segunda-feira, 24 de junho de 2013








isabelle sauvineau





NÃO BASTA ABRIR A JANELA

Não basta abrir a janela 
Para ver os campos e o rio. 
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. 


ALBERTO CAEIRO (FERNANDO PESSOA), in POEMAS INCONJUNTOS / POEMAS DE ALBERTO CAEIRO



A roda

A Roda
continuação


Cinzia Pellin

A conversa gira à volta de tudo um pouco, há um desabrochar da personalidade que não consegui ler nos primeiros instantes – aquela que ela quer que eu saiba, que eu aprenda, que eu conheça. O canto da sereia. É isso que ela é. Sereia encantada ou bruxa má.
Mafalda é culta, vai ao cinema uma vez por mês, ou tenta, como ela própria diz, para não morrer de pasmo. Aproveita sempre que o filho fica com o ex-marido. Divorciou-se quando este tinha três anos. Não aguentou a pressão do agora ex-marido. Não lhe batia, mas a pressão psicológica era constante: nunca nada estava bem feito, nem em casa, nem com o filho, nem no trabalho. Dizia que era um escravo dela, um criado e que , por isso, ela tinha sucesso e ele não. Com o tempo ele foi conseguindo o que no fundo queria: subjugá-la. A sua auto-estima ficou muito em baixo, já nem conseguia decidir nada sem ele: o cinema ou o teatro, o vestido azul ou o preto – era ele quem decidia tudo, quem controlava tudo. Aos poucos foi perdendo os amigos, deixou de se encontrar com eles, nunca eram suficientemente interessantes para o marido. Sozinha consigo mesma e com os seus medos interiores, esmoreceu e com ela a relação. “Era uma relação tóxica, compreende? Amorfa. Deixou de haver cumplicidade, confiança e afetividade entre nós”. Com a ajuda de uma colega com quem fez psicanálise, conseguiu acabar com a tormenta e não se arrependeu. Depois, foi um caminho de re-aprendizagem de tudo e dela própria, de fazer amigos, de sair, de conversar ao telefone, de fazer as suas próprias escolhas e tomar as suas decisões. Foi o extravasar de toda a repressão.

Agora, de quinze em quinze dias dá-se a pequenos luxos, como ficar todo o dia em pijama, não cozinhar ou, até, fazer uma massagem Vichy. Com o filho em casa é sempre diferente. Quando ele não está, se não vai ao cinema procura ir ao teatro, às vezes com o Jorge, outras vezes com amigos. Adora ler e o passatempo eleito é surfar na net. Perde horas do seu pouco tempo livre no computador - “uma maneira de relaxar” e de conhecer outros.
Maria Luís Koen


terça-feira, 18 de junho de 2013


10

Richard Burlet



É tão difícil dizeres que me amas?
Descerra esses teus desenhados lábios
E diz:  amo-te
Amo-te tanto que não sei
Tenho medo deste amor
Desta força interior de maré
Deste olhar coberto em flores de todos
Os campos
Amo-te de todas as maneiras e gestos
De todos os cansaços  -  açucenas no lago
Amo-te.
- e ainda espero essas palavras.



Maria Luís Koen


A Roda - Mafalda - continuação

A Roda
Mafalda - continuação

Wendy Ng

As mãos macias, as unhas arranjadas, nada, mas mesmo nada, descura a imagem de Mafalda – o andar, a roupa, o relógio, tudo parece um jogo simétrico que encanta e, acima de tudo, hipnotiza. A mim não. Eu vejo para além da aparência mas, pela Amélia, faço um esforço:
- Olá Mafalda, prazer em conhecê-la.
Brincos e colar em pérolas brancas, pequenas, que contrastam com a cor do cabelo que usa solto. Comedida em tudo, até no falar: sabe escutar, faz as perguntas adequadas e responde com inteligência. É a maldade pura, eu sei.
- Já sei que é psicóloga, Ana.
- Sabe mais do que eu que desconheço a sua profissão, disse.
- Sou médica - e sorri.
Pedimos uma tarte vegetariana para Amélia, peixe para mim e carne para Mafalda.

Maria Luís Koen



9

Linda Girassol

Seremos juntos
eterna dúvida,
egoísmo
e perda.

Juntos
seremos também
paixão ou
raiva,

especial desejo,
dor de
solidão

e ódio.

-          muito melhor
que nada.



