Memórias da Aldeia de Monte Claro
1. A casa velha
De noite, em casa, não havia luz, não havia
movimento, não se pensavam os olhos, não se sentiam as sombras, mesmo que
ligeiras. Era mesmo tudo escuro. Uma escuridão estranha, que nos envolvia e nos
deixava quedos, quase em torpor. De vez em quando havia um som de madeira a
chiar, um som aumentado pela falta de todos os outros sons. Por vezes também se
ouvia a madeira a ser comida e aquilo ficava. Ficava o som a embalar, até que o
sono nos levava e a manhã aparecia , não com a luz que sempre se espera, mas
com o cantar agudo do galo e o cacarejar das galinhas, ao longe. Era sempre
assim ali, na casa velha, provavelmente também nas outras casas da aldeia.
No sobrado não havia janelas, não podíamos
ver as estrelas de noite ou a lua, nem o raiar do sol. Era sempre noite escura
no sobrado, mesmo quando dia. Descíamos a escada estreita, de madeira, para o rés-
do- chão que era a casa, com o chão em lages largas de pedra cinzenta e a porta
de madeira maciça com postigo que deixava entrar a luz. Tinha uma cortina, se não
me engano. Não havia janela. A casa, em baixo, tinha também dois quartos: um primeiro, maior,
onde estávamos e comíamos, um segundo, onde os avós dormiam. A
separá-los, uma cortina.
Tudo passava por ali, pelas portas sempre
abertas ou com a chave, a dizer que se podia entrar, nada havia a esconder.
Entrava-se e saía-se para os campos. Havia que ir buscar água, com os potes. Havia
os animais para tratar, as terras para cavar, a fruta para colher. Parecia
tudo simples, então. Sem muitas complicações ou agitação.
Da casa, rude e de pedra, descia uma rua também
em pedra, ladeada de outras casas cujos habitantes pouco lembro. Descíamos para
ir comprar rebuçados ao café do lado esquerdo da rua, na casa que era da minha
tia. Entrava-se e estava sempre escuro, havia homens a bebericar e a falar. À saída, e na volta para casa, lembro as flores plantadas, muito doces, vermelhas, dos
lados das casas, que chupávamos, e o
poial da casa acima, do António e da Maria, que servia de cadeira para
conversas cantadas naquela pronúncia, mais à tardinha, no Verão. À noite ficava-se em casa. Não havia
eletricidade e as conversas faziam-se à luz dos candeeiros a petróleo.
A rua, cujo nome não sei precisar, descia até ao fim da aldeia, fazendo um
ligeiro S, parecendo grande mas, agora, vejo que não. Logo a seguir ao S, havia
um largo, pequeno, com um poço por baixo
da casa da minha tia. O poço tinha um
banco. Se ali nos sentássemos, podíamos ver o fim da rua, em frente e à
direita, outra, que iria dar à principal, direta à vila. Víamos as portas das
casas dos outros, entreabertas, muitas, e sons que vinham lá de dentro. Pessoas que já
não lembro, exceto a Miguela do lado esquerdo e a Luz, lá mais à
frente.
Se subisse a rua da casa velha, tinha três
possibilidades: dois degraus e lá estava
a mercearia, com a balança antiga e o cheiro característico das mercearias de
aldeia, o marido ou a mulher de óculos, sempre simpáticos a aviar. Se virasse à
esquerda, comprava o pão acabadinho de fazer no forno da aldeia. Ia com a avó e
ela nunca trazia só um pão, mas sim cinco ou seis, num bornal de pano, que
ficavam guardados algures na casa velha e que davam para muitos dias. Não me
lembro de alguma vez ter comido pão duro, ali. Seguindo nessa direção, também
podia continuar e sair da aldeia, rumo à vila ou pelo lado oposto, em direção
aos campos. Disse que havia três possibilidades. A terceira, seria virar à direita, se pensar na mercearia
como o centro, quando subia, vinda da casa velha. Por aí ia muitas vezes
com a avó ou o avô, dar alimento aos porcos e em direcão à horta. Outras vezes, quando eles estavam, com os primos.
Sentados à lareira, todos ouvíamos o conto, contado pelo avô:
Era uma vez um soldado, chamado João, que foi servir a pátria.
(nós os quatro a caminho)
2. A horta
Deixando a aldeia para trás, caminhava-se um bom bocado, mas havia sempre o contentamento de ver os bichos na pocilga, esfomeados, a grunhir. Geralmente eram dois. Espreitar lá para dentro era sempre uma aventura. Abria-se o portão de madeira e, ao longe, a pocilga em pedra escura, com dois degraus feitos, também, de pedra mal amanhada. Recordo a alegria de ver os porcos e a tristeza de os ver morrer, mais tarde, aquando da matança.
No caminho de pedra e pó, até à horta, muitas flores silvestres, muitas “chagas de cristo”, muitos muros de pedra e muitos sons que só ouvimos no campo. Esta era uma terceira paragem porque, muitas vezes, a primeira estava perto da saída da aldeia. Aí, havia um poço e uma nora. Levava-se água aos animais. Aí, também havia uma espécie de latrina pública. Um nojo, é verdade. Não havia saneamento público e passo à frente este assunto.
Nessas caminhadas do terreno dos porcos até à horta, havia sempre correria, gritaria, berros com eco e era bom. Muito bom. Aberto o portão da horta, tudo dependia da época... – mas ... muitas vezes favas! Favas, muitas favas. O terreno era ligeiramente inclinado e ladeado de oliveiras. Recordo o mar de favas, não sei porquê. Ao cimo, o palheiro e mais oliveiras, figueiras, ameixas amarelas e escuras, tão doces, tão boas, pêros amarelos. Muita hortaliça. Na altura da apanha da azeitona, lá íamos, não varejar mas apanhar, sim. Algumas, pelo menos, que éramos primeiro crianças, depois jovens.
Havia um poço e um tanque, do outro lado do terreno, uma nora, um pequeno riacho que vinha de outra horta acima, com água fresca e transparente e muita coisa para fazer e comer.
