MEMÓRIAS DA ALDEIA

  
Memórias da Aldeia de Monte Claro

(aguarela de Roque Gameiro)




1. A casa velha

        De noite, em casa, não havia luz, não havia movimento, não se pensavam os olhos, não se sentiam as sombras, mesmo que ligeiras. Era mesmo tudo escuro. Uma escuridão estranha, que nos envolvia e nos deixava quedos, quase em torpor. De vez em quando havia um som de madeira a chiar, um som aumentado pela falta de todos os outros sons. Por vezes também se ouvia a madeira a ser comida e aquilo ficava. Ficava o som a embalar, até que o sono nos levava e a manhã aparecia , não com a luz que sempre se espera, mas com o cantar agudo do galo e o cacarejar das galinhas, ao longe. Era sempre assim ali, na casa velha, provavelmente também nas outras casas da aldeia.
         No sobrado não havia janelas, não podíamos ver as estrelas de noite ou a lua, nem o raiar do sol. Era sempre noite escura no sobrado, mesmo quando dia. Descíamos a escada estreita, de madeira, para o rés- do- chão que era a casa, com o chão em lages largas de pedra cinzenta e a porta de madeira maciça com postigo que deixava entrar a luz. Tinha uma cortina, se não me engano. Não havia janela. A casa, em baixo,  tinha também dois quartos: um primeiro, maior,  onde estávamos e comíamos,  um segundo, onde os avós dormiam. A separá-los, uma cortina.
           Tudo passava por ali, pelas portas sempre abertas ou com a chave, a dizer que se podia entrar, nada havia a esconder. Entrava-se e saía-se para os campos. Havia que ir buscar água, com os potes. Havia os animais para tratar, as terras para cavar, a fruta para colher. Parecia tudo simples, então. Sem muitas complicações ou agitação.
           Da casa, rude e de pedra, descia uma rua também em pedra, ladeada de outras casas cujos habitantes pouco lembro. Descíamos para ir comprar rebuçados ao café do lado esquerdo da rua, na casa que era da minha tia. Entrava-se e estava sempre escuro, havia homens a bebericar e a falar. À saída, e na volta para casa, lembro as flores plantadas, muito doces, vermelhas, dos lados das casas,  que chupávamos, e o poial da casa acima, do António e da Maria, que servia de cadeira para conversas cantadas naquela pronúncia, mais à tardinha, no Verão.  À noite ficava-se em casa. Não havia eletricidade e as conversas faziam-se à luz dos candeeiros a petróleo.
          A rua, cujo nome não sei precisar,  descia até ao fim da aldeia, fazendo um ligeiro S, parecendo grande mas, agora, vejo que não. Logo a seguir ao S, havia um largo, pequeno, com um  poço por baixo da  casa da minha tia. O poço tinha um banco. Se ali nos sentássemos, podíamos ver o fim da rua, em frente e à direita, outra, que iria dar à principal, direta à vila. Víamos as portas das casas dos outros, entreabertas, muitas,  e sons que vinham lá de dentro. Pessoas que já não lembro, exceto a Miguela do lado esquerdo e a  Luz, lá mais à frente.
          Se subisse a rua da casa velha, tinha três possibilidades:  dois degraus e lá estava a mercearia, com a balança antiga e o cheiro característico das mercearias de aldeia, o marido ou a mulher de óculos, sempre simpáticos a aviar. Se virasse à esquerda, comprava o pão acabadinho de fazer no forno da aldeia. Ia com a avó e ela nunca trazia só um pão, mas sim cinco ou seis, num bornal de pano, que ficavam guardados algures na casa velha e que davam para muitos dias. Não me lembro de alguma vez ter comido pão duro, ali. Seguindo nessa direção, também podia continuar e sair da aldeia, rumo à vila ou pelo lado oposto, em direção aos campos. Disse que havia três possibilidades. A terceira,  seria virar à direita, se pensar na mercearia como o centro,  quando subia,  vinda da casa velha. Por aí ia muitas vezes com a avó ou o avô, dar alimento aos porcos e em direcão à horta. Outras vezes, quando eles estavam, com os primos.


    





(nós os quatro a caminho)






2. A horta




     Deixando a aldeia para trás, caminhava-se um bom bocado, mas havia sempre o contentamento de ver os bichos na pocilga, esfomeados, a grunhir. Geralmente eram dois. Espreitar lá para dentro era sempre uma aventura. Abria-se o portão de madeira e, ao longe, a pocilga em pedra escura, com dois degraus feitos, também, de pedra mal amanhada. Recordo a alegria de ver os porcos e a tristeza de os ver morrer, mais tarde, aquando da matança.
      No caminho de pedra e pó, até à horta, muitas flores silvestres, muitas “chagas de cristo”, muitos muros de pedra e muitos sons que só ouvimos no campo. Esta era uma terceira paragem porque, muitas vezes, a primeira estava perto da saída da aldeia. Aí, havia um poço e uma nora. Levava-se água  aos animais. Aí, também havia uma espécie de latrina pública. Um nojo, é verdade. Não havia saneamento público e passo à frente este assunto.
     Nessas caminhadas do terreno dos porcos até à horta, havia sempre correria, gritaria, berros com eco e era bom. Muito bom. Aberto o portão da horta, tudo dependia da época...  – mas ...   muitas vezes favas! Favas, muitas favas. O terreno era ligeiramente inclinado e ladeado de oliveiras. Recordo o mar de favas, não sei porquê.  Ao cimo, o palheiro e mais oliveiras, figueiras, ameixas amarelas e escuras, tão doces, tão boas, pêros amarelos.  Muita hortaliça. Na altura da apanha da azeitona, lá íamos, não varejar mas apanhar, sim. Algumas, pelo menos, que éramos primeiro crianças, depois jovens.
     Havia um poço e um tanque, do outro lado do terreno, uma nora, um pequeno riacho que vinha de outra horta acima, com água fresca e transparente e muita coisa para fazer e comer.
     O avô ou a avó cavavam ou colhiam ou semeavam e nós...muita brincadeira com os primos, quando eles estavam.
     Muitos cheiros, intensos, claros.
     No palheiro estava um burro preto. Uma ou duas vezes lá me sentei, em cima do burro, pouco à vontade. Noutras alturas, havia tiro aos pássaros, mas a pontaria era pouca, que me lembre.  Tardes ou manhãs bem passadas, de muita acalmia.
     Recordo com muita saudade essas alturas, essas caminhadas, a ida para a horta com a paragem nos porcos, e a volta com muitas amoras pretas e ar puro  no caminho.
     Os cheiros.


