domingo, 27 de abril de 2014

soneto do amor e da morte



Julio Pomar

soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

sábado, 26 de abril de 2014

É sempre tudo tão bem. O sol manso de manhã

11


Ognian Kouzmanov

É sempre tudo tão bem. O sol manso de manhã,
o cheiro a orvalhada, o frio a gelar as mãos, a colorir
a face. Mas logo aparece o que arrefece, enlouquece.
Instala-se o nó e a vontade de rasgar papéis, quilómetros de
eternas letras num palmilhar de veios passados.
Mesmo quando desaparece, a surdez continua, a cegueira de 
todos os doces, a nudez de todas as esperanças.
E ficas quedo, com medo de tanta paz e
De eu te dizer que te amo.

Maria Luís Koen


A Roda- sete trovões, sete cabeças, sete calamidades, sete reis.

A Roda - continuação



HANDS OF GOD AND ADAM, DETAIL FROM THE CREATION OF ADAM, FROM THE SISTINE CEILING, 1511

ARTIST: MICHELANGELO BUONARROTI


- Sete trovões, sete cabeças, sete calamidades, sete reis.
- Tanto sete! Já vi que é fã incondicional do sete.
- O sete é muitas vezes associado, como lhe disse, ao mal. Sabia?
Sigo o movimento dos lábios de Simão, como que hipnotizada.
- Não. Mas o que diz é um disparate total. Prefiro a versão da minha amiga.
- Está a ver, a Ana mora no número sete da Roda,  num condomínio que  se pensa ficar precisamente no antigo cemitério judaico. E é disparate porquê?
Será verdade? - penso.  
-Bem, quanto ao número sete, também sei algumas coisas – repito -  pois tenho uma amiga que tem uma fixação por ele. “Por ele e por outras coisas”, pensei. A Bíblia apresenta este número como um número "perfeito" e posso dizer que está presente em tudo na natureza. O sete é o número de Deus, ao contrário do que você afirma.
- Acha isso?
- Sim. Tudo o que Deus faz pelo homem acaba por resultar no número sete – está na Bíblia. Basta ler o primeiro capítulo e o primeiro versículo para ficar elucidado. Na língua original, claro.
- Como assim?
- Do que sei, e sei porque achei muito interessante, é que - retiro da mala um pequeno livrinho que a minha amiga me ofereceu quando fiz anos, onde está escrito o que leio a seguir – precisamente no dia sete e leio: na sua língua original, este primeiro versículo contém o seguinte:
"O número das palavras é sete; estas sete palavras têm vinte e oito letras (quatro setes); as primeiras três palavras têm catorze letras (dois setes). As últimas quatro palavras têm catorze letras (dois setes); as palavras quarta e quinta têm sete letras, as palavras sexta e sétima têm também sete letras; as palavras "DEUS" (sujeito da oração) e "CÉUS", "TERRA" (complemento directo) têm, na língua original, catorze letras (dois setes). As restantes palavras têm, também, o valor numérico de catorze (dois setes); o valor numérico de cada uma das sete palavras deste versículo é de mil trezentos e noventa e três (cento e noventa e nove setes); a primeira letra da primeira palavra e a última letra da terceira palavra somam quarenta e dois (seis setes); a primeira letra da quarta palavra e a última letra da sétima somam noventa e um (treze setes) ficando, para as restantes, o valor numérico de mil duzentos e sessenta, ou seja, cento e oitenta  setes !” (sic) E isto repete-se quase versículo a versículo em toda a Bíblia.
- Bem, retiro o que disse. Gosta de viver na porta com esse número?
- Não me incomoda viver na porta ou no andar com esse número: ao contrário do que você diz, o sete é o número de Deus. Ainda assim, não sou supersticiosa.  
Maria Luís Koen


sexta-feira, 25 de abril de 2014

Viveu num poço


10.


Viveu num poço durante muito tempo. Ou durante o tempo todo de que se recorda. Achava aquilo tudo normal. 
Aquilo é o espaço que escolheu para  viver: o poço. 
O frio, o cheiro a humidade, o escuro, o musgo que ali havia. Mudar para quê? Para ficar pior, antes assim.

Mudar implicava sair dali, dormir e acordar noutro lugar. 

Ia fazer isso porquê? 
Qual a garantia de que seria melhor? 
Seria menos ou mais frio? 
Menos húmido? 
Mais claro? 
Até gostava do musgo, que era macio ao toque. E o escuro fazia com que se sentisse segura. Pelo menos ninguém a via, ninguém sabia.