O avô ou a avó cavavam ou colhiam ou semeavam e nós...muita brincadeira com os primos, quando eles estavam.
Muitos cheiros, intensos, claros.
No palheiro estava um burro preto. Uma ou duas vezes lá me sentei, em cima do burro, pouco à vontade. Noutras alturas, havia tiro aos pássaros, mas a pontaria era pouca, que me lembre. Tardes ou manhãs bem passadas, de muita acalmia.
Recordo com muita saudade essas alturas, essas caminhadas, a ida para a horta com a paragem nos porcos, e a volta com muitas amoras pretas e ar puro no caminho.
Os cheiros.
Enchiam-nos a alma e não sabíamos.
(pai na figueira)
(O burro... o pai e a mana)
(passarinhos)
(na tapada)
("chagas de cristo")
Um dia já não ficámos no sobrado escuro, nem na casa com lajes cinzentas de pedra. Ficámos mais abaixo, na casa da tia.
A casa era grande, com dois pisos e duas portas de entrada: uma na rua da casa velha, outra na rua paralela. Ambas davam para o largo do poço por baixo da casa.
Quando entrava pela porta da rua da casa velha, havia uma sala, grande, com janela. À esquerda dessa sala um outro quarto, onde era antes o café. À direita, uma porta que dava para a varanda. Em frente da sala, um corredor, que nos levava à cozinha grande, de aldeia, com a lareira e o sítio certo para os potes com pedrinhas brancas, cheios de água que se fora buscar ao campo, onde a água era pura. A cantareira tinha três ou quatro potes, alguns pedrados, cheios de água fresca, que se bebia com um púcaro. Os potes eram sempre muito bem esfregados e lavados antes de serem novamente cheios com água. Para além dos potes, havia os pratos, alinhados e sempre à mão.
Da cozinha podíamos ir para a varanda larga e alta, que dava para o largo. Aí havia alguns vasos com plantas e muito espaço. Também podíamos subir as escadas de madeira e ter acesso ao andar de cima, com quartos – o sobrado, mas com janelas. Ou podíamos sair para a rua, paralela à da casa velha. Bastava descer dois degraus e lá estava a Micaela, que é de quem me lembro mais. Subindo essa rua íamos para a horta. Das pessoas que aí moravam, não tenho memória.
Não havia eletricidade.
Depois do jantar, no Inverno ou no Outono, sentados nas pequenas cadeiras de vime, ao lume de chão, havia conversas e contos. Contos que o avô gostava de contar. Aqui, na casa da tia, lá na casa velha ou ainda na outra, para onde, mais tarde, passámos a estar. Em todas havia a lareira, o lume de chão e os contos. O avô gostava de contar e nós de ouvir. O conto do João Soldado que meteu o diabo num saco, era o meu favorito. Conto demorado mas que enfeitiçava quem ouvia...
“Era uma vez um soldado, chamado João, que foi servir a pátria. Ao fim de vinte e quatro anos ganhou quatro vinténs e um pão... "
4. O conto do João Soldado ou João sem Medo
Sentados à lareira, todos ouvíamos o conto, contado pelo avô:
Era uma vez um soldado, chamado João, que foi servir a pátria.
Ao
fim de vinte e quatro anos ganhou quatro vinténs e um pão.
Um
dia, no caminho, encontrou o Senhor e S. Pedro disfarçados de
mendigos, que lhe pediram uma esmola. Ele não os reconheceu e disse:
-“ Andei
vinte e quatro anos a servir o rei e a paga que tive foi um pão e quatro vinténs
e ainda me pedem esmola?”
Mas, apesar
do pouco que tinha, acabou por dividir o pão em partes e cada um
ficou com o seu bocado. E foram à sua vida.
Ia
o João Soldado novamente no caminho, quando encontrou os pobres outra vez.
Disfarçados, pediram esmola e ele deu mais um bocado do que tinha.
Foram embora e voltaram a encontrar-se. O João
Soldado, que quase nada tinha, deu-lhes mais dois vinténs e ficou
sem nada. Então S. Pedro disse ao Senhor:
–
“Lembrai- vos do pobre soldado que repartiu connosco tudo o que tinha.” E Nosso
Senhor disse a S. Pedro que perguntasse ao soldado o que ele queria. João
pensou um bocado no que havia de pedir e depois, apresentando a Nosso Senhor o
saco que levava, disse:
– “Peço para que este bornal tenha o condão de entrar para dentro
dele o que eu quiser.”
E Nosso Senhor concedeu o que João
Soldado pediu.
-
“Sempre que quiseres algo, só tens que dizer- venha aqui para o meu
bornal.” E foram embora.
O
João Soldado, contente mas não muito convencido, decidiu
experimentar. Estava com fome, passou perto de uma mercearia e disse:
-
“Pães, chouriços e água pé, venham já pró meu bornal”. Para espanto seu, uma
fileira de pães, chouriço e água pé entraram para dentro do bornal. A partir
daí, sempre que queria alguma coisa dizia :
-“...venha
aqui para o meu bornal” e o pão, a carne, tudo o que queria, saltavam para
dentro do bornal.
Era quase noite e o soldado estava cansado de
andar todo o dia. Foi à procura de uma pousada, mas só lhe
ofereceram uma casa que estava desabitada há muito tempo, e para onde ninguém
queria ir, porque lá aparecia de noite uma alma do outro mundo. Dizia-se que
era a alma do dono que lá tinha morrido, um grande avarento que morrera a uma
sexta feira. O soldado João gostou daquela história de almas do outro
mundo. Viu a grande casa e decidiu entrar. Se houvesse
algum problema, ele tinha o seu bornal!
–
“Sou um soldado que servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro
vinténs e não tenho medo de nada. Sempre quero vêr essa alma do outro mundo...”
Entrou, havia uma salgadeira com boa carne, presuntos no fumeiro e
bom vinho. Acendeu o lume de chão e pôs-se à lareira pronto a assar a carne.
Estava esfomeado. De repente ouviu uma voz grave e forte vinda do alto da
chaminé da lareira:
-
“Olha que eu caio !...”