Maria Luís Koen



segunda-feira, 17 de junho de 2013

9. Mafalda

A Roda

Ira Tsantekidou

9.
MAFALDA
Olhos cor de violeta e o cabelo ruivo, escuro, comprido. As sardas espalham-se pelo nariz e o sorriso maroto parece irradiar simpatia. É diferente de todas as mulheres que conheço. Não a consigo ler. Detesto isso. Na minha profissão habituei-me a observar os gestos. Às vezes, estes dizem mais do que as palavras ou dizem o oposto porque são feitos involuntariamente e espelham as emoções, pensamentos e personalidade da pessoa. Todos os psicólogos e psicanalistas valorizam a comunicação não verbal. Sempre fui intuitiva, sempre dei grande importância aos sinais, muitas vezes mais relevantes do que as próprias palavras, que podem ser enganadoras. Mas este é um dom de família e de muitas mulheres. O que senti quando a vi foi avassalador, estranho: os olhos dela eram iguais aos dele quando eu chorei três dias e noites sem parar. Aquele vazio fundo voltou, foi difícil aceitar que aquela mulher era a maldade personificada.

- Olá Ana, já tinha ouvido falar de si.

Maria Luís Koen


domingo, 16 de junho de 2013




 Haja o que houver ___
Letra/música: Pedro Ayres Magalhães

Haja o que houver
Eu estou aqui
Haja o que houver
espero por ti

Volta no vento ó meu amor
Volta depressa por favor
Há quanto tempo, já esqueci
Porque fiquei, longe de ti
Cada momento é pior
Volta no vento por favor...

Eu sei quem és
pra mim
Haja, o que houver
espero por ti...

Há quanto tempo, já esqueci
Porque fiquei, longe de ti
Cada momento é pior
Volta no vento por favor

Eu sei quem és
pra mim
Haja, o que houver


espero por ti...




A roda - continuação

A Roda
continuação

João Alfaro

- Queres um whisky?
- Pode ser.
Vou buscar os copos, o balde do gelo e o whisky.
 - Bebo sem gelo, ela diz.
Saboreamos ambas o acre-doce da bebida, sorrimos:
- Que merda de vida!
                                    …
Amélia acabou por dormir no sofá. Bebeu demais, estava agitada, não valia a pena ir de elevador para o primeiro direito do número ao lado, podendo ali ficar. A náusea que bem conheço, ninguém quer ficar com ela a vida toda. Às vezes acordava às cinco da manhã, agora já nem tanto, bebia uns gins para acalmar, ficava zonza, com as palavras a querer brotar, tentando que o alívio chegasse, que a tormenta passasse. Valia tudo. Os cigarros que ardiam na garganta, os posts intermináveis na internet, os filmes sem legenda, não interessava o quê. Tudo servia para me libertar do peso de pensar, do pes0 de sentir a amargura, do destempero da raiva, da irritação agitada da alma.
Quando acordei, às sete e trinta, tomei um duche quente e rápido e só depois a acordei. Tinha os olhos inchados e pretos da maquilhagem por tirar.
- Não trabalhas hoje, Amélia?
- Obrigada, amiga. Soube-me bem ficar contigo a falar destas coisas que sinto.
- Se precisares de roupa tens aqui toalhas limpas e na cozinha tudo o que precisas. Vou ter que sair agora para não apanhar muito trânsito. Fecha bem a porta quando saíres.
- Obrigada, Ana.
- Convida-me para jantar. Quero conhecer a Mafalda, sorri.

Maria Luís Koen



 O paraíso ___
Letra/música: Pedro Ayres Magalhães

Subi a escada de papelão
Imaginada
Invocação
Não leva a nada
Não leva não
É só uma escada de papelão

Há outra entrada no Paraíso
Mais apertada
Mais sim senhor
Foi inventada
Por um anão
E está guardada
Por um dragão

Eu só conheço
Esse caminho
Do Paraíso






sábado, 15 de junho de 2013

A roda - continuação

A Roda
continuação


Danielle Duer

- Conheci-a num chat. Ao fim de um ano de conversa decidimos conhecermo-nos pessoalmente. Combinámos um encontro, na baixa, em Lisboa, num café conhecido de ambas e, nesse mesmo dia, ela convidou-me para ir até ao apartamento onde vive. Jantámos e falámos sem parar. Bebemos vinho e depois whisky. Acabámos na cama e ainda não sei bem como. Só sei que adorei e que nos encontramos muitas vezes por mês. Todas as que conseguimos. Ela tem um filho e um namorado, o Jorge, que é um doce e nem sonha… Já conheço o filho, já mo apresentou e jantámos os três. Mas a Mafalda mantém o namoro com o Jorge e o romance comigo. Não o quer deixar e diz que a mim também não. Não sei o que fazer. Não a consigo esquecer, não passo um minuto sem pensar nela. Também penso no namorado. Só consigo odiá-lo. Por causa dele, ela não pode estar comigo quando eu quero.
São palavras de mágoa, paixão e ódio as de Amélia. O caminho dela é tortuoso, como é o meu , mas de maneira diferente. É tortuoso o caminho das outras, que eu sei, difícil, enganador, cheio de travessas labirínticas, com obstáculos que parece terem que vencer. Eu sei que não há cura nem salvação para o amor. Ele desperta em nós o desejo, a loucura e às vezes termina num silêncio duro e sem fim.

