terça-feira, 4 de junho de 2013

A Roda

corinne reignier

8 .
AMÉLIA
Sentada no sofá da minha sala, penso no que posso fazer por Berta. Não acredito que ele lhe tenha dado um murro, mas deu. Um de muitos, ao que parece. O divórcio é certo, a Joana encarrega-se das questões legais, mas ficam as dores invisíveis, aquelas que não se tratam com paracetamol, que deixam marcas sem cor, que sangram por dentro. É aí que entro. E vou ajudar como ajudo muitas outras.  São prisioneiras do medo, sem esperança. Eles em liberdade, elas vítimas e fugitivas eternas. Muitas vezes em casas de abrigo com os filhos, fogem ou escondem-se de uma rotina de maus tratos. Mas querem recomeçar, têm direito a isso e à vida. Concentro-me no que me espera amanhã. Não consigo. Berta não me larga a memória. Triste por ela, triste por acontecer, ainda, todos os dias, a tantas mulheres. Um inferno. Olho para o aquário grande na parede oposta ao sofá. Os peixes são uma terapia para mim, mais uma que me ajuda a remexer no lixo, nesta contínua dor dos outros que é minha, deste medo de morrer sozinha, como eles. Basta estar dez minutos a olhar para os seus movimentos silenciosos e o stress desaparece, a ansiedade também. O meu aquário é a minha tranquilidade ao fim do dia, quando a tenho. Quando me perco nos seus movimentos calmos e de súbito rápidos, quando me hipnotizam através do vidro, aí,  esqueço o escuro da sepultura fechada, com ele lá dentro. Foi a melhor prenda alguma vez recebida. Embora no início tivesse ficado um pouco aborrecida, depressa esse sentimento deu lugar a outro bem mais positivo. Volto aos papéis. Releio os apontamentos sobre a paciente das nove: a POC pode transformar e infernizar a vida de quem sofre desta doença e não se trata. Uma vez mais tenho dificuldade em concentrar-me. Os meus pensamentos vagueiam em círculos ilimitados, sempre entrecortados pelos raios dos que giram à minha volta. Raios independentes de quem me sinto dependente. Às vezes odiamos aqueles que nos fazem sentir bem e com quem nos sentimos menos sós. Fecho os olhos por um instante. A música alivia-me a alma, que sinto doentia, entrecortada, raivosa, agitada. Volto aos apontamentos que os olhos captam, mas o pensamento foge, para a maldição do que perdi irremediavelmente, se é que perdi alguma coisa. Talvez não fosse amor, dizem que é eterno. A campainha da porta toca. “São dez da noite”, penso, “Quem será a esta hora?”. Visto rapidamente o robe, pergunto quem é.
-Sou eu, a Amélia. Deixa-me entrar.
-Sobe!

Maria Luís Koen


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