Ele, sem medo, bebeu um copinho de vinho.
-
“Olha que eu caio!”- disse a voz outra vez.
-
“Olha que eu caio!!”- gritou.
-
“ Cai para aí à vontade . Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- disse o
João Soldado.
- “Então, lá vai a minha cabeça.”.
E cai a cabeça do homem.
-
“Olha que eu caio!”
-
“ Cai para aí à vontade,
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou!.
Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- repetiu o João Soldado. E cai o braço do homem. E a seguir o outro.
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou!.
Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- repetiu o João Soldado. E cai o braço do homem. E a seguir o outro.
João Soldado ia bebendo sem medo.
-
“Olha que eu caio!”
-
“ Cai para aí à vontade,
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou.!”
E cairam o tronco e as pernas.
Finalmente, depois de estar o homem inteiro caído no chão, o João
Soldado disse:
-
“E agora?”
-
“ Une-me a cabeça ao tronco!”.
E ele assim fez.
-
“Une-me os braços ao tronco”
E ele assim fez.
-“Une-me
as pernas ao tronco”.
E ele assim fez.
O homem ficou completo.
-
“ E agora?”
-
“Agora ajuda-me a levantar”.
E ele assim fez.
-
“És valente!”
-
“Servi o rei durante vinte e quatro anos e recebi em troca um pão e quatro
vinténs!”, disse João Soldado muito senhor de si.
-
“Se és pobre, podes ficar rico se fizeres o que eu disser”.
-
“O que tenho que fazer?”- perguntou.
-
“Anda comigo.”
E
a alma do outro mundo, seguida do soldado, encaminhou-se para uma casa
subterrânea, que havia por baixo da cozinha. Levantou uma grande pedra que
tapava uma cova e mostrou ao João soldado três grandes potes cheios de
dinheiro.
–
“Vês todo este dinheiro?”- disse a alma do outro mundo.
–
“Vejo sim”.
–
“Pois parte deste dinheiro será para ti se cumprires as minhas ordens”.
–
“Vamos a isso”, respondeu o soldado.
–
“Então reparte este dinheiro em três partes. Uma é para dar de esmolas aos
pobres; outra é para mandares dizer missas pela minha alma; e a terceira parte
é para ti se cumprires à risca a minha vontade.”
–
“Está bem”, disse o soldado. “Eu que servi o rei durante vinte e quatro anos,
por um pão e quatro vinténs, melhor cumpro as tuas ordens, com tão bom pagamento”.
E
o João Soldado foi logo tratar de dar as esmolas aos pobres e de mandar dizer
as missas pela alma do avarento. Com o dinheiro que restou, comprou uma boa
casa e teve uma boa vida, cheia de vinho e comida.
O
Diabo, porém, jurou vingar-se do soldado João, por ele lhe ter tirado a alma do
avarento, que afinal se salvou com as esmolas e as missas. Mandou logo ter com
o João um diabinho dos mais espertos que tinha no Inferno, e ao qual prometeu
mundos e fundos, se lhe trouxesse o João Soldado para o Inferno.
Estava o João sentado à sombra de uma árvore, na sua quinta,
quando lhe apareceu um homemzinho muito cumprimentadeiro :
–
“Como passou o sr. João?”
–
“Ainda agora me vês e já sabes o meu nome?!”, respondeu o soldado meio
desconfiado com aquele homemzinho esquisito e feio.
–
“Tens má cara para santo”, continuou o soldado,” mas se queres uma pinga anda
cá beber”.
O diabinho , muito esperto, respondeu que não queria beber e
convidou o João para que o acompanhasse.
–
“Mas para onde me queres tu levar? Olha que eu servi o rei durante vinte e
quatro anos por um pão e quatro vinténs, e não tenho medo de ti. Se é para o
inferno que me queres levar, deixa que vá arranjar provisões para a viagem.
Olha, essa figueira tem bons frutos, come enquanto eu vou buscar o que
preciso.”
E o diabinho, cada vez mais contente, saltou para a figueira a
saborear os figos grandes.
Quando o soldado voltou, trazia consigo o bornal e logo disse:
-
“Salta já para o meu bornal!”
O
diabinho bem lhe prometeu mundos e fundos mas teve que entrar no bornal. Levou
uma valente sova e foi queixar-se e chorar, com o rabo entre as pernas, para o
Inferno, berrando que metia dó.
O Diabo esperava-o indignado por não ter cumprido a tarefa, e
vociferou infernalmente contra o diabinho, por se ter deixado apanhar como um
parvo, pelo soldado que assim zombava do seu poder.
–
“Quem vai agora buscá-lo sou eu”, disse, muito soberbo o Diabo para o diabinho,
que estava todo encolhido a um canto do inferno, muito dorido e chorando.
Estava
o João a jantar, muito satisfeito, quando bateram à porta com força
tal que tudo estremeceu.
–
“Há-de ser o Diabo”, disse o soldado. “Já cá o esperava depois da sova que dei
ao outro”.
E
assim foi.
O
Diabo entrou de rompante. Os olhos faiscavam raios de lume e cheio de raiva
disse:
–
“Vais pagar tudo o que fizeste ao meu enviado!”
–
“Se vens para cá com essas palavras, vais pelo mesmo caminho do teu diabinho”,
disse o soldado, pondo o bornal a jeito.
–
“Isso é que vamos vêr. Desta vez levo-te para as profundezas do meu reino, como
o mais refinado patife cá deste mundo.”
–
“Olha eu não tenho medo, meu grande Diabo. Servi o rei durante vinte e quatro
anos por um pão e quatro vinténs!”
O Diabo, cada vez mais furioso, ia a deitar as suas garras
ao soldado, quando este, dando um pulo para traz, abriu o bornal em frente ao
Diabo, e gritou:
–
“Já para dentro do bornal!”
Ouviu
se um grande rugido, que o Diabo soltou de dentro do bornal e debatendo-se
furiosamente dava pulos até ao teto, enquanto o soldado armado com
um pau dava pauladas ao Diabo até o deixar quase morto, e a pedir humildemente
por todos os diabos que o deixasse ir para o Inferno.
