sexta-feira, 27 de setembro de 2013




Zita Dantas


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade





quinta-feira, 26 de setembro de 2013





Lauri Blank



Não posso adiar o amor para outro século 
Não posso 
Ainda que o grito sufoque na garganta 
Ainda que o ódio estale e crepite e arda 
Sob montanhas cinzentas 
E montanhas cinzentas 

Não posso adiar este abraço 
Que é uma arma de dois gumes 
Amor e ódio 

Não posso adiar 
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas 
E a aurora indecisa demore 
Não posso adiar para outro século a minha vida 
Nem o meu amor 
Nem o meu grito de libertação 

Não posso adiar o coração

(António Ramos Rosa)


quarta-feira, 25 de setembro de 2013





Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor.


Herberto Helder | a colher na boca [1961]





Patricia Ariel





recomeçar




O Verão e o calor deixam-me exausta.




Ford Smith




                                                                Nada melhor do que o Outono para um bom recomeço.







sábado, 10 de agosto de 2013

A Roda - capítulo 10



kari lise alexander

10.
- Somos seis. Seis devem chegar e cabem todas na tua casa, Ana. Qual o problema?
- Mas não me consultaste ou pediste ou falaste no assunto. Nem estou interessada em reunião nenhuma, sobre tema algum.
- Já dei a morada e vai ser hoje às vinte e duas horas, não posso voltar atrás. Além do mais, já paguei. Vais adorar!!  Não sei porque te queixas. Achas que podia ser na casa das outras? E os maridos e os filhos? Na minha casa? O Miguel matava-me.
- Na tua não pode e na minha pode!!! - disse irritada.
- Ana, melhor do que na tua casa não há! Não te zangues. E podemos estar todas juntas na risota.
- Mas elas sabem ?
- Saber não sabem, mas insisti que viessem, que era algo muito importante para ti.
E riu.
Na verdade não gostei deste excesso de Joana, mas já sabia que, mesmo que dissesse que não, ela já tinha feito todos os contactos e  não valia a pena protestar. Quando saí, cansada de uma semana de trabalho, estacionei o carro no condomínio, não subi as escadas mas utilizei o elevador para o terceiro andar, abri a porta do número sete, descalcei os sapatos e atirei-me para o grande sofá creme que tinha na sala. Pensei: apetecia-me tudo agora menos aturar uma reunião só de mulheres. Liguei a televisão, as notícias do costume. Fechei os olhos durante cinco minutos, a cabeça a vaguear no corpo bonito do Simão, nos lábios, no nariz, outra vez nos lábios, na conversa no Ventoso, que deu em nada. Simão, o historiador que conheci por acaso, quando quis estacionar o carro no único lugar vago que havia ao pé da Sé e, por descuido, ao fazer a manobra, esfolei o veículo que aí se encontrava estacionado. É preciso ter azar, pensei. E agora? Fujo ou fico? Acabei por deixar um bilhete no vidro do carro com a confissão de que tinha sido eu a causadora dos estragos, deixando o meu número de telemóvel. Já estava sentada no Arcada, às voltas com um pastel de nata,  quando o dito toca e era o dono do carro, aborrecido com a amolgadela no automóvel que, afinal, só comprara há três meses. Disse-lhe para vir ter comigo ao café, que pagaria o arranjo, que tinha seguro contra todos os riscos. E ele foi. Vi logo que só podia ser aquele o dono do carro, quando apareceu, passos largos, boca franzida, nariz adunco, olhos escuros de irritação. Sinal vermelho! Há quanto tempo não via o sinal vermelho! Ou então não queria ver, não queria jogar, não queria sentir, não queria. Ele era um doce. Logo ali ficou combinado que o carro seria visto por um perito que ele conhecia.
Maria Luís Koen

terça-feira, 2 de julho de 2013

A Roda - continuação




Bec Winnel

- Ana, queres sair? Vamos até ao Ventoso?
Não penso duas vezes e digo que sim. Esqueço por momentos o medo de me queimar novamente, de abrir uma nova ferida, de enlouquecer e de me perder. Esqueço o ódio e os pulsos cortados em tempos, a insatisfação do nada, a vingança de Deus, a desorientação da dor, o desaprender o amor.
Ele vem buscar-me dentro de quinze minutos, é o que penso. Apenas isso. Nada de estórias passadas, de memórias e caminhadas perdidas. Nada.
Estaciono o carro e subo rapidamente para lavar os dentes.