     Enchiam-nos a alma e não sabíamos. 





(pai na figueira)

 (O burro... o pai e a mana)


 (passarinhos)




(na tapada)



("chagas de cristo")










3. A casa da tia




Um dia já não ficámos no sobrado escuro, nem na casa com lajes cinzentas de pedra. Ficámos mais abaixo, na casa da tia.
           A casa era grande, com dois pisos e duas portas de entrada: uma na rua da casa velha, outra na rua paralela. Ambas davam para o largo do poço por baixo da casa.
        Quando entrava pela porta da rua da casa velha, havia uma sala, grande, com janela. À esquerda dessa sala um outro quarto, onde era antes o café. À direita, uma porta que dava para a varanda. Em frente da sala, um corredor, que nos levava à cozinha grande, de aldeia, com a lareira e o sítio certo para os potes com pedrinhas brancas, cheios de água que se fora buscar ao campo, onde a água era pura. A cantareira tinha três ou quatro potes, alguns pedrados, cheios de água fresca, que se bebia com um púcaro. Os potes eram sempre muito bem esfregados e lavados antes de serem novamente cheios com água. Para além dos potes, havia os pratos, alinhados e sempre à mão.
         Da cozinha podíamos ir para a varanda larga e alta, que dava para o largo. Aí havia alguns vasos com plantas e muito espaço. Também podíamos subir as escadas de madeira e ter acesso ao andar de cima, com quartos – o sobrado, mas com janelas. Ou podíamos sair para a rua, paralela à da casa velha. Bastava descer dois degraus e lá estava a Micaela, que é de quem me lembro mais. Subindo essa rua íamos para a horta. Das pessoas que aí moravam, não tenho memória.
           Não havia eletricidade. 
        Depois do jantar, no Inverno ou no Outono, sentados nas pequenas cadeiras de vime, ao lume de chão, havia conversas e contos. Contos que o avô gostava de contar. Aqui, na casa da tia, lá na casa velha ou ainda na outra, para onde, mais tarde, passámos a estar. Em todas havia a lareira, o lume de chão e os contos. O avô gostava de contar e nós de ouvir. O conto do João Soldado que meteu o diabo num saco,  era o meu favorito. Conto demorado mas que enfeitiçava quem ouvia...

     “Era uma vez um soldado, chamado João,  que foi servir a pátria. Ao fim de vinte e quatro anos ganhou quatro vinténs e um pão... "








4.   O conto do João Soldado ou João sem Medo


Sentados à lareira, todos ouvíamos o conto, contado pelo avô:

Era uma vez um soldado, chamado João,  que foi servir a pátria.
     Ao fim de vinte e quatro anos ganhou quatro vinténs e um pão.
     Um dia, no caminho,  encontrou o Senhor e S. Pedro disfarçados de mendigos,  que lhe pediram uma esmola. Ele não os reconheceu e disse:
-“ Andei vinte e quatro anos a servir o rei e a paga que tive foi um pão e quatro vinténs e ainda me pedem esmola?”
     Mas,  apesar do pouco que tinha, acabou por dividir o pão em  partes e cada um ficou com o seu bocado. E foram à sua vida.
     Ia o João Soldado novamente no caminho, quando encontrou os pobres outra vez. Disfarçados,  pediram esmola e ele deu mais um bocado do que tinha. Foram  embora e  voltaram a encontrar-se.  O João Soldado, que quase nada tinha, deu-lhes mais dois  vinténs e ficou sem nada. Então S. Pedro disse ao Senhor:
         – “Lembrai- vos do pobre soldado que repartiu connosco tudo o que tinha.” E Nosso Senhor disse a S. Pedro que perguntasse ao soldado o que ele queria. João pensou um bocado no que havia de pedir e depois, apresentando a Nosso Senhor o saco que levava, disse:
– “Peço para que este bornal tenha o condão de entrar para dentro dele o que eu quiser.”
     E Nosso Senhor concedeu o que João Soldado pediu.
- “Sempre que quiseres algo, só tens que dizer- venha aqui para o meu bornal.” E foram embora.
     O João Soldado, contente mas não muito convencido,  decidiu experimentar. Estava com fome, passou perto de uma mercearia e disse:
- “Pães, chouriços e água pé, venham já pró meu bornal”. Para espanto seu, uma fileira de pães, chouriço e água pé entraram para dentro do bornal. A partir daí, sempre que queria alguma coisa dizia :
-“...venha aqui para o meu bornal” e o pão, a carne, tudo o que queria, saltavam para dentro do bornal. 
     Era quase noite e o soldado estava cansado de andar todo o dia.  Foi à procura de uma pousada, mas só lhe ofereceram uma casa que estava desabitada há muito tempo, e para onde ninguém queria ir, porque lá aparecia de noite uma alma do outro mundo. Dizia-se que era a alma do dono que lá tinha morrido, um grande avarento que morrera a uma sexta feira. O soldado João gostou daquela história de almas do outro mundo.    Viu a grande casa e decidiu entrar. Se houvesse algum problema, ele tinha o seu bornal!
– “Sou um soldado que servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs e não tenho medo de nada. Sempre quero vêr essa alma do outro mundo...”
     Entrou, havia uma salgadeira com boa carne, presuntos no fumeiro e bom vinho. Acendeu o lume de chão e pôs-se à lareira pronto a assar a carne. Estava esfomeado. De repente ouviu uma voz grave e forte vinda do alto da chaminé da lareira:
- “Olha que eu caio !...”
     Ele, sem medo, bebeu um copinho de vinho.
- “Olha que eu caio!”- disse a voz outra vez. 
- “Olha que eu caio!!”- gritou.
- “ Cai para aí à vontade . Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- disse o João Soldado.
     - “Então, lá vai a minha cabeça.”.
     E cai a cabeça do homem.
- “Olha que eu caio!”
- “ Cai para aí à vontade, 
que eu apanhar-te não vou, 
para que hei-de eu levantar-me, 
se tão bem sentado estou!. 
Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- repetiu o João Soldado. E cai o braço do homem. E a seguir o outro.
     João Soldado ia bebendo sem medo.
- “Olha que eu caio!”
- “ Cai para aí à vontade, 
que eu apanhar-te não vou, 
para que hei-de eu levantar-me, 
se tão bem sentado estou.!”
     E cairam o tronco e as pernas.
     Finalmente, depois de estar o homem inteiro caído no chão, o João Soldado disse:
- “E agora?”
- “ Une-me a cabeça ao tronco!”.
     E ele assim fez.
- “Une-me os braços ao tronco”
     E ele assim fez.
-“Une-me as pernas ao tronco”.
     E ele assim fez.
     O homem ficou completo.
- “ E agora?”
- “Agora ajuda-me a levantar”. 
     E ele assim fez.
- “És valente!”
- “Servi o rei durante vinte e quatro anos e recebi em troca um pão e quatro vinténs!”, disse João Soldado muito senhor de si.
- “Se és pobre, podes ficar rico se fizeres o que eu disser”.
- “O que tenho que fazer?”- perguntou.
- “Anda comigo.”
 E a alma do outro mundo, seguida do soldado, encaminhou-se para uma casa subterrânea, que havia por baixo da cozinha. Levantou uma grande pedra que tapava uma cova e mostrou ao João soldado três grandes potes cheios de dinheiro.
– “Vês todo este dinheiro?”-  disse a alma do outro mundo.
– “Vejo sim”.
– “Pois parte deste dinheiro será para ti se cumprires as minhas ordens”.
– “Vamos a isso”, respondeu o soldado.
– “Então reparte este dinheiro em três partes. Uma é para dar de esmolas aos pobres; outra é para mandares dizer missas pela minha alma; e a terceira parte é para ti se cumprires à risca a minha vontade.”
– “Está bem”, disse o soldado. “Eu que servi o rei durante vinte e quatro anos, por um pão e quatro vinténs, melhor cumpro as tuas ordens, com tão bom pagamento”.
E o João Soldado foi logo tratar de dar as esmolas aos pobres e de mandar dizer as missas pela alma do avarento. Com o dinheiro que restou, comprou uma boa casa e teve uma boa vida, cheia de vinho e comida.
     O Diabo, porém, jurou vingar-se do soldado João, por ele lhe ter tirado a alma do avarento, que afinal se salvou com as esmolas e as missas. Mandou logo ter com o João um diabinho dos mais espertos que tinha no Inferno, e ao qual prometeu mundos e fundos, se lhe trouxesse o João Soldado para o Inferno.
     Estava  o João sentado à sombra de uma árvore, na sua quinta, quando lhe apareceu um homemzinho muito cumprimentadeiro :
– “Como passou o sr. João?”
– “Ainda agora me vês e já sabes o meu nome?!”, respondeu o soldado meio desconfiado com aquele homemzinho esquisito e feio.
– “Tens má cara para santo”, continuou o soldado,” mas se queres uma pinga anda cá beber”.
     O diabinho , muito esperto, respondeu que não queria beber e convidou o João para que o acompanhasse.
– “Mas para onde me queres tu levar? Olha que eu servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs, e não tenho medo de ti. Se é para o inferno que me queres levar, deixa que vá arranjar provisões para a viagem. Olha, essa figueira tem bons frutos, come enquanto eu vou buscar o que preciso.”
     E o diabinho, cada vez mais contente, saltou para a figueira a saborear os figos grandes.
     Quando o soldado voltou, trazia consigo o bornal e logo disse:
- “Salta já para o meu bornal!”
     O diabinho bem lhe prometeu mundos e fundos mas teve que entrar no bornal. Levou uma valente sova e foi queixar-se e chorar, com o rabo entre as pernas, para o Inferno, berrando  que metia dó.
     O Diabo esperava-o indignado por não ter cumprido a tarefa, e vociferou infernalmente contra o diabinho, por se ter deixado apanhar como um parvo, pelo soldado que assim zombava do seu poder.
– “Quem vai agora buscá-lo sou eu”, disse, muito soberbo o Diabo para o diabinho, que estava todo encolhido a um canto do inferno, muito dorido e chorando.
     Estava o João a jantar, muito satisfeito, quando bateram à porta  com força tal que tudo estremeceu.
– “Há-de ser o Diabo”, disse o soldado. “Já cá o esperava depois da sova que dei ao outro”.
     E assim foi.
     O Diabo entrou de rompante. Os olhos faiscavam raios de lume e cheio de raiva disse:
– “Vais pagar tudo o que fizeste ao meu enviado!”
– “Se vens para cá com essas palavras, vais pelo mesmo caminho do teu diabinho”, disse o soldado, pondo o bornal a jeito.
– “Isso é que vamos vêr. Desta vez levo-te para as profundezas do meu reino, como o mais refinado patife cá deste mundo.”
– “Olha eu não tenho medo, meu grande Diabo. Servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs!”
     O Diabo, cada vez mais furioso,  ia a deitar as suas garras ao soldado, quando este, dando um pulo para traz, abriu o bornal em frente ao Diabo, e gritou:
– “Já para dentro do bornal!”
     Ouviu se um grande rugido, que o Diabo soltou de dentro do bornal e debatendo-se furiosamente dava pulos até ao teto, enquanto  o soldado armado com um pau dava pauladas ao Diabo até o deixar quase morto, e a pedir humildemente por todos os diabos que o deixasse ir para o Inferno.
– “Ah! Já pedes misericórdia! Pois vai para o Inferno!” e o João abriu o bornal de onde saiu o Diabo todo partido, de cauda escorrida, mal se podendo arrastar.
     Quando o Diabo chegou ao Inferno ia em tal estado que os diabinhos ficaram aterrados e todos se uniram cheios de medo à espera das ordens do Diabo. Ele então ordenou que forjassem grossas trancas de ferro e fabricassem grandes ferrolhos para trancar as portas do Inferno, com medo que o João soldado lá entrasse.
     Entretanto o João soldado viveu a sua vida de excessos e morreu. Foi parar ao Inferno. Os diabos assim que o viram começaram a gritar:
- “Fechem tudo, fechem as portas e os postigos ou seremos todos batidos!”Assim fizeram e o soldado não pôde entrar no Inferno. 
     Foi então bater às portas do Céu. S. Pedro assim que o viu disse:
- “Vens enganado. Não entras aqui. Não te lembras da má vida que levaste?”
– “ Sr. Porteiro, então um soldado que serviu o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs, não pode entrar no Céu?”
     S. Pedro teimou e o João soldado, sem respeitar as barbas brancas de S. Pedro ameaçou metê-lo dentro do bornal.
– “Olha que foi a meu pedido que o Senhor te deu esse bornal e tu não te deves servir dele contra mim.”
– “Para as ocasiões é que ele serve”, disse o soldado, “e agora é uma boa ocasião. Ou me deixas entrar, ou vais para dentro do bornal!”.
     E, como S. Pedro ía  fechar o postigo, sem lhe dar tempo para mais discussões, o soldado gritou:
– “Já para dentro do bornal!”
     S. Pedro  viu-se preso dentro do bornal e o João  soldado dentro do céu.
– “Tira-me daqui” - gritava S.Pedro. “Olha que entra toda a gente!”
     Assim entrou no Céu o João Soldado que serviu o rei durante  vinte quatro anos por um pão e quatro vinténs.








