Des(a)tino

UM



Kanayo-ede


Não dorme com o ruído da porta, do vento, do cão a ladrar , o gato do vizinho ou a televisão do segundo esquerdo.
Não dorme porque lhe encheu as malas com roupa amarrotada de raiva, de irritação, de mágoa ou ira. Não são ciúmes, não. Nem é uma dor intensa. É um sopro que lhe revolve o pensamento e o atira pelo vão das escadas. Toma que lá vai a mala, as roupas e o perfume barato. Vai a barba por fazer e os lençóis com cheiro a alfazema, como ele gosta.
Não dorme porque o engano a esmaga, fecha os olhos mas o sono não chega. Apenas o ruído ritmado das cores cinzentas, do fato escuro, o casacão cinzento a avisar que aquilo tudo vai ser só escuridão, mesmo que os lençóis sejam brancos, que os momentos brilhem.
Não dorme porque vê a metamorfose do amado. Vê a chuva, vê a água e a mala enlameada. O Outono foi ele que o trouxe, as escadas como folhas caídas, a mala com a roupa na penumbra . E as miúdas a olhar sem perceber o momento, o vazio dos amantes, a nudez inquieta da falta de gestos maiores ou ásperos sons.
É por isso que não dorme, dia e noite a mesma luz.

Maria Luís Koen











Gabriella Cleuren

DOIS

Cheguei a casa e pensei que talvez a faca fosse demasiado afiada e, por isso, cortei o dedo. Congestionada com pensamentos vazios, esqueci-me que objectos como aquele podem magoar e que as coisas ausentes se tornam muitas vezes presentes. Sento-me e percebo, cansada, que está tudo errado, mesmo o que parece certo. Dói-me o dedo da faca afiada, as malvas parecem-me da cor do sangue que tenho na mão e suspiro porque sei que espero o que não vem. Ah, às vezes as esperas magoam, há algumas que são eternas e acabamos em caminhos estranhos. Tenho um amigo que diz: desde que os sonhos sejam belos, tudo passa. Os sonhos são outra vida que alimenta todas as possibilidades, outras fotografias. E assim sucedem os presságios e vamos amanhecendo.

Perguntei-te se vinhas jantar, reguei as flores, rasguei os papéis acumulados nas gavetas, preparei as maçãs para serem assadas. Já no forno, o cheiro levou-me ao passado, à quinta, percebi os risos alegres delas, o grelhado que ele preparava, as conversas amenas no meio de cigarros cheios de tempo. Fazia-se noite tarde, os ecos dos copos com bebida traziam excessos. 

“Que queres que diga?” 

Às vezes era bom estar ali, tudo calmo, tudo por começar e por terminar, tudo por dizer e por pressentir. Tu vais falar, tu vais fumar ou beber mas, a luz apagada, adormecida, será a ausência insuportavelmente forte do que fica por dizer, por ouvir ou perguntar. Parece ontem, mas já não sei quando foi. Pode até ser todos os dias em que há encontros nos feriados e passeios em que se ouvem os pássaros. 

Perguntei se vinhas jantar, preparei os sumos, a mesa com três pratos. Então apareceste. E acho que não disseste nada a noite inteira.



Maria Luís Koen



TRÊS



Petru Botezatu


Ele é engraçado. Verdade! Diria até espantoso mas, afinal, mostrou-se mera fachada feita de mármore branco, daquele bonito e macio que vemos no cemitério. Raramente se desesperava e eu admirava isso, a dinâmica que impunha a si próprio, mostrando que era bom viver, espalhando um ilusório brilho imenso. De repente, digo-te que ficou lamento. 

Eu vi como o vento soprou e apagou toda aquela chama, eu vi como o brilho se transformou em cinza, eu vi que a luz ficou fosca. Aquilo que parecia ser uma coisa boa, desapareceu, esfriou, quebrou. Compreendes? 

