e dor
Vingança.
Traição não tem sexo
Nem nexo
Traição.
É disso que se trata. As pessoas nem sempre falam, nem sempre dizem mas, muitas vezes, basta uma palavra para mostrarem o que não querem dizer. E eu finalmente apreendi a palavra que resume todas as reacções de Joana, desde a estalada na cara do Ruivo, o engenheiro, até ao rápido namoro, noivado e casamento com o Miguel, também engenheiro. As cartas reveladoras e silenciosas de Gabriela na sessão de tarot foram claras para ela e para mim. Não mentiram, não omitiram, um circulo magnético de verdade que penetrou, devagar, em mim.
Nem todas quiseram expor-se ao mistério das cartas, ao risco de uma verdade muito escondida aparecer, à magia doída de algo que não se quer revelar, ao tesouro muito intimo que se quer esconder, mas a Joana não podia recusar-se e, por isso, foi a primeira. No final ficou calada mas conheço bem aquele olhar e percebi, quase li, tudo o que a boca não disse.
Parvoíce minha não ter pensado que tudo advinha da traição, dura de engolir, que nos massacra todos os segundos quando aparece para nos perseguir os sonhos e a realidade também. Sonhos traídos são piores que qualquer dor.
Maria Luís Koen
Gostei muito!!! :)
ResponderEliminarObrigada!
ResponderEliminar