5. Os bilros


(A mana. o primo e eu na varanda da casa da tia)










Enquanto conversávamos na varanda, sobre o próximo jogo do monopólio com os primos, sobe uma mulher os degraus e entra para mostrar as meias feitas em renda com quatro agulhas e o naperon feito em renda de bilros. 
     A avó vai à salinha buscar a cesta dos trabalhos e mostra o par de meias em renda até ao joelho, o seu último trabalho,  para usar em dia de festa. A tia vai lá dentro buscar a cesta onde se encontra o que está a fazer em renda. 
    A curiosidade é muita, os bilros pauzinhos encantados a que se juntam alfinetes e gestos doidos, para quem não entende nada da técnica. Ela explica, sim, mas não é fácil, a técnica. Ela explica com a sua voz cantada e mostra como faz, muito lentamente para se fazer entender. A almofada ou rebolo onde é colocado o desenho num cartão e onde ela vai colocando os alfinetes à medida que o trabalho avança. Não há agulha mas sim bilros em madeira, onde enrola os fios dos diferentes materiais, que podiam ser algodão, seda,linha...     
    A tia fazia a renda com os bilros aos pares. Parecia uma dança complicada de pauzinhos, muitos, pelo menos para mim. O barulhinho era engraçado e tudo aquilo parecia magia. Quantos eram os bilros? Não sei. Eram muitos, dependendo do trabalho a ser feito. Depois trocava este por aquele, ia buscar outro e mais outro, aqui e ali, em voltas e mais voltas de pauzinhos até o desenho ir surgindo, belo e minucioso. Uma maravilha. 
     Hoje tenho pena de não ter aprendido.










 6.  A água fresca










           

     Quando era poucaa  água para beber dentro dos potes, havia que ir buscar mais pois na aldeia não existia água canalizada.
     O sítio era escolhido a preceito, uma nascente, pois a água não era para lavar e sim para beber.
     Preparavam-se os potes, as rodilhas e a disposição para caminhar. Eram várias, as mulheres da aldeia, que se juntavam com o mesmo objetivo: a água. Saias rodadas por baixo do joelho, meias até ao joelho, avental , blusas floridas a tapar o decote, lenços na cabeça, cabelo grande enrolado. 
    Na ida para lá, os potes iam à cabeça, deitados; à vinda para cá, iam em pé cheios de água. Gostava sempre de ir porque o divertimento era muito. Muitas vezes ia eu, a minha irmã, os primos ou outros miúdos. Apanhávamos flores do campo, bebíamos da natureza e era tudo puro e belo. Também levávamos um pequeno pote e uma rodilha mas o resultado não era o mesmo.
     Ficava sempre admirada porque os caminhos eram de terra batida e as mulheres nunca deixavam cair os potes. Direitas e elegantes, com os seus lenços que lhe cobriam os cabelos, que não cortavam, elas lá iam na conversa, alheias à admiração que causavam.
     Colocados novamente no local devido, eram muito usados e acarinhados, pois tinham água pura sempre fresquinha. 



(fomos buscar água)







7. O quebranto




     Foram muitas as vezes que a avó Isabel nos tirou o quebranto.
    Bastava estarmos mal dispostas, termos dor de cabeça ou chegadas a casa vindo de outros lugares, cansadas, que ela, desconfiada ou preocupada, ia à cozinha, trazia um prato cheio de água, onde deitava umas gotinhas de azeite. Umas vezes havia reza e repetia o deitar das gotinhas do azeite na água, outras vezes ficava-se por ali. No início não percebia a diferença, era mais pequena. Depois comecei a colocar questões sobre o “quando é que havia reza e porquê”.
     Não só a avó Isabel mas também a tia Rosária, sua filha, sabiam e faziam este ritual. Da reza não davam conhecimento porque, se o fizessem, perdiam de alguma maneira o poder de tirar o quebranto. Por isso,  o ritual passava entre as mulheres da família -  a reza.
     Deitavam cinco pingas de azeite num prato com água. Se o azeite se espalhasse, a pessoa tinha quebranto e a reza era repetida até isso não mais acontecer. Se se juntasse numa só bolha, estava tudo bem.