Maria Luís Koen


segunda-feira, 1 de julho de 2013

grandes mulheres






Olga Roriz



Olga Roriz é coreógrafa e bailarina portuguesa.
Nasceu em Viana do Castelo. Em  Lisboa  iniciou os estudos de dança na Escola do Teatro Nacional de S. Carlos, com Ana Ivanova. Com 18 anos de idade completou o curso da Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa. Em 1976 ingressou no elenco do Ballet Gulbenkian dirigido por Jorge Salavisa, onde permaneceu até 1992.
Como coreógrafa tem sido convidada a trabalhar com agrupamentos como a Companhia Nacional de Bailado, Dança Grupo e Companhia de Dança Contemporânea em Portugal; Ballet Teatro Guaira, no Brasil; Ballets de Monte Carlo, no Mónaco; Compañía Nacional de Danza, em Espanha; English National Ballet, no Reino Unido, Reportory American Ballet, nos EUA, e Maggio Danza di Firenze, em Itália.
Ganhou vários prémios.
Em Fevereiro de 1995 fundou a Companhia Olga Roriz.
Em 1997 encenou para o Teatro Nacional de S. Carlos a ópera Perséphone de Igor Stravinsky, e em Janeiro de 1999, para o Teatro Plástico, estreou-se em encenação para teatro na peça Crimes Exemplares de Max Aub, onde assinou também a dramaturgia e uma nova versão do texto.
Vou vê-la actuar em breve...



A roda - continuação

 A Roda
continuação


Glen Preece


Não acreditei em metade do que a bruxa disse. Provavelmente arranjou um qualquer plano maquiavélico para dar cabo do marido, livrar-se dele.
- Mas já conhecem muita gente através da Internet?
- De facto, não. Mas conheci Amélia e não estou nada arrependida.
Olham-se diretamente nos olhos, consigo finalmente captar um brilho especial, uma emoção. Quase sei que, por baixo da mesa, as mãos de ambas se tocam. Terminamos o jantar com um brinde. Visto o casaco, está frio:
- Então até à próxima, Ana.
- Adeus, Mafalda. Vens, Amélia?
- Não, vou com a Mafalda.
Entram as duas no carro, aceno e entro no meu. Tenho as mãos geladas e o coração. Não me deixei encantar pela sereia, sei que Amélia vai sofrer, que ela é má, que lhe vai tirar a alegria, aquele olho não me enganou, o frio que senti, gelado, a subir, quando olhei para ela, o reflexo escuro dos olhos violeta. 
Dói-me tudo. 
Dói-me a alma. 
Mais cedo do que Amélia pensa, vai chorar sentada na cadeira, vai desejar não a ter conhecido. 
É sexta-feira à noite e estou sozinha. Penso que às vezes é melhor nem começar seja o que for, quando se sabe que vai acabar mal, que vai terminar. Terrivelmente sozinha é como me sinto e é como Amélia se vai sentir quando o olho violeta daquela bruxa cair sobre ela e a ferir de morte. 
A solidão é um estado interior, um vazio que não se preenche. Às vezes a solidão ataca forte. Torna-se problema. Porém, muitas vezes sinto a necessidade de estar só, parece contradição, pois só dessa maneira consigo algum equilíbrio emocional, pensar na minha experiência individual. Então, essa solidão comigo mesma faz-me falta: é quando estou só que tranquilamente me recrio. Outras vezes, como agora, a solidão é dorida e fria. Uma mágoa que me invade devagar, amarga, cinzenta. Falta-me um certo aconchego que me abrace à noite na cama, me segrede umas doçuras ao ouvido, mordisque e possua sem pressas. Dou uma volta pelo centro, de carro, o telemóvel toca já perto de minha casa.
Maria Luís Koen



segunda-feira, 24 de junho de 2013








isabelle sauvineau





NÃO BASTA ABRIR A JANELA

Não basta abrir a janela 
Para ver os campos e o rio. 
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. 