–
“Ah! Já pedes misericórdia! Pois vai para o Inferno!” e o João abriu o bornal
de onde saiu o Diabo todo partido, de cauda escorrida, mal se podendo arrastar.
Quando
o Diabo chegou ao Inferno ia em tal estado que os diabinhos ficaram aterrados e
todos se uniram cheios de medo à espera das ordens do Diabo. Ele então ordenou
que forjassem grossas trancas de ferro e fabricassem grandes ferrolhos para
trancar as portas do Inferno, com medo que o João soldado lá entrasse.
Entretanto o João soldado viveu a sua vida de excessos e morreu.
Foi parar ao Inferno. Os diabos assim que o viram começaram a gritar:
-
“Fechem tudo, fechem as portas e os postigos ou seremos todos batidos!”Assim
fizeram e o soldado não pôde entrar no Inferno.
Foi então bater às portas do Céu. S. Pedro assim que o viu disse:
-
“Vens enganado. Não entras aqui. Não te lembras da má vida que levaste?”
–
“ Sr. Porteiro, então um soldado que serviu o rei durante vinte e quatro anos
por um pão e quatro vinténs, não pode entrar no Céu?”
S.
Pedro teimou e o João soldado, sem respeitar as barbas brancas de S. Pedro
ameaçou metê-lo dentro do bornal.
–
“Olha que foi a meu pedido que o Senhor te deu esse bornal e tu não te deves
servir dele contra mim.”
–
“Para as ocasiões é que ele serve”, disse o soldado, “e agora é uma boa
ocasião. Ou me deixas entrar, ou vais para dentro do bornal!”.
E,
como S. Pedro ía fechar o postigo, sem lhe dar tempo para mais
discussões, o soldado gritou:
–
“Já para dentro do bornal!”
S.
Pedro viu-se preso dentro do bornal e o João soldado
dentro do céu.
–
“Tira-me daqui” - gritava S.Pedro. “Olha que entra toda a gente!”
Assim
entrou no Céu o João Soldado que serviu o rei durante vinte quatro
anos por um pão e quatro vinténs.
Enquanto conversávamos na varanda, sobre o próximo jogo do monopólio com os primos, sobe uma mulher os degraus e entra para mostrar as meias feitas em renda com quatro agulhas e o naperon feito em renda de bilros.
A avó vai à salinha buscar a cesta dos trabalhos e mostra o par de meias em renda até ao joelho, o seu último trabalho, para usar em dia de festa. A tia vai lá dentro buscar a cesta onde se encontra o que está a fazer em renda.
A curiosidade é muita, os bilros pauzinhos encantados a que se juntam alfinetes e gestos doidos, para quem não entende nada da técnica. Ela explica, sim, mas não é fácil, a técnica. Ela explica com a sua voz cantada e mostra como faz, muito lentamente para se fazer entender. A almofada ou rebolo onde é colocado o desenho num cartão e onde ela vai colocando os alfinetes à medida que o trabalho avança. Não há agulha mas sim bilros em madeira, onde enrola os fios dos diferentes materiais, que podiam ser algodão, seda,linha...
A tia fazia a renda com os bilros aos pares. Parecia uma dança complicada de pauzinhos, muitos, pelo menos para mim. O barulhinho era engraçado e tudo aquilo parecia magia. Quantos eram os bilros? Não sei. Eram muitos, dependendo do trabalho a ser feito. Depois trocava este por aquele, ia buscar outro e mais outro, aqui e ali, em voltas e mais voltas de pauzinhos até o desenho ir surgindo, belo e minucioso. Uma maravilha.
Hoje tenho pena de não ter aprendido.
6. A água fresca
Quando era poucaa água para beber dentro dos potes, havia que ir buscar mais pois na aldeia não existia água canalizada.
O sítio era escolhido a preceito, uma nascente, pois a água não era para lavar e sim para beber.
Preparavam-se os potes, as rodilhas e a disposição para caminhar. Eram várias, as mulheres da aldeia, que se juntavam com o mesmo objetivo: a água. Saias rodadas por baixo do joelho, meias até ao joelho, avental , blusas floridas a tapar o decote, lenços na cabeça, cabelo grande enrolado.
Na
ida para lá, os potes iam à cabeça, deitados; à vinda para cá, iam em pé cheios
de água. Gostava sempre de ir porque o divertimento era muito. Muitas vezes ia
eu, a minha irmã, os primos ou outros miúdos. Apanhávamos flores do campo,
bebíamos da natureza e era tudo puro e belo. Também levávamos um pequeno pote e
uma rodilha mas o resultado não era o mesmo.
Ficava sempre admirada porque os caminhos
eram de terra batida e as mulheres nunca deixavam cair os potes. Direitas e
elegantes, com os seus lenços que lhe cobriam os cabelos, que não cortavam,
elas lá iam na conversa, alheias à admiração que causavam.
Colocados novamente no local devido, eram
muito usados e acarinhados, pois tinham água pura sempre fresquinha.
7.
O quebranto
Foram muitas as vezes que a avó Isabel nos
tirou o quebranto.
Bastava
estarmos mal dispostas, termos dor de cabeça ou chegadas a casa vindo de outros
lugares, cansadas, que ela, desconfiada ou preocupada, ia à cozinha, trazia um
prato cheio de água, onde deitava umas gotinhas de azeite. Umas vezes havia
reza e repetia o deitar das gotinhas do azeite na água, outras vezes ficava-se
por ali. No início não percebia a diferença, era mais pequena. Depois comecei a
colocar questões sobre o “quando é que havia reza e porquê”.
Não só a avó Isabel mas também a tia
Rosária, sua filha, sabiam e faziam este ritual. Da reza não davam conhecimento
porque, se o fizessem, perdiam de alguma maneira o poder de tirar o quebranto.
Por isso, o ritual passava entre as
mulheres da família - a reza.