“Deus te viu
Deus te criou
Deus te livre
De quem para ti mal olhou
Em nome do Pai, do Filho,
E do Espírito Santo,
Virgem do pranto
Tirai este quebranto”.







8.       A matança




(cachola)



(fumeiro)


     Na aldeia quase todos os habitantes tinham horta e animais: galinhas, patos, coelhos, cabras, ovelhas, vacas e porcos. O meu avô tinha galinhas, coelhos, patos, cabras e porcos.  Depois da engorda, vinha a época das matanças. Geralmente era em janeiro ou fevereiro.  Às vezes no Natal. Estava frio. Vinham os filhos, os netos e os vizinhos também.
    A primeira recordação que tenho, é dorida. Ir para um grande espaço e ouvir guinchos alucinantes de um animal em sofrimento, foi algo que nunca esqueci. Era pequena na altura. Mãos nos ouvidos para tapar o som que não queria ouvir. O porco preso, os homens, vários, a segurá-lo, o grito lancinante do animal e o meu, para não ouvir o dele.
     Mas, já maior e noutro espaço – no quintal da casa da tia e depois na casa do boqueirão -  os guinchos foram iguais e a recordação dorida, mantém-se.  
     Preparado o local onde o animal ia ser colocado, também tinha que haver homens em número suficiente, cordas para o segurar e pendurar, faca para o matar, carqueja para o chamuscar e lenha para o cozinhar. As mulheres também preparavam a matança: a avó e a tia buscavam alguidares de barro que iriam receber as carnes que por elas iriam ser temperadas bem como os alguidares que receberiam as tripas do porco e o sangue ainda quente.
     O avô e outros homens iam buscar o porco à pocilga, que traziam para o local onde iria ser morto. Era atado, vários homens o seguravam- o avô, os primos já homens, o tio, o pai, às vezes mais um ou dois e, era depois morto com uma grande faca espetada no coração.  A imagem dos guinchos e do espernear do porco mantém-se viva.  A faca espetada no coração, o alguidar em baixo a receber o sangue quente, que a tia ou a avó mexiam continuamente. Com ele fazia-se a sopa de cachola comida ao almoço e posteriormente as morcelas.
     O porco  era  então  chamuscado com carqueja a arder. Ainda sinto o cheiro a queimado nas narinas. Depois de chamuscado era raspado com uma faca e lavado.
    Eram sempre dias de grande agitação e festa familiar.
    Para o matar havia vários homens, embora apenas um o fizesse, para o levantar e pendurar no quarto da desmancha, outros tantos.
     Esse quarto tinha um grande gancho preso ao teto. Era aí que o porco era pendurado, já chamuscado, raspado e lavado. Ali ficava a escorrer. O avô, então,  abria o porco de alto a baixo para tirar as tripas e o estômago para um lado e os rins, o fígado, os pulmões e o coração para outro alguidar.
     Havia, ainda, muito a fazer. Limpar o espaço onde o animal tinha sido morto, preparar o almoço. O lume de chão já tinha brasas, pronto para se assarem umas febrinhas só com sal ou o rabo do porco. As primeiras. Preparavam-se as laranjas que acompanhavam a sopa de cachola. Havia queijo que cheirava mal e vinho feito pelo avô. Pão caseiro . Febras e carne de porco assada na brasa. Do resto do almoço, não lembro.
     A matança não acontecia só num dia. Um dia não chegava para tanta azáfama.
     As mulheres tinham a incumbência das tripas do porco. Estas eram muito bem  lavadas e esfregadas pela avó, mãe, tia e outras mulheres numa ribeira com água corrente. Não falo do cheiro. Também não gostava dessa parte. Era um trabalho meticuloso pois se assim não fosse, tudo o que se seguiria ficava estragado. Ficavam guardadas, com sal e não sei se mais alguma coisa, até serem utilizadas. O intestino grosso para umas carnes e o delgado para outros. No porco tudo se aproveitava.
     Só o avô desmanchava o porco. Tenho a imagem bem presente do porco pendurado  e mais tarde, não sei se já no chão, ele a escolher e cortar: os presuntos, orelha, pedaços para isto e para aquilo, cada pedaço no seu alguidar, o toucinho. Daí viriam as morcelas, os paios, as cacholeiras, o bucho, farinheiras, linguiças.  No entretanto, havia sempre umas febrinhas para assar no lume de chão.
     Desmanchado o porco – tudo se aproveitava – voltava o trabalho das mulheres. A avó, a tia e outras mulheres da aldeia cortavam as carnes em pequenos pedaços e  temperavam. Este trabalho era feito com a porta fechada. Sentadas nas pequenas cadeira de palha, migavam, temperavam, mexiam, preparavam. E se alguma mulher, que não elas, entrasse no quarto das carnes, olhavam diretamente nos olhos das pessoas, a saber se estavam com sangue ou não, para não estragar a carne.
    Preparada a carne, deixada a tomar sabor por não sei quantos dias, havia outros preceitos a fazer: escolher o que por na salgadeira, preparar o fumeiro da chaminé.
     Depois havia que encher as tripas lavadas e preparadas. Era trabalho das mulheres, outra vez. Parece que as estou a ver. E a ver-me. E à minha irmã. E à minha mãe. À avó e à tia. Ao pé da grande chaminé. Os alguidares com as carnes, o cheiro a cominhos, as tripas, os funis para poder encher as tripas, o cordel para as atar. O dedo polegar a trabalhar ou um pauzinho. Eram depois fervidas em água, as morcelas naquele dia as outras carnes noutro, que depois se colocavam nas varas do fumeiro: os presuntos, as cacholeiras, as morcelas de sangue, os paios... e ali ficavam até estarem prontos a comer.
       Lembro as conversas e os cheiros.








