quarta-feira, 21 de abril de 2021

Com ou sem alento

 

                                                                 (@Leonid Afremov)

Acordar às sete e sair para caminhar. Todos os dias, Inverno ou Verão, sempre a mesma rotina – um meio de limpar as teias confusas que baralham, varrer as ideias, às vezes tristes, sacudir as possíveis depressões. Acordo às seis. Quando chove, oiço as pingas a bater no asfalto da rua. Continuo de olhos fechados, imagino o cheiro e é alívio. Levanto-me. Vou. Caminho sem saber por onde. Passo seguido de outro passo. Encontro a Zilda. Por vezes caminhamos juntas, outras vezes cada uma segue o seu caminho, as suas motivações. Quando juntas não falamos muito. Apenas algumas palavras de alento ou cortesia. Não é isso que buscamos. Cada uma com os seus pensamentos, ela e eu, respiramos em sintonia, com ou sem alento, o ar sempre frio da manhã. A Zilda forte, a Zilda fraca, a Zilda das mil faces, a Zilda eu, todos os dias sai, mesmo com dores, alegre ou triste, sem prescindir do caminho, deste caminho, destas pedras soltas, deste ribeiro que corre, devagarinho, ao lado das mesmas árvores, as de todos os dias.


Maria Luís Koen


sexta-feira, 16 de abril de 2021

A fonte

  

                                                              (vytautas .poska)


      Chega desta constante falta. Já basta. Agora tenho que caminhar de novo, procurar outras paisagens. Não há outro remédio. Vou direto a Paris ou Londres ou outra qualquer capital onde sou um incógnito passageiro em busca de um novo caminho, não sei se de paz, mas um caminho que me ofereça beleza, que seja branco e nada sinuoso. A falta vai existir sempre. Falta sempre alguma coisa, até na felicidade. Mas vou. Sei que vai ser duro, sei que vou ter fome do que deixei e que vou sentir frio, também, ou talvez aconteça o oposto e nada disto, nada destes temores e pensamentos negativos, apareça. E, em vez deles, outras flores, que permitam desencadear um novo processo, um novo caminho e sejam a fonte, a porta, o outro lado do muro.


Maria Luís Koen


                                            

terça-feira, 13 de abril de 2021

A pessoa certa

 

                                                               (Victor Nizovtsev)


Tentou muitas vezes não errar, escolher a pessoa certa, aquela cujas vibrações fossem muito positivas, que lhe trouxessem calma e não agitação, tentou, mas pensa não ter conseguido descobrir essa pessoa. Depois de tanta busca, de tanto mirar e escrutinar essa gente que passa por ela e fica, por vezes, alguns momentos, ou dias, ou então meros segundos, chega à conclusão que está cansada dessa busca e que, pelo menos nesta vida, essa pessoa certa, a existir, não será encontrada. Às vezes parece, aquela mesmo, ser a tal, até pelo cheiro que dela emana, pelo brilho com que ilumina os outros na sua presença, mas não, não é aquela que  precisa, não é aquela que lê nos silêncios. Então sente-se cansada e roubada na alegria de finalmente a ter encontrado, quando afinal tudo era farsa.


Maria Luís Koen

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Café

 

                                                               (jean jacques rene)


Olha, hoje encontrei-te no café e estavas triste. Tentaste disfarçar esse sentimento mas sei que é forte, conheço bem o motivo. Desfolhei o album de fotografias que me mostraste em tua casa, algumas carcomidas pelo tempo, outras mais recentes e sei como é difícil alguém não estar mais presente. Olha, o meu coração está mais perto do teu agora, do que quando tudo aconteceu. Agora oiço a mesma sinfonia, aquela que tu gostas tanto de comentar e, quando a brisa sopra quente, como hoje, os cheiros da Primavera  fazem-me esquecer o resto. Então, digo- te: sei que felizes, sempre, sempre, nunca somos, mas alguns conseguem habitar jardins encantados, levando com eles outros, em direção à luz.


Maria Luís Koen


domingo, 11 de abril de 2021

Morreste -me

 

(Camelia-07)


Todo o dia choveu e fechei muitas vezes os olhos para não te ver. Confesso que queria muito abraçar-te, olhar para os teus olhos doces, ouvir as tuas palavras calmas e risadas alegres. Mas morreste. Morreste -me. Morreste para mim e para os outros. E é por isso que fecho os olhos enquanto a chuva cai.  Fecho para não ver a tua imagem e fecho porque ao fechá-los, vejo-te com uma dimensão maior. Só com os olhos fechados consigo imaginar os risos que não vou mais ouvir, as frases que não vais dizer nunca mais, os gestos que nunca iremos ter. Por isso não escondo a dor, esta amargura de nunca mais  te ver sorrir.


Maria Luís Koen









 

                                                               (Inna Karpova)


À nossa volta há

uma maré de

múltiplas flores,

labareda de

mil cores

 

a subir

a arder

a queimar

 

para depois

o crepúsculo chegar

e esfumar-se

ainda quente

em nós.



Maria Luís Koen


sábado, 10 de abril de 2021

Tormenta

 

                                                                (Inna Montano)


Não é uma mulher comum. Nunca foi. E ela sabe que eu sei que ela é diferente. Não mora na minha rua mas todos os dias a vejo. Da janela do meu quarto, quando a abro, eu pressinto aquele andar leve que ela tem e vejo. O amor deve ser assim, penso. Não há outra maneira. E, talvez por isso, o ódio que tenho de não a conhecer, também cresce. Amor e ódio numa só mulher. Parece loucura mas é assim que sinto. Todos os dias sou o mais doido dos doidos por ver os olhos dela em cada esquina, bocas cheias de beijos. Quando falei disto ao meu amigo, ainda riu e disse que já passara pela tormenta. É isso. Fiquei com a palavra tormenta, escrevi-a num papel que tenho no quarto para dela não me esquecer. Guardei o papel na gaveta, junto a outros tantos com outras tantas palavras e, todos os dias, uma ou mais vezes, abro a gaveta, remexo os papéis soltos e surge sempre aquele escrito com a palavra tormenta. Talvez porque é disso que me alimento. Um doido varrido atormentado é o que sou. Ainda mais porque deixei de a ver da minha janela ou de outro sítio qualquer. 

