domingo, 30 de maio de 2021

Cinema

 

                                                               janusz  orzechowski


Foi ao cinema, alegre, feliz como já não acontecia desde que mudou de cidade e de vida. Parecia fantástico estar ali viva, depois de quase uma ano em que desacreditou tudo o que viveu, em que, doente, deixou de agir e pensar positivo, como hoje, como agora. Bilhetes na mão, aguarda na fila como se fosse a primeira vez num cinema, numa sala escura, cheia de olhos ou contornos escuros de cabeças. Sim, olha em redor e pensa que renasceu ou recomeçou - um novo começo, o presságio de algo, finalmente bom. Não lhe interessa o murmúrio do casal ao lado, o facto de continuar com medo. Não, ela sabe que é assim, que a vida acontece em cada instante, as coisas fluem, as pessoas ficam ou seguem o seu caminho. Aguarda, no silêncio que se faz na sala, o começo de uma história em que não tem que tomar decisões, apenas fluir na paciência ou impaciência que o filme lhe vai trazer. Está feliz.



sexta-feira, 28 de maio de 2021

É fim de tarde

 


                                                                (Monika Luniak)

Sento-me na areia, com vento e sol, ao amanhecer e, por vezes, ao anoitecer.  Penso como é insuportável imaginar que posso deixar de te provar e às tuas emoções. As coisas continuam, há perdas, eu sei, mas gostava de ver tudo claramente quando olho para ti, e não consigo. Não é falta de oportunidade ou falta de luz, é o constante do dia a dia, talvez, ou o obscuro medo de te perder que me deixa , assim, inerte, esquecida de sorrir, parada, sentindo tudo e nada.

Só queria ser feliz contigo.

À mesa do café bebo o que os teus olhos dizem. Na acalmia do dia vejo, sem erro ou mania, que nada é perfeito, nem nós. És como um espelho que nos mostra o começo ou o fim. Ambos sabemos, mesmo sem palavras, no meio de um cigarro aceso lentamente, sabemos sempre, às vezes até com delicadeza, que houve um erro. O erro de chamarmos amor, ou o descuido, a pressa,  de entrar e estar dentro do que dizem ser bom. Quem errou não sei. É fim da tarde, cheira a mar e quero mesmo é ter saudade do brilho que ficou, da fome que está por vir.

        

Maria Luís Koen




domingo, 23 de maio de 2021

Memórias

 


                                                                     jouke kruijer


      Não sei se vegetar é a palavra certa, mas ela vegeta em alegria. Abre a caixa escondida desde os tempos da faculdade e rejubila. Não recordava já o quanto  necessário é tudo o que lá está. Não sendo, agora que remexe nos escritos, nos postais, nas cartas e alguns recortes, nas fotos, sabe que tudo, tudo continua presente, continua dor ausente. Por isso, guarda de novo a caixa, sem dor, quase num segredo que é só dela e rejubila porque sabe que, se procurar, a dor volta, se remexer, as alegrias assomam, a saudade aperta. Prefere vegetar na calma que o dia lhe oferece, pensar nas coisas bonitas que , agora, raramente acontecem, aceitar que deu sem receber grande coisa, sei lá, aceitar saber coisas das pessoas que nem elas próprias conhecem, olhá-las e ler o que vai lá dentro, perceber que muitas vezes são más mesmo sendo boas. Isso não seria bem aceite, diria até que jamais seria perdoada, amada. É só respirar fundo e calmamente viver sem sentir nada, nada que de facto incomode, ou sentir alguma coisa, como o cheiro das rosas que estão no canteiro, vermelhas, com picos. Isso sim, interessa, pede  atenção e alegria, sem nada esperar, nada. 


Maria Luís

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Não posso viver sem ti

 

                                                                     (Ranaking)

  Quando menos esperamos, tudo acontece.

  Sim, é isso mesmo que ouves, desculpa este telefonema sem nexo, desculpa acordar-te para dizer ninharias, mas para mim não são, são só o pretexto para ouvir a tua voz, mesmo que zangada, irada por te acordar de madrugada. Não consigo mais continuar neste jogo do sim e do não, ou do meio sim e do meio não ou outro qualquer cujo nome não sei, mas assim, assim vou continuar a ligar-te de madrugada para te ouvir zangada.

  Não quero ser precipitado e não te quero assustar com estes ímpetos noturnos, mas não posso continuar sem dormir. Ontem dormi tão pouco, talvez duas ou três horas, não sei precisar, e nas noites anteriores pouco mais. Por isso, não quero saber se ficas irada, porque agora tudo gira dentro de mim, do meu pensamento e já não tenho medo de poder ficar sozinho, ficar sem ti, vazio.

  Desculpa os telefonemas, não sei se vou conseguir não ouvir a tua voz, mesmo que irada. Não destruas isto que está prestes a acontecer, não faças isso. Vou chorar-  

-minto. Ainda me resta alguma dignidade, mesmo a implorar. Já te imagino a cair comigo numa espécie de ratoeira de angústia, individualista, onde as promessas não serão cumpridas  e, por isso, não quero ficar calado, não posso viver, não quero ficar sem ti.



Maria Luís Koen


Nada para ser dito

 

                                                                    ( Lia Melia)


Nada para ser dito.


Sei

das palavras gastas,

gestos iguais ao

início.

 

Performance.

 

O amor a não ser

desejo

e fome

 

Na boca em

mãos misturadas

nos cheiros

 

Até nada continuar

a ser dito

Até nada dito

Nada.

 

Pode ser o fim.




Maria Luís