9. O Monopólio



     No Verão, com os dias quentes, muitas noites se passavam na rua, os mais velhos sentados nas cadeirinhas de palha. Havia cadeiras para todos os tamanhos.  Durante o dia, a casa da tia era fresca e, quando os primos estavam, havia jogos de monopólio. A sala, quando se entrava pela porta da rua da casa velha, tinha uma mesa quadrada grande, onde podíamos jogar à vontade, com muitos risos e protestos que este jogo proporcionava e  ainda proporciona. Quando assim acontecia, o jogo durava a tarde toda. Essa e outras mais, pois nunca parecíamos cansados de o jogar. Não havendo jogo, havia o descanso da tarde, não a dormir mas a ler muitos livros do pato Donald e do tio Patinhas, entre outros. Apesar de não haver televisão, não me lembro de ficar aborrecida.
     Havendo sede, tinhamos a água fresquinha nos potes da cantareira; havendo fome, o pão caseiro, o queijo fresco feito pela avó Isabel ou o outro, bem mal cheiroso, que ela guardava dentro de uma folha de couve. Às vezes também havia almece, a que a avó dava outro nome. Ordenhadas as cabras, o leite era utilizado para fazer o queijo e o almece.  Como não gosto de queijo, certamente o meu lanche era outro. Já dos bolinhos de azeite feitos pela tia Rosária, não posso dizer o mesmo. Ainda hoje, que ela já faleceu, tenho saudade de os comer. Nunca comia só um.

     Inquiridos os primos sobre os bolinhos que eles tão bem se lembram de comer, continuo sem a receita. Procuradas outras, parece-me sempre que não serão como os dela. 


(bolinhos de azeite)

(pão caseiro)






10
Os doces



(cavacas)
(tigelada)



     O bolo de azeite e os bolinhos de azeite:  parecem iguais mas são diferentes.
     Ao bolo de azeite associo a avó Isabel, aos bolinhos de azeite associo a tia Rosária.
     O primeiro, não tinha doce e era grande – penso que feito sem açúcar, tinha como ingredientes principais pão, azeite e farinha; os segundos eram pequenos, doces e bem mais saborosos.
     O primeiro não fazia grande questão em comer, já quanto aos segundos... tudo era bom: a massa ainda crua, quentinhos a sair do forno ou frios, eram simplesmente maravilhosos!! E a receita, onde está? Não sei. A avó morreu, a tia morreu, a mãe não sabe, os primos só se recordam de os comer...
     Se pensar nas filhós, eram também diferentes daquelas a que estava habituada. A minha avó materna fazia as filhós típicas da zona onde morávamos na altura do Carnaval e a minha avó paterna, avó Isabel, fazia as filhós na época do Natal e eram bem diferentes, pois eram também feitas com azeite, farinha, ovos e aguardente. Revejo-a a amassar e a tender a massa, a colocar a massa no azeite a ferver, a virar cada filhó assim que estivesse bem dourada. O cheiro a fritos, o açúcar...
     A tigelada era outro doce que a avó Isabel gostava de preparar.  Era feita numa tigela de barro e levava ovos, farinha, açúcar e canela. Vejo-a, muito direita, com as suas saias rodadas, várias,  e avental, com o cabelo apanhado. As mulheres não cortavam o cabelo. Às vezes, na casa do boqueirão, a avó sentava-se à lareira e soltava os cabelos que iam até à cintura. Nunca o cortara. Penteava-o com um gancho grande e era depois enrolado e preso à cabeça. Na rua,  as mulheres tapavam o cabelo com um lenço e não havia decotes. Já mais velhas vestiam muito de preto porque toda a gente era parente e havia sempre alguém a morrer. Feita a tigelada era só comer e chorar por mais. 
     As cavacas eram mais elaboradas. Havia mais trabalho a fazer. Geralmente, no sobrado, juntava-se a tia, a avó e lembro outra mulher para preparar a massa, o “branquinho” das cavacas e depois as terminar. Era bom comer a cobertura branca e era também bom comer tudo quando ficavam prontas. Ficavam em cestas de verga, cabazes ou tabuleiros, dentro de um panos brancos de linho.


 (bolo de azeite)
 (filhós)
(bolinhos de azeite)






11.A casa do boqueirão

(Monet)



     Quando os avós mudaram para a casa no boqueirão, foi outra novidade, pois o espaço era diferente, tanto no interior como no exterior.
     No interior havia um corredor com uma porta envidraçada, colorida, que nos fazia chegar à cozinha onde se fazia o lume de chão e uma sala. Nesse corredor, do lado direito e esquerdo havia quarto, sendo um deles o quarto onde o porco era desmanchado e a salgadeira. Lá em cima, no sobrado, havia mais quartos com janelas. A casa tinha um quintal com um pequeno palheiro, onde ficavam as galinhas, patos e coelhos. Um limoeiro. Também ali ficava a lenha que aquecia a casa no Inverno. O avô era pedreiro e acabou por fazer uma casa de banho numa parte do quintal.
     O exterior também foi diferente porque a amálgama de casas deixou de existir bem como a vivacidade do interior da aldeia. A rua era larga e as pessoas outras. Mas o hábito da chave na porta, do lado de fora das casas, o mesmo.
     Esta casa, tal como as outras, aviva boas recordações. Não há vidas direitas nem só coisas boas. Porque esta última acompanhou a vida dos avós até ao fim, também nos presenteou com recordações mais tristes.
     Daqui guardo memórias dos gatos a entrar e a sair e do Pardal, o cãozinho preto do meu avô. Como e quando apareceu não sei mas sei que alegrava toda a gente. Quantas foram as vezes que a pestinha negra nos foi acordar de manhã? Quantas e quantas vezes nos fez levantar sem termos vontade? Estas coisas tão simples que os cães domésticos fazem também podem deixar marcas nas nossas vidas.
     Quando havia festa, quase não era necessário sair pois a música entrava pela casa dentro como se esta fosse o palco. Quando não havia, a vida da aldeia decorria normalmente e a casa acordava cedo, mesmo antes do sol nascer. Ouvia, meio estremunhada, o som da porta a fechar ou mais tarde a abrir. No Verão era a luz que nos acordava, no Inverno as mantas quentes diziam para ficarmos no aconchego da cama, mesmo que o barulho das vozes, lá embaixo,  na casa,  nos acordasse.
      Nesta, como nas outras casas, houve muita vida, muita conversa, muitas festas de Natal . Houve alegrias e dores. Vida e morte. Nascimento. Casamento. Arrelias também.
     É esta que mantemos. É esta que melhorámos, apesar dos contratempos e múltiplos aborrecimentos com os empreiteiros e pedreiros, que disseram mas não fizeram ou, pior,  desarranjaram. É esta que nos continuou a reunir.
     É nesta que chorámos a partida  primeiro da avó, depois do avô.
     Com esta vimos partir o tio João, a tia Rosária.
     Nela sentimos saudade do pai, que também partiu.
     Do lado paterno, fica a casa e tudo o que nela foi vivenciado e continua a ser. Agora com visitas mais espaçadas, mas com o mesmo gosto,  porque as vidas não permitem mais.
     Da casa ontem e da casa hoje – lá estão as estórias, contadas, veladas, vividas.