Se mudasse, seria tudo diferente?
Se mudasse, alguém olharia para ela?  Alguém diria: “Olá  Ana?”
Alguém se preocuparia com ela?
Alguém perguntaria: “Está tudo bem, Ana? “
Se mudasse, seria mais feliz?

Talvez alguém lhe dissesse: “Ana, fico contente por saber que estás bem, que estás menos tímida, que saíste da casca, do buraco onde estás sempre metida”.
E talvez Ana respondesse que sim, que já não tinha vergonha, nem medo de ser julgada pelos outros, de ser traída pelas emoções.

Mas isso assusta as pessoas -  Ana sabia.   
A verdade, a clareza, as emoções cruas. Não querem saber, não querem ver ou fingem que não sabem nada, que não viram nada. Colocam a máscara de todos os dias e pronto, está tudo bem porque sim, porque deve estar, porque é normal. Não desejam saber o lado escuro e descarnado que os outros cobrem com a roupa do dia a dia, não querem saber o que está por detrás da máscara. Estão-se a borrifar para  a Ana que conhecem vagamente. Acham apenas que  vive numa mansão e não num poço frio e escuro.
O que interessa é que todos os dias digam: “ Boa Tarde, como está?” E pronto, está a pergunta feita. E a resposta estereotipada: “Está tudo bem, obrigada”.

Fica tudo feliz, fica tudo satisfeito. Afinal está tudo bem. 
A vizinha doente está bem, o vizinho alcoólico está muito bem, o drogado ali do lado está fantástico, o velhote do terceiro esquerdo que anda na cadeira de rodas e não sai de casa desde que teve o acidente, está uma maravilha.

É melhor viver escondida num poço, mesmo que no Verão ele seque e assim morra.

Maria Luís Koen


A Roda - sim, não se preocupe



COLOURFUL NUDE ABSTRACT COUPLE ART OIL PAINTING 20x24

- Sim, não se preocupe, eu concordo, mas é melhor assinarmos os papéis em como tudo isto é amigável.
Finalmente o homem sorriu e apresentou-se:
-Simão Gonçalves, prazer. Desculpe a irritação mas não estava à espera de ver o veículo naquele estado.

-Ana Cabral. Também fiquei irritada com a minha aselhice-  sorri.
Combinámos que à tarde, por volta das seis, iria ter com ele a fim de ouvir o veredicto do tal perito. O carro ficou na oficina e eu tive que ir levar o dono do carro a casa, um apartamento nos Álamos. 
- Então até à próxima, disse.
- Até breve, disse ele.
O breve foi no dia seguinte enquanto comia uma fatia de tarte, pobre jantar, e olhava para a chuva que batia forte nos grandes vidros da sala que dava para a piscina do condomínio. Olhava para lá sem ver, perdida na minha própria mente, como sempre, à espera de nada, que o tempo passasse, que o jantar terminasse, que a hora de deitar viesse como sempre, para poder dormir e voltar a acordar, na rotina do nada acontecer. Toca o telemóvel, um número desconhecido. Fiquei tão admirada que nem consegui recusar o convite para um cafezinho no Evorahotel. E às nove a campainha toca e lá vou eu, debaixo de chuva torrencial – “uma loucura, devo estar doida”, pensei – com o estranho a quem amolguei o carro, de táxi, beber café ao Évorahotel. Onde está agora a mágoa que tantas vezes me assola, onde pára a terrível culpa, o inconsciente que me mortifica? Escolhemos um sofá perto do bar mas longe dos que lá se encontravam. O barman, solicito, trouxe um chá de menta para mim e para ele um Irish coffee.
-Você mora num lugar azarado, disse.
- Azarado??
- Sim, não sabe? Azarado e, dizem, assombrado – sorriu.
- Não sei do que fala. Ainda se disser redondo, agora azarado…-  sorri também.
- Você não sabe que mora no número sete e, ainda por cima no lugar dos mortos?
- Não.
- O número sete é muitas vezes associado ao mal que, dizem, procura imitar  o bem.
- Sim? Tenho uma amiga que também tem uma paixão especial por números, digo. Ela também tem uma fixação pelo número sete. Mas afirma o oposto: diz que o sete é o numero perfeito.
- Sabe que o sete é a chave do Apocalipse?
- Sim, tenho uma vaga ideia: sete igrejas e  sete estrelas e mais setes que não me lembro – sorri.
(continua)
Maria Luís Koen