Deitavam cinco pingas de azeite num prato
com água. Se o azeite se espalhasse, a pessoa tinha quebranto e a reza era
repetida até isso não mais acontecer. Se se juntasse numa só bolha, estava tudo
bem.
“Deus
te viu
Deus
te criou
Deus
te livre
De
quem para ti mal olhou
Em
nome do Pai, do Filho,
E
do Espírito Santo,
Virgem
do pranto
Tirai
este quebranto”.
8. A matança
(cachola)
9. O Monopólio
(bolinhos de azeite)
(pão caseiro)
(cachola)
Na aldeia quase todos os habitantes tinham
horta e animais: galinhas, patos, coelhos, cabras, ovelhas, vacas e porcos. O
meu avô tinha galinhas, coelhos, patos, cabras e porcos. Depois da engorda, vinha a época das
matanças. Geralmente era em janeiro ou fevereiro. Às vezes no Natal. Estava frio. Vinham os
filhos, os netos e os vizinhos também.
A primeira recordação que tenho, é dorida.
Ir para um grande espaço e ouvir guinchos alucinantes de um animal em
sofrimento, foi algo que nunca esqueci. Era pequena na altura. Mãos nos ouvidos
para tapar o som que não queria ouvir. O porco preso, os homens, vários, a
segurá-lo, o grito lancinante do animal e o meu, para não ouvir o dele.
Mas, já maior e noutro espaço – no quintal
da casa da tia e depois na casa do boqueirão - os guinchos foram iguais e a recordação dorida,
mantém-se.
Preparado o local onde o animal ia ser
colocado, também tinha que haver homens em número suficiente, cordas para o
segurar e pendurar, faca para o matar, carqueja para o chamuscar e lenha para o
cozinhar. As mulheres também preparavam a matança: a avó e a tia buscavam
alguidares de barro que iriam receber as carnes que por elas iriam ser
temperadas bem como os alguidares que receberiam as tripas do porco e o sangue
ainda quente.
O avô e outros homens iam buscar o porco à
pocilga, que traziam para o local onde iria ser morto. Era atado, vários homens
o seguravam- o avô, os primos já homens, o tio, o pai, às vezes mais um ou dois
e, era depois morto com uma grande faca espetada no coração. A imagem dos guinchos e do espernear do porco
mantém-se viva. A faca espetada no
coração, o alguidar em baixo a receber o sangue quente, que a tia ou a avó
mexiam continuamente. Com ele fazia-se a sopa de cachola comida ao almoço e posteriormente
as morcelas.
O porco
era então chamuscado com carqueja a arder. Ainda sinto
o cheiro a queimado nas narinas. Depois de chamuscado era raspado com uma faca
e lavado.
Eram sempre dias de grande agitação e festa
familiar.
Para o matar havia vários homens, embora
apenas um o fizesse, para o levantar e pendurar no quarto da desmancha, outros
tantos.
Esse quarto tinha um grande gancho preso
ao teto. Era aí que o porco era pendurado, já chamuscado, raspado e lavado. Ali
ficava a escorrer. O avô, então, abria o
porco de alto a baixo para tirar as tripas e o estômago para um lado e os rins,
o fígado, os pulmões e o coração para outro alguidar.
Havia, ainda, muito a fazer. Limpar o
espaço onde o animal tinha sido morto, preparar o almoço. O lume de chão já
tinha brasas, pronto para se assarem umas febrinhas só com sal ou o rabo do
porco. As primeiras. Preparavam-se as laranjas que acompanhavam a sopa de
cachola. Havia queijo que cheirava mal e vinho feito pelo avô. Pão caseiro . Febras
e carne de porco assada na brasa. Do resto do almoço, não lembro.
A matança não acontecia só num dia. Um dia
não chegava para tanta azáfama.
As mulheres tinham a incumbência das
tripas do porco. Estas eram muito bem lavadas e esfregadas pela avó, mãe, tia e
outras mulheres numa ribeira com água corrente. Não falo do cheiro. Também não
gostava dessa parte. Era um trabalho meticuloso pois se assim não fosse, tudo o
que se seguiria ficava estragado. Ficavam guardadas, com sal e não sei se mais
alguma coisa, até serem utilizadas. O intestino grosso para umas carnes e o
delgado para outros. No porco tudo se aproveitava.
Só o avô desmanchava o porco. Tenho a
imagem bem presente do porco pendurado e
mais tarde, não sei se já no chão, ele a escolher e cortar: os presuntos,
orelha, pedaços para isto e para aquilo, cada pedaço no seu alguidar, o
toucinho. Daí viriam as morcelas, os paios, as cacholeiras, o bucho,
farinheiras, linguiças. No entretanto,
havia sempre umas febrinhas para assar no lume de chão.
Desmanchado o porco – tudo se aproveitava
– voltava o trabalho das mulheres. A avó, a tia e outras mulheres da aldeia
cortavam as carnes em pequenos pedaços e temperavam. Este trabalho era feito com a
porta fechada. Sentadas nas pequenas cadeira de palha, migavam, temperavam,
mexiam, preparavam. E se alguma mulher, que não elas, entrasse no quarto das
carnes, olhavam diretamente nos olhos das pessoas, a saber se estavam com
sangue ou não, para não estragar a carne.
Preparada a carne, deixada a tomar sabor
por não sei quantos dias, havia outros preceitos a fazer: escolher o que por na
salgadeira, preparar o fumeiro da chaminé.
Depois havia que encher as tripas lavadas
e preparadas. Era trabalho das mulheres, outra vez. Parece que as estou a ver.
E a ver-me. E à minha irmã. E à minha mãe. À avó e à tia. Ao pé da grande
chaminé. Os alguidares com as carnes, o cheiro a cominhos, as tripas, os funis
para poder encher as tripas, o cordel para as atar. O dedo polegar a trabalhar
ou um pauzinho. Eram depois fervidas em água, as morcelas naquele dia as outras
carnes noutro, que depois se colocavam nas varas do fumeiro: os presuntos, as
cacholeiras, as morcelas de sangue, os paios... e ali ficavam até estarem
prontos a comer.
Lembro as conversas e os cheiros.