12.
As festas do padroeiro








     Num Verão os aldeões decidiram retomar as festas em honra do padroeiro da aldeia, S.João Batista. Muito entusiasmo na sua organização. Recordo algumas delas. Quando as raparigas,  primas, bateram à porta e disseram: “- Vamos fazer os papelinhos para o bazar. anda ajudar.”  - eu fui. Nunca tinha enrolado tanto papelote. À noite, havia os cantores que se vestiam na casa da Maria. E o bailarico ainda era mais divertido. A música alta, os petiscos, os carros daqueles que vinham à festa e que ocupavam os dois lados da rua, os foguetes... Era a agitação das festas da aldeia. Havia cacholeira assada e morcela, entre outros petiscos, e as pessoas estavam contentes.
     As primas vinham muitas vezes buscar -nos e isso também era divertido.
     Nesses dias estava calor e de tarde ficavamos na penumbra da casa mas ao final do dia tudo recomeçava. A avó aparecia muitas vezes na saleta para mostrar as rendas e os linhos  ou para conversar. A avó tinha mantas trapiças que gostava de nos mostrar e fazia uma tomatada divinal. Nunca mais comi igual. Nem eu nem a minha tia Ana que me disse que se lembrava muitas vezes da avó Isabel por causa da tomatada que ela fazia.








13.
O avô Batista e a avó Isabel




O avô era um bom contador de histórias. Conhecia várias e sabia contá-las. Tão bem, que serão de Inverno não o era sem um conto – o do João Sem Medo ou João Soldado, o meu favorito. Também me ficou “O conto que nunca mais  acaba. Se queres que te conte, eu conto, se não queres, não conto. Queres que te conte?”
- “Sim” – dizia.
- “Não digas sim, que este é o continho que nunca mais  acaba.  Se queres que te conte, eu conto, se não queres, não conto. Queres que te conte?”
- “Ó avô, já dissemos que sim!”

- “Assim não vale!” – resmungávamos.
- “Não digam – assim não vale - que este é o conto que nunca mais  acaba.  Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
 Já aborrecidos dizíamos:
- “Isto já chateia!”
- Não digam – isto já chateia - que este é o conto que nunca mais  acaba.  Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
- “Não! Já não queremos, pronto. “
- Não digam – Não, já não queremos, pronto - que este é o conto que nunca mais acaba.  Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
     Escusado será dizer que este conto era irritante e não tinha fim!!
     Já o meu pai o contava no caminho para a aldeia e também aos netos, meus filhos.
     Mas havia outros, que já não sei precisar. Os serões nunca eram monótonos, fossem eles sem luz elétrica ou, mais tarde,  com luz elétrica.
     O avô João era pedreiro. Um homem direito e magro, que depois do trabalho tratava da horta e dos animais. Foi sempre um avô bondoso, que cuidou do trabalho, das terras, da casa e da família.
     O avô bebia aguardente com uns minicopos que ainda guardamos como preciosidades de outros tempos. Era ele que a fazia e, das reações de quem a bebia, era fogo ardente! Havia também o azeite, das azeitonas que ele e a avó colhiam, quando era o tempo.
     Já mais no fim da vida, viúvo, revejo a imagem do homem seco de carnes e cheio de coração.
     A avó Isabel era risonha, direita e magra. Não me lembro dela nova. Só me lembro dela já velhota. Admirava as suas saias, saiotes e aventais – por serem muitos e diferentes. Achava admirável que nunca tivesse cortado o seu longo cabelo, enrolado atrás e preso com ganchos largos. E havia os lenços que as mulheres colocavam na cabeça. Variados, também. Nas pernas usava meias até ao joelho ou mesmo até acima, presas com ligas. E o xaile. Imprescindível.
      Na verdade, os costumes são mais da Beira do que do Alentejo, até no vestir.
    A avó tinha muitas dores. Queixava-se que lhe doía aqui e ali. Ali e aqui. Foi decidido que talvez as termas fossem boas para ela. E num Verão lá fomos, todos os dias, com a avó a banhos. Era uma banheira cheia de água muito quente onde ela ficava durante, já não sei precisar, quanto tempo. Fora do edíficio o espaço era bonito e verdejante. E ela teve menos dores. Também era alérgica como eu e a Primavera não era muito agradável.
     Não sei se era boa cozinheira, mas cheira-me aos pratos que fazia – como as sapatinhas, que ainda hoje adoro.
     Vê-la no hospital ainda é real. Foi uma grande tristeza quando morreu.