Maria Luís Koen


segunda-feira, 10 de junho de 2013


8




                                 


Lauri Blank






Vieste com doce
no olhar
a dizer que só pode
haver um fim:
este fim
e com mágoa ou
ânsia
os sons da minha
boca
calaram outros,
mornos lábios,
com medo do princípio
este princípio:
-          amar-te todo

no meu corpo.


Maria Luís Koen




A roda - continuação

A Roda
continuação


Patricia Ariel

-Não aguentava mais, Ana, tinha que contar isto a alguém. Saí de casa dela, não quis ficar. Durante a viagem de duas horas senti um enorme desejo de dizer isto a alguém. À Joana, nem pensar, ela não ia entender. A Roberta é minha amiga desde sempre, acho que nem sonha que eu gosto mesmo é de mulheres. A Júlia é demasiado séria para saber uma coisa destas, por isso digo-te a ti.
Que dizer nestes momentos, meu Deus, e porquê a mim? Porque sou psicóloga?
- E que queres que faça com essa informação?
- Não estás surpreendida ou chocada?
- Não. Sim. Um pouco. Isto é, só não estava à espera de uma revelação como essa, numa quinta feira às dez da noite.
- Pois é. Desculpa, Ana. Andei às voltas no carro, com o coração apertado e a pensar, porque não hei-de dizer? Tenho que dizer! Preciso dizer. Preciso de te dizer, Ana.
- E essa Mafalda quem é?
- Conheci-a através da internet.
As pessoas conseguem, ainda, surpreender-me. E Amélia, que sempre achei sensaborona, surge agora perante mim com uma nova luminosidade. É uma luz crua, despida de floreados, sem mistério. É uma luz de fogueira, quente, contam apenas as brasas, as cinzas espalham-se quando vem a brisa, às vezes vento. 

(continua)
Maria Luís Koen




domingo, 9 de junho de 2013



Elvira Fortunato nasceu em Almada em 1964. É professora do departamento de Engenharia dos Materiais e coordenadora do Centro de Investigação de Materiais da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa. Em 2008 ganhou o maior prémio de sempre dado a um investigador português: European Research Council (ERC), que a colocou no Top 5 mundial dos investigadores em electrónica transparente.



Elvira Fortunato






Omar Ortiz


Morrer de Amor


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso


Maria Teresa Horta , in "Destino"





E a hora
que te espreita
é derradeira.
Decerto já bateu
à tua porta.
A hora
que esperaste a vida inteira,
é agora.



Teresa Salgueiro - Madredeus



7

Patricia Ariel


Grita todas as fúrias     sonhos que não tiveste e
sacode esses cabelos bem penteados     ri até mais
não     bem alto     como um desespero último     que
eu não me importo     nem crítico     nem faço um olhar
esbugalhado.  
Se correres muito até te doer do
lado direito da barriga     ficas bem     e se me chamares
todos os nomes incluindo merda     eu não responderei.
Já em tua casa     faz aquilo que nunca te soube
a doce raiva     essa de partir todos os pratos     bater (em)
todas as portas     chorar todas as lágrimas 
fungar todas as penas     abrir depois a janela e
sorrir.


Maria Luís Koen







if we can't solve any problems
then why do we lose so many tears?
                                                     





A Roda
continuação


João Alfaro

- O chá está quase pronto. Queres bolachas?
- Só se forem de manteiga - responde.
Procuro nos armários pois sei que me deve restar um pacote de bolachas. Ah, aqui estão. Junto um prato cheio delas ao tabuleiro que levo até à salinha.
- Belo chá.
- Sim é bom- digo a sorrir.
- Venho da casa da Mafalda.
- Mafalda? Não conheço. É tua colega?
- Não.
Parece-me haver uma ligeira hesitação mas, logo de seguida, continua :
 -É minha amante.
Por momentos julgo não ter ouvido bem. Bebo mais um gole de chá. A vida às vezes é estúpida e dura e má e nós também. Os dias passam tantas vezes vazios de substância, sempre os mesmos, frios e deformados, semanas e meses em que nada acontece, em que é sempre tudo o mesmo, em que as pessoas que conhecemos nos massacram de nada ou dos seus cansaços que são nossos. Outras vezes parece que tudo isso muda, que há um tremor qualquer que tudo vai agitar, tal bola de neve, agita-me a mim e vai agitar o outro e por aí fora, sem parar. Então aparecem mil estórias que preenchem, vêm ter connosco e nós, mesmo assim, cheias do nosso próprio vazio,  não entendemos nada.
-Amante??

Maria Luís Koen



sábado, 8 de junho de 2013










Yarek Godfrey




O que sinto não é traduzível. 
Eu me expresso melhor pelo silêncio.



Clarice Lispector