No
Verão, com os dias quentes, muitas noites se passavam na rua, os mais velhos
sentados nas cadeirinhas de palha. Havia cadeiras para todos os tamanhos. Durante o dia, a casa da tia era fresca e,
quando os primos estavam, havia jogos de monopólio. A sala, quando se entrava
pela porta da rua da casa velha, tinha uma mesa quadrada grande, onde podíamos
jogar à vontade, com muitos risos e protestos que este jogo proporcionava e ainda proporciona. Quando assim acontecia, o
jogo durava a tarde toda. Essa e outras mais, pois nunca parecíamos cansados de
o jogar. Não havendo jogo, havia o descanso da tarde, não a dormir mas a ler
muitos livros do pato Donald e do tio Patinhas, entre outros. Apesar de não
haver televisão, não me lembro de ficar aborrecida.
Havendo sede, tinhamos a água fresquinha
nos potes da cantareira; havendo fome, o pão caseiro, o
queijo fresco feito pela avó Isabel ou o outro, bem mal cheiroso, que
ela guardava dentro de uma folha de couve. Às vezes também havia almece, a que
a avó dava outro nome. Ordenhadas as cabras, o leite era utilizado para fazer o
queijo e o almece. Como não gosto de
queijo, certamente o meu lanche era outro. Já dos bolinhos
de azeite feitos pela tia Rosária, não posso dizer o mesmo. Ainda hoje,
que ela já faleceu, tenho saudade de os comer. Nunca comia só um.
Inquiridos os primos sobre os bolinhos que
eles tão bem se lembram de comer, continuo sem a receita. Procuradas outras,
parece-me sempre que não serão como os dela.
(pão caseiro)
10
(cavacas)
Os
doces
(tigelada)
O bolo de azeite e os bolinhos
de azeite: parecem iguais mas são
diferentes.
Ao bolo de azeite associo a avó Isabel,
aos bolinhos de azeite associo a tia Rosária.
O primeiro, não tinha doce e era grande –
penso que feito sem açúcar, tinha como ingredientes principais pão, azeite e
farinha; os segundos eram pequenos, doces e bem mais saborosos.
O primeiro não fazia grande questão em
comer, já quanto aos segundos... tudo era bom: a massa ainda crua, quentinhos a
sair do forno ou frios, eram simplesmente maravilhosos!! E a receita, onde
está? Não sei. A avó morreu, a tia morreu, a mãe não sabe, os primos só se
recordam de os comer...
Se pensar nas filhós, eram
também diferentes daquelas a que estava habituada. A minha avó materna fazia as
filhós típicas da zona onde morávamos na altura do Carnaval e a minha avó
paterna, avó Isabel, fazia as filhós na época do Natal e eram bem diferentes,
pois eram também feitas com azeite, farinha, ovos e aguardente. Revejo-a a
amassar e a tender a massa, a colocar a massa no azeite a ferver, a virar cada
filhó assim que estivesse bem dourada. O cheiro a fritos, o açúcar...
A tigelada era outro doce
que a avó Isabel gostava de preparar. Era
feita numa tigela de barro e levava ovos, farinha, açúcar e canela. Vejo-a,
muito direita, com as suas saias rodadas, várias, e avental, com o cabelo apanhado. As mulheres
não cortavam o cabelo. Às vezes, na casa do boqueirão, a avó sentava-se à
lareira e soltava os cabelos que iam até à cintura. Nunca o cortara. Penteava-o
com um gancho grande e era depois enrolado e preso à cabeça. Na rua, as mulheres tapavam o cabelo com um lenço e
não havia decotes. Já mais velhas vestiam muito de preto porque toda a gente
era parente e havia sempre alguém a morrer. Feita a tigelada era só comer e
chorar por mais.
As cavacas eram mais
elaboradas. Havia mais trabalho a fazer. Geralmente, no sobrado, juntava-se a
tia, a avó e lembro outra mulher para preparar a massa, o “branquinho” das
cavacas e depois as terminar. Era bom comer a cobertura branca e era também bom
comer tudo quando ficavam prontas. Ficavam em cestas de verga, cabazes ou
tabuleiros, dentro de um panos brancos de linho.
(bolo de azeite)
(filhós)
(bolinhos de azeite)
11.A
casa do boqueirão
Quando os avós mudaram para a casa no
boqueirão, foi outra novidade, pois o espaço era diferente, tanto no interior
como no exterior.
No interior havia um corredor com uma
porta envidraçada, colorida, que nos fazia chegar à cozinha onde se fazia o
lume de chão e uma sala. Nesse corredor, do lado direito e esquerdo havia quarto,
sendo um deles o quarto onde o porco era desmanchado e a salgadeira. Lá em
cima, no sobrado, havia mais quartos com janelas. A casa tinha um quintal com
um pequeno palheiro, onde ficavam as galinhas, patos e coelhos. Um limoeiro. Também
ali ficava a lenha que aquecia a casa no Inverno. O avô era pedreiro e acabou
por fazer uma casa de banho numa parte do quintal.
O exterior também foi diferente porque a
amálgama de casas deixou de existir bem como a vivacidade do interior da
aldeia. A rua era larga e as pessoas outras. Mas o hábito da chave na porta, do
lado de fora das casas, o mesmo.
Esta casa, tal como as outras, aviva boas
recordações. Não há vidas direitas nem só coisas boas. Porque esta última
acompanhou a vida dos avós até ao fim, também nos presenteou com recordações mais
tristes.
Daqui guardo memórias dos gatos a entrar e
a sair e do Pardal, o cãozinho preto do meu avô. Como e quando apareceu
não sei mas sei que alegrava toda a gente. Quantas foram as vezes que a
pestinha negra nos foi acordar de manhã? Quantas e quantas vezes nos fez
levantar sem termos vontade? Estas coisas tão simples que os cães domésticos
fazem também podem deixar marcas nas nossas vidas.