(sapatinhas)




14

A árvore do avô e da avó




 (João Batista Nunes)
(António Nunes da Rosa)




       O avô tinha um irmão, cujo apelido era diferente. Pelas fotos são parecidos. O João e o António. Em comum o nome Nunes, que não é o sobrenome. O porquê, não sei.
     O avô João Batista Nunes e o irmão António Nunes da Rosa eram filhos de Francisco Dionísio e de Nazaré Nunes, cujos pais foram o José Mendes Dionísio e Maria Dias – pais do primeiro e Manuel Nunes da Rosa e Mariana Joaquina Rola – pais da segunda.
       O avô João Batista Nunes nasceu em 1907, no dia 6 de junho e os seus padrinhos foram António Nunes e Maria Nunes.  Faleceu com 93 anos de idade. O seu irmão António Nunes da Rosa nasceu em 31 Agosto de 1892 e faleceu em 1971.
      Os irmãos João e António casaram. O António com a Maria de Jesus Branco e o avô João com a Isabel da Cruz a 4 de setembro de 1929, tinha ele 21 anos.
     Ambos os irmãos tiveram filhos:  o António teve dois rapazes – o João Batista Nunes Branco que nasceu em 1926 e o José Maria Nunes que nasceu em 1922. Os sobrenomes, no entanto, continuam a baralhar-me.
 O avô João teve gémeos: o  Francisco da Cruz Nunes e a Rosária da Cruz Nunes que nasceram no dia 25 de outubro de 1930.
      Um dos filhos do António  (irmão do meu avô), o José Maria, casou com a Isaura, de quem teve uma filha, a Aura Celeste Nunes. O outro filho de António (irmão do meu avô), o João,  tomou-se de amores pela prima, a filha do seu tio João (meu avô), irmão do seu pai, e ela correspondeu.
      O amor entre os dois era grande e nada os demoveu. Após muita celeuma, o João e a Rosária casaram no dia 6 de setembro de 1950 e viveram felizes até ele morrer em 2007.
      Desse casamento nasceram dois filhos a quem chamo os primos que, por sua vez, também casaram e tiveram cada um dois filhos.
     O outro gémeo, filho do avô João Batista Nunes, o Francisco, casou com a Rosalina e teve duas filhas. A primeira teve dois filhos .
     Voltando atrás, aos dois irmãos, ao meu avô João Batista Nunes e seu irmão António Nunes da Rosa,  foi-me contado pelo primo mais velho e também escrito por ele no ORACIUS, que os irmãos eram diferentes na personalidade. Enquanto o João era o homem da pedra e do martelo e bom contador de histórias, o António gostava de ler, de números e de improvisar quadras e, quando a carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian passava na aldeia, era uma alegria.
     Desta árvore da parte do avô, nada mais sei. Talvez o primo mais novo  saiba pois elabora a árvore da família.




 (João Batista Nunes Branco)
 (José Maria Nunes)
 (Francisco da Cruz Nunes)
 (Rosária da Cruz Nunes)
(Aura Celeste Nunes)



     A avó Isabel, que nasceu no dia 27 de julho de 1908,  teve como pais Ernesto Dias Delfim Delgado e Rosária Jorge Mendes (meus bisavós).  Talvez por isso tenha decidido dar à filha o nome de sua mãe: Rosária.
     Teve como padrinhos António da Cruz Granchinho e Isabel de Cruz Granchinha.
     Faleceu com 84 anos.
     Mais haverá a dizer sobre estas árvores mas no momento, há pesquisa a fazer. Do que for descoberto, aqui será acrescentado.



(Isabel da Cruz Nunes)


(Os pais e os filhos gémeos)






15. O falar







     Da primeira vez que levei uma amiga para passar uns dias na aldeia percebi que a pronúncia típica da região era um quebra-cabeças para os de fora. Primeiro porque muito cerrada, segundo porque rica em palavras diferentes do vocabulário habitual. Se para mim era, às vezes, um desafio tentar descobrir os sinónimos de algumas palavras, para quem vinha de fora, de Lisboa, por exemplo, era muito mais complicado.
     Quando levei a Cris comigo para passar uns dias na casa dos avós, foi uma alegria, confesso. Para ela foi uma experiência diferente pois, como lisboeta com costela espanhola, estar ali era como estar algures num país desconhecido. “Falam como nos Açores” – disse. “Não percebo nada do que diz a tua avó”- voltou a dizer. “Que dialeto falam aqui?” – perguntou.
     Tenho na memória o susto que apanhou quando a avó lhe disse que tinha uma grande garra na blusa. Pensando ser um qualquer bicho estranho da região, a Cris berrou para que rapidamente alguém a ajudasse. Claro que rimos, incluindo a avó. Parece-me que, agora à distância, ela talvez tivesse dito aquilo de propósito para brincar.
     Do que disse e perguntou, não foi a única, pois sempre que levava alguém de outros locais, as constatações e dificuldades eram as mesmas. Por um lado, a avó e as pessoas da aldeia pronunciavam os “u” como os franceses o fazem, por outro, com as outras vogais do alfabeto acontecia algo parecido. Com os ditongos também era diferente. Resultado: era difícil compreender o que diziam: a pronúncia era “muito fechada”.  Há estudos de linguístas sobre este assunto e sobre as razões historico-culturais destas diferenças. A tese de doutoramento em linguística “Linguagem do sueste da Beira no tempo e no espaço” de Fernando Jorge Brissos, é disso um exemplo.
     Apesar de ter que ser a “tradutora” sempre que os avós ou outros falavam, isso não impediu que a minha amiga Cris gostasse das pessoas, das suas vestes, da aldeia e da paisagem campestre. Foi um susto para nós quando não a encontrámos em casa... Afinal tinha decidido ir até ao campo, mesmo ali ao lado, relaxar e sentir os cheiros e as cores que lhe eram oferecidos.
     Ficou tão impressionada com esta primeira experiência que, aquando de um trabalho para uma cadeira de linguística, foi buscar alguns exemplos do que ouvira na aldeia.
     O falar próprio da aldeia é difícil de se perder e muitos, mesmo mudando de vida e de terra, continuam com o mesmo sotaque fechado característico da zona.



Maria Luís Koen







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