Ficou frio e tenho sede, faz-me falta o que não vivi.



Maria Luís Koen

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Perdido

 

                                                   (Serena Rosenfeld)


Sinto-me perdido neste ciclo de acontecimentos que surgem rapidamente umas vezes e, muito lentamente, outras. Perdido e desgastado, cansado, às vezes triste, muitas sequioso de mais e mais. Hoje sinto um aperto no coração, mas não é sempre. É hoje que sinto, talvez por estar vivo e não morto, digo fisicamente, porque posso estar morto de outras maneiras, por exemplo de desespero, por não conseguir mudar o destino. Amanhã posso sentir o oposto, não sentir medo, nem dor, nem vazio , como a preparar-me para nascer outra vez. Por isso olho no espelho e penso que se fosse mágico podia escolher o meu destino, amanhecer com sol sempre que quisesse, enterrar a morte das coisas que gosto. 


Maria Luís Koen


terça-feira, 6 de abril de 2021

Outono mas parece Primavera

 

(@Anna Silivonshik)



São seis da manhã e é Outono mas parece Primavera. O sol ainda não nasceu e a claridade passa pelas gretas da janela. O autocarro é só às oito, ainda tenho tempo para ganhar coragem e dizer-lhe, sim coragem, porque há certos assuntos que são difíceis de abordar e, por isso mesmo, não os dizemos. Mas hoje talvez consiga. Talvez consiga e não fique calado, mas tenho medo. Umas vezes falamos e o outro entende algo diferente, não o que dissemos. Parece que o som transforma as nossas palavras noutras palavras e noutros sons. Ainda assim, é melhor dizer, é melhor eu hoje falar, ganhar coragem e dizer, senão pode acontecer nunca mais ter essa conversa e ficaremos com saudades daquilo que não dissemos, das palavras que não ouvimos e, por causa disso, do que não sentimos. O autocarro é só às oito, vou levantar-me, chegar perto e, ao pequeno-almoço, falar-lhe de como gosto de sentir o fio dos seus cabelos nas minhas mãos ou do seu sorriso manso quando largamos as bicicletas junto à nossa árvore,  passeamos de mãos dadas no jardim e paramos para ver sempre o mesmo pato, colorido. Eu sei que não digo as coisas ou digo só com o pensamento e, por isso, ela não ouve mas mesmo com todos os silêncios, sabe que gosto dela quando a abraço de uma forma especial ou quando lhe toco nos fios dourados do cabelo. Os beijos que damos à sombra da nossa árvore fazem-me cantar loucamente por dentro mas sei que vai rir se o disser, ou melhor, não sei mas imagino e continuo a querer e a crer que as mãos que damos são verdadeiras, que os nossos corpos nus não são miragens e que  não quero continuar nesta incerteza que me mata.


Maria Luís Koen


segunda-feira, 5 de abril de 2021

Carícias

 

                                                    (@João Alfaro)


     Todas as tardes de sexta feira havia encontro. Ele esperava ansiosamente por ela, mas só no início. Depois tornou-se um hábito e ele, certo de que ela não faltava, já nem esperava com anseio ou desespero, nem comprava os doces que ela tanto gostava ou fazia sequer as pequenas surpresas que ela tanto adorava. Era assim e foi assim durante muito tempo. A rotina era tanta que muitas vezes não falavam, só o estar ali juntos era suficiente. Sentados, viam um filme, ou dois ou três filmes, quase a noite toda e pouco sobrava para se olharem por dentro. Outras vezes ficavam por ali, em casa, cada um entregue aos seus pensamentos, sem nada esperar um do outro, sem frustrações, medos ou acusações. Era assim. Desamparo que ambos amparavam. Não sabe o que fez alterar a situação, tentou muitas vezes relembrar qualquer detalhe diferente ou algo que tivesse despoletado a mudança, mas nada lhe ocorreu.  Ela não apareceu. Esperou a tarde toda, foi ao calendário do telemóvel verificar se era de facto sexta-feira e era, mas não ficou ansioso. Desesperadamente procurou na memória algo que ele ou ela tivessem dito mas raramente diziam algo. Pensou : talvez tivesse sido o que não foi dito. Talvez. Ou a falta de carícias.


Maria Luís Koen

quinta-feira, 1 de abril de 2021

 

Tom Shropshire


Como é possível ficarmos cegos e aceitarmos tudo o que antes não queríamos? Dizemos que sim, sim e não resistimos. Deixamos em parte incerta todos os nossos sonhos e projetos, sem nos apercebermos que estamos errados, que devemos lutar, que não devemos aceitar só porque é importante para a outra pessoa. Imersa nestes pensamentos, distraio -me com o som que vem da janela da sala: chove. São pequenas pedras brancas minúsculas, que batem às vezes com força nos vidros e depois desenham pequenos ribeiros de água, que sigo com os olhos, até fazerem um pequeno lago do lado de fora. É isso. Vejo no espelho que é o vidro da janela, um percurso frio, que nos alaga e, no final, mais tarde, dizemos:

– como é possível ter aceite, como é possível não ter mudado, como é possível ter hesitado, não ter resistido?


Maria Luís Koen