ALBERTO CAEIRO (FERNANDO PESSOA), in POEMAS INCONJUNTOS / POEMAS DE ALBERTO CAEIRO



A roda

A Roda
continuação


Cinzia Pellin

A conversa gira à volta de tudo um pouco, há um desabrochar da personalidade que não consegui ler nos primeiros instantes – aquela que ela quer que eu saiba, que eu aprenda, que eu conheça. O canto da sereia. É isso que ela é. Sereia encantada ou bruxa má.
Mafalda é culta, vai ao cinema uma vez por mês, ou tenta, como ela própria diz, para não morrer de pasmo. Aproveita sempre que o filho fica com o ex-marido. Divorciou-se quando este tinha três anos. Não aguentou a pressão do agora ex-marido. Não lhe batia, mas a pressão psicológica era constante: nunca nada estava bem feito, nem em casa, nem com o filho, nem no trabalho. Dizia que era um escravo dela, um criado e que , por isso, ela tinha sucesso e ele não. Com o tempo ele foi conseguindo o que no fundo queria: subjugá-la. A sua auto-estima ficou muito em baixo, já nem conseguia decidir nada sem ele: o cinema ou o teatro, o vestido azul ou o preto – era ele quem decidia tudo, quem controlava tudo. Aos poucos foi perdendo os amigos, deixou de se encontrar com eles, nunca eram suficientemente interessantes para o marido. Sozinha consigo mesma e com os seus medos interiores, esmoreceu e com ela a relação. “Era uma relação tóxica, compreende? Amorfa. Deixou de haver cumplicidade, confiança e afetividade entre nós”. Com a ajuda de uma colega com quem fez psicanálise, conseguiu acabar com a tormenta e não se arrependeu. Depois, foi um caminho de re-aprendizagem de tudo e dela própria, de fazer amigos, de sair, de conversar ao telefone, de fazer as suas próprias escolhas e tomar as suas decisões. Foi o extravasar de toda a repressão.

Agora, de quinze em quinze dias dá-se a pequenos luxos, como ficar todo o dia em pijama, não cozinhar ou, até, fazer uma massagem Vichy. Com o filho em casa é sempre diferente. Quando ele não está, se não vai ao cinema procura ir ao teatro, às vezes com o Jorge, outras vezes com amigos. Adora ler e o passatempo eleito é surfar na net. Perde horas do seu pouco tempo livre no computador - “uma maneira de relaxar” e de conhecer outros.
Maria Luís Koen


terça-feira, 18 de junho de 2013


10

Richard Burlet



É tão difícil dizeres que me amas?
Descerra esses teus desenhados lábios
E diz:  amo-te
Amo-te tanto que não sei
Tenho medo deste amor
Desta força interior de maré
Deste olhar coberto em flores de todos
Os campos
Amo-te de todas as maneiras e gestos
De todos os cansaços  -  açucenas no lago
Amo-te.
- e ainda espero essas palavras.



Maria Luís Koen


A Roda - Mafalda - continuação

A Roda
Mafalda - continuação

Wendy Ng

As mãos macias, as unhas arranjadas, nada, mas mesmo nada, descura a imagem de Mafalda – o andar, a roupa, o relógio, tudo parece um jogo simétrico que encanta e, acima de tudo, hipnotiza. A mim não. Eu vejo para além da aparência mas, pela Amélia, faço um esforço:
- Olá Mafalda, prazer em conhecê-la.
Brincos e colar em pérolas brancas, pequenas, que contrastam com a cor do cabelo que usa solto. Comedida em tudo, até no falar: sabe escutar, faz as perguntas adequadas e responde com inteligência. É a maldade pura, eu sei.
- Já sei que é psicóloga, Ana.
- Sabe mais do que eu que desconheço a sua profissão, disse.
- Sou médica - e sorri.
Pedimos uma tarte vegetariana para Amélia, peixe para mim e carne para Mafalda.