Quando havia festa, quase não era
necessário sair pois a música entrava pela casa dentro como se esta fosse o
palco. Quando não havia, a vida da aldeia decorria normalmente e a casa
acordava cedo, mesmo antes do sol nascer. Ouvia, meio estremunhada, o som da
porta a fechar ou mais tarde a abrir. No Verão era a luz que nos acordava, no
Inverno as mantas quentes diziam para ficarmos no aconchego da cama, mesmo que
o barulho das vozes, lá embaixo, na casa,
nos acordasse.
Nesta, como nas outras casas, houve muita
vida, muita conversa, muitas festas de Natal . Houve alegrias e dores. Vida e
morte. Nascimento. Casamento. Arrelias também.
É esta que mantemos. É esta que melhorámos,
apesar dos contratempos e múltiplos aborrecimentos com os empreiteiros e
pedreiros, que disseram mas não fizeram ou, pior, desarranjaram. É esta que nos continuou a
reunir.
É nesta que chorámos a partida primeiro da avó, depois do avô.
Com esta vimos partir o tio João, a tia
Rosária.
Nela sentimos saudade do pai, que também
partiu.
Do lado paterno, fica a casa e tudo o que
nela foi vivenciado e continua a ser. Agora com visitas mais espaçadas, mas com
o mesmo gosto, porque as vidas não
permitem mais.
Da casa ontem e da casa hoje – lá estão as
estórias, contadas, veladas, vividas.
12.
As
festas do padroeiro
Num Verão os aldeões decidiram retomar as
festas em honra do padroeiro da aldeia, S.João Batista. Muito entusiasmo na sua organização. Recordo algumas delas. Quando as
raparigas, primas, bateram à porta e
disseram: “- Vamos fazer os papelinhos para o bazar. anda ajudar.” - eu fui. Nunca tinha enrolado tanto papelote.
À noite, havia os cantores que se vestiam na casa da Maria. E o bailarico ainda
era mais divertido. A música alta, os petiscos, os carros daqueles que vinham à
festa e que ocupavam os dois lados da rua, os foguetes... Era a agitação das festas
da aldeia. Havia cacholeira assada e morcela,
entre outros petiscos, e as pessoas estavam contentes.
As primas vinham muitas vezes buscar -nos
e isso também era divertido.
Nesses dias estava calor e de tarde
ficavamos na penumbra da casa mas ao final do dia tudo recomeçava. A avó
aparecia muitas vezes na saleta para mostrar as rendas e os linhos ou para conversar. A avó tinha mantas trapiças que gostava de nos mostrar e fazia uma
tomatada divinal. Nunca mais comi igual. Nem eu
nem a minha tia Ana que me disse que se lembrava muitas vezes da avó Isabel por
causa da tomatada que ela fazia.
13.
O avô Batista e a avó Isabel
O avô era um bom contador de histórias. Conhecia várias e sabia contá-las. Tão bem, que serão de Inverno não o era sem um conto – o do João Sem Medo ou João Soldado, o meu favorito. Também me ficou “O conto que nunca mais acaba. Se queres que te conte, eu conto, se não queres, não conto. Queres que te conte?”
- “Sim” – dizia.
- “Não digas sim, que este é o continho que nunca mais acaba. Se queres que te conte, eu conto, se não queres, não conto. Queres que te conte?”
- “Ó avô, já dissemos que sim!”
- “ Não digam - Ó avô, já dissemos que sim - que este é o conto que nunca mais acaba. Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
- “Assim não vale!” – resmungávamos.
- “Não digam – assim não vale - que este é o conto que nunca mais acaba. Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
Já aborrecidos dizíamos:
- “Isto já chateia!”
- Não digam – isto já chateia - que este é o conto que nunca mais acaba. Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
- “Não! Já não queremos, pronto. “
- Não digam – Não, já não queremos, pronto - que este é o conto que nunca mais acaba. Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
Escusado será dizer que este conto era irritante e não tinha fim!!
Já o meu pai o contava no caminho para a aldeia e também aos netos, meus filhos.
Mas havia outros, que já não sei precisar. Os serões nunca eram monótonos, fossem eles sem luz elétrica ou, mais tarde, com luz elétrica.
O avô João era pedreiro. Um homem direito e magro, que depois do trabalho tratava da horta e dos animais. Foi sempre um avô bondoso, que cuidou do trabalho, das terras, da casa e da família.
O avô bebia aguardente com uns minicopos que ainda guardamos como preciosidades de outros tempos. Era ele que a fazia e, das reações de quem a bebia, era fogo ardente! Havia também o azeite, das azeitonas que ele e a avó colhiam, quando era o tempo.
Já mais no fim da vida, viúvo, revejo a imagem do homem seco de carnes e cheio de coração.
A avó Isabel era risonha, direita e magra. Não me lembro dela nova. Só me lembro dela já velhota. Admirava as suas saias, saiotes e aventais – por serem muitos e diferentes. Achava admirável que nunca tivesse cortado o seu longo cabelo, enrolado atrás e preso com ganchos largos. E havia os lenços que as mulheres colocavam na cabeça. Variados, também. Nas pernas usava meias até ao joelho ou mesmo até acima, presas com ligas. E o xaile. Imprescindível.
Na verdade, os costumes são mais da Beira do que do Alentejo, até no vestir.
A avó tinha muitas dores. Queixava-se que lhe doía aqui e ali. Ali e aqui. Foi decidido que talvez as termas fossem boas para ela. E num Verão lá fomos, todos os dias, com a avó a banhos. Era uma banheira cheia de água muito quente onde ela ficava durante, já não sei precisar, quanto tempo. Fora do edíficio o espaço era bonito e verdejante. E ela teve menos dores. Também era alérgica como eu e a Primavera não era muito agradável.
Não sei se era boa cozinheira, mas cheira-me aos pratos que fazia – como as sapatinhas, que ainda hoje adoro.
Vê-la no hospital ainda é real. Foi uma grande tristeza quando morreu.
(sapatinhas)
14
A árvore do avô e da avó
(João Batista Nunes)
(António Nunes da Rosa)
O
avô tinha um irmão, cujo apelido era diferente. Pelas fotos são parecidos. O
João e o António. Em comum o nome Nunes, que não é o sobrenome. O porquê, não
sei.
O avô João Batista Nunes e o irmão António
Nunes da Rosa eram filhos de Francisco Dionísio e de Nazaré Nunes, cujos pais
foram o José Mendes Dionísio e Maria Dias – pais do primeiro e Manuel Nunes da
Rosa e Mariana Joaquina Rola – pais da segunda.
O avô João Batista Nunes nasceu em 1907,
no dia 6 de junho e os seus padrinhos foram António Nunes e Maria Nunes. Faleceu com 93 anos de idade. O seu irmão
António Nunes da Rosa nasceu em 31 Agosto de 1892 e faleceu em 1971.
Os irmãos João e António casaram. O António
com a Maria de Jesus Branco e o avô João com a Isabel da Cruz a 4 de setembro
de 1929, tinha ele 21 anos.
Ambos os irmãos tiveram filhos: o António teve dois rapazes – o João Batista
Nunes Branco que nasceu em 1926 e o José Maria Nunes que nasceu em 1922. Os
sobrenomes, no entanto, continuam a baralhar-me.
O avô João teve gémeos: o Francisco da Cruz Nunes e a Rosária da Cruz
Nunes que nasceram no dia 25 de outubro de 1930.
Um
dos filhos do António (irmão do meu avô),
o José Maria, casou com a Isaura, de quem teve uma filha, a Aura Celeste Nunes.
O outro filho de António (irmão do meu avô), o João, tomou-se de amores pela prima, a filha do seu
tio João (meu avô), irmão do seu pai, e ela correspondeu.
O amor entre os dois era grande e nada os
demoveu. Após muita celeuma, o João e a Rosária casaram no dia 6 de setembro de
1950 e viveram felizes até ele morrer em 2007.
Desse casamento nasceram dois filhos a
quem chamo os primos que, por sua vez, também casaram e tiveram cada um
dois filhos.
O outro gémeo, filho do avô João Batista
Nunes, o Francisco, casou com a Rosalina e teve duas filhas. A primeira teve
dois filhos .
Voltando atrás, aos dois irmãos, ao meu
avô João Batista Nunes e seu irmão António Nunes da Rosa, foi-me contado pelo primo mais velho e também
escrito por ele no ORACIUS, que os irmãos eram diferentes na
personalidade. Enquanto o João era o homem da pedra e do martelo e bom contador
de histórias, o António gostava de ler, de números e de improvisar quadras e,
quando a carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian passava na aldeia, era
uma alegria.
Desta árvore da parte do avô, nada mais
sei. Talvez o primo mais novo saiba pois
elabora a árvore da família.
(João Batista Nunes Branco)
(José Maria Nunes)
(Francisco da Cruz Nunes)
(Rosária da Cruz Nunes)
(Aura Celeste Nunes)
A
avó Isabel, que nasceu no dia 27 de julho de 1908, teve como pais Ernesto Dias Delfim Delgado e
Rosária Jorge Mendes (meus bisavós). Talvez
por isso tenha decidido dar à filha o nome de sua mãe: Rosária.
Teve como padrinhos António da Cruz
Granchinho e Isabel de Cruz Granchinha.
Faleceu com 84 anos.
Mais haverá a dizer sobre estas árvores
mas no momento, há pesquisa a fazer. Do que for descoberto, aqui será
acrescentado.
(Isabel da Cruz Nunes)
(Os pais e os filhos gémeos)
15. O
falar
Da primeira vez que levei uma amiga para
passar uns dias na aldeia percebi que a pronúncia típica da região era um
quebra-cabeças para os de fora. Primeiro porque muito cerrada, segundo porque
rica em palavras diferentes do vocabulário habitual. Se para mim era, às vezes,
um desafio tentar descobrir os sinónimos de algumas palavras, para quem vinha
de fora, de Lisboa, por exemplo, era muito mais complicado.
Quando levei a Cris comigo para passar uns
dias na casa dos avós, foi uma alegria, confesso. Para ela foi uma experiência
diferente pois, como lisboeta com costela espanhola, estar ali era como estar
algures num país desconhecido. “Falam como nos Açores” – disse. “Não percebo
nada do que diz a tua avó”- voltou a dizer. “Que dialeto falam aqui?” –
perguntou.
Tenho na memória o susto que apanhou
quando a avó lhe disse que tinha uma grande garra na blusa. Pensando ser um
qualquer bicho estranho da região, a Cris berrou para que rapidamente alguém a
ajudasse. Claro que rimos, incluindo a avó. Parece-me que, agora à distância,
ela talvez tivesse dito aquilo de propósito para brincar.
Do que disse e perguntou, não foi a única,
pois sempre que levava alguém de outros locais, as constatações e dificuldades
eram as mesmas. Por um lado, a avó e as pessoas da aldeia pronunciavam os “u”
como os franceses o fazem, por outro, com as outras vogais do alfabeto
acontecia algo parecido. Com os ditongos também era diferente. Resultado: era
difícil compreender o que diziam: a pronúncia era “muito fechada”. Há estudos de linguístas sobre este assunto e
sobre as razões historico-culturais destas diferenças. A tese de doutoramento
em linguística “Linguagem do sueste da Beira no tempo e no espaço” de Fernando
Jorge Brissos, é disso um exemplo.
Apesar de ter que ser a “tradutora” sempre
que os avós ou outros falavam, isso não impediu que a minha amiga Cris gostasse
das pessoas, das suas vestes, da aldeia e da paisagem campestre. Foi um susto
para nós quando não a encontrámos em casa... Afinal tinha decidido ir até ao campo,
mesmo ali ao lado, relaxar e sentir os cheiros e as cores que lhe eram
oferecidos.
Ficou tão impressionada com esta primeira
experiência que, aquando de um trabalho para uma cadeira de linguística, foi
buscar alguns exemplos do que ouvira na aldeia.
O falar próprio da aldeia é difícil de se
perder e muitos, mesmo mudando de vida e de terra, continuam com o mesmo
sotaque fechado característico da zona.
Maria Luís Koen
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