Maria Luís Koen



9

Linda Girassol

Seremos juntos
eterna dúvida,
egoísmo
e perda.

Juntos
seremos também
paixão ou
raiva,

especial desejo,
dor de
solidão

e ódio.

-          muito melhor
que nada.



Maria Luís Koen



segunda-feira, 17 de junho de 2013

9. Mafalda

A Roda

Ira Tsantekidou

9.
MAFALDA
Olhos cor de violeta e o cabelo ruivo, escuro, comprido. As sardas espalham-se pelo nariz e o sorriso maroto parece irradiar simpatia. É diferente de todas as mulheres que conheço. Não a consigo ler. Detesto isso. Na minha profissão habituei-me a observar os gestos. Às vezes, estes dizem mais do que as palavras ou dizem o oposto porque são feitos involuntariamente e espelham as emoções, pensamentos e personalidade da pessoa. Todos os psicólogos e psicanalistas valorizam a comunicação não verbal. Sempre fui intuitiva, sempre dei grande importância aos sinais, muitas vezes mais relevantes do que as próprias palavras, que podem ser enganadoras. Mas este é um dom de família e de muitas mulheres. O que senti quando a vi foi avassalador, estranho: os olhos dela eram iguais aos dele quando eu chorei três dias e noites sem parar. Aquele vazio fundo voltou, foi difícil aceitar que aquela mulher era a maldade personificada.

- Olá Ana, já tinha ouvido falar de si.

Maria Luís Koen


domingo, 16 de junho de 2013




 Haja o que houver ___
Letra/música: Pedro Ayres Magalhães

Haja o que houver
Eu estou aqui
Haja o que houver
espero por ti

Volta no vento ó meu amor
Volta depressa por favor
Há quanto tempo, já esqueci
Porque fiquei, longe de ti
Cada momento é pior
Volta no vento por favor...

Eu sei quem és
pra mim
Haja, o que houver
espero por ti...

Há quanto tempo, já esqueci
Porque fiquei, longe de ti
Cada momento é pior
Volta no vento por favor

Eu sei quem és
pra mim
Haja, o que houver


espero por ti...




A roda - continuação

A Roda
continuação

João Alfaro

- Queres um whisky?
- Pode ser.
Vou buscar os copos, o balde do gelo e o whisky.
 - Bebo sem gelo, ela diz.
Saboreamos ambas o acre-doce da bebida, sorrimos:
- Que merda de vida!
                                    …
Amélia acabou por dormir no sofá. Bebeu demais, estava agitada, não valia a pena ir de elevador para o primeiro direito do número ao lado, podendo ali ficar. A náusea que bem conheço, ninguém quer ficar com ela a vida toda. Às vezes acordava às cinco da manhã, agora já nem tanto, bebia uns gins para acalmar, ficava zonza, com as palavras a querer brotar, tentando que o alívio chegasse, que a tormenta passasse. Valia tudo. Os cigarros que ardiam na garganta, os posts intermináveis na internet, os filmes sem legenda, não interessava o quê. Tudo servia para me libertar do peso de pensar, do pes0 de sentir a amargura, do destempero da raiva, da irritação agitada da alma.
Quando acordei, às sete e trinta, tomei um duche quente e rápido e só depois a acordei. Tinha os olhos inchados e pretos da maquilhagem por tirar.
- Não trabalhas hoje, Amélia?
- Obrigada, amiga. Soube-me bem ficar contigo a falar destas coisas que sinto.
- Se precisares de roupa tens aqui toalhas limpas e na cozinha tudo o que precisas. Vou ter que sair agora para não apanhar muito trânsito. Fecha bem a porta quando saíres.
- Obrigada, Ana.
- Convida-me para jantar. Quero conhecer a Mafalda, sorri.

Maria Luís Koen