Não é amargura, não é falta de entendimento, não  é agressividade. É despertar e perceber que o tempo mostrou que a verdade era uma grande mentira. 

Clarividência!!

Fiquei farta de o ouvir. 

Como quando fomos àquele espectáculo, lembras-te? Aí, fiquei farta de ouvir estereótipos de desgraças alheias, de palmas forçadas de quem fingiu que percebeu todas as palavras declamadas. Confesso-te, suspirei de alívio, porque tudo tinha chegado ao fim – todas as luzes, todos os lamentos, todos os passos estudados. Pude sair depressa e respirar o ar gélido, pude voltar ao carro e chegar ao aconchego da casa, quente.

Farta de ouvir a lengalenga dele.

Farta de ouvir a lengalenga do suicídio daquela, da pobreza do outro, do choro da prima, da gargalhada ignorante dos outros que nada entendem mas falam de tudo. 

Ainda bem que cheguei rápido, ainda bem que a casa estava quente, ainda bem que liguei a TV sem o som, ainda bem que o telefone não tocou e que ele não ligou.




 




QUATRO

Maria Magdalena Oosthuizen


Disseste que estava frágil nos seus muitos anos, que o corpo não obedecia. 
Quando a vi, a sombra do candeeiro tapou os olhos já vazios, o descontrolo das mãos. Sim, houve um silencio inicial, aquele momento em que acendeste um cigarro para disfarçar o sentimento. Ligaste a luz do tecto para que a nitidez crua das emoções não se pudesse esconder na sombra do mesmo candeeiro. Veio a conversa conveniente de quem nada diz, nada quer dizer - a conversa à volta do nada até começar a ser tudo. Há uma distancia física que se impõe, ao mesmo tempo que uma transmutação parece surgir vinda de outra dimensão, tudo parece ficar dito nos silêncios. Mas elas surgem, as palavras, envoltas numa qualquer luz mágica. Surgem temerosas e sossegadas,  a dizer que o futuro parece sempre incerto. E vemos a certeza, pouco inocente, que é hora de mergulhar na verdade encantada, com roupas brancas cintilantes.
Apagas o candeeiro e ela parte.

Maria Luís Koen



CINCO


Henry Moore

O cheiro do mar, o cheiro da chuva, os pés enrolados na manta, a música baixinho. Era sempre tão bom estar ali nesses dias ainda sem muito frio. O Inverno era mais agreste mas não me importava de correr com o guarda chuva aberto, rápida, com o casaco bem apertado em direcção à pastelaria, para aí me sentar, molhada, cansada, mas feliz. Geralmente nesses dias chovia sem parar, as pessoas ao lado a protestar, que não havia taxi, que não podiam sair. Fazia tanto frio! A humidade do mar e da chuva colava-se à roupa, as vozes sussurradas de café e eu sem querer saber. Nesses dias gostava da chuva, do frio, do nariz roxo, da correria nas poças de água a caminho de casa, as calças e os pés molhados, as mãos geladas apesar das luvas. Às vezes ele vinha e abríamos uma garrafa de vinho, eu ainda cansada da correria à chuva, esfomeada, sentava-me no quente e seco da lareira e era um bocadinho eu. Outras vezes não lhe abria a porta,ficava parada no tempo ou algures num devaneio, sem conseguir sair daquela espécie de poça de lama. Ficava parada  em frente a um muro cinzento que me impedia de avançar. Trovejava muitas vezes, fazia um esforço grande para afugentar o torpor, inventava um sorriso e, sem pressa, corria em direcção a ele, outra vez, abrindo a porta no meio da chuva, porque era esse o caminho certo para chegar inteira ao destino.

Maria Luís Koen






SEIS


Julia Hamilton


De súbito o claro fica escuro, fiquei parada sem avançar ou recuar. Parada no tempo, parada na vida, na vontade,  sem conseguir seguir em frente. E era algo que precisava muito fazer: não ficar ali, procurar o depois. E há sempre um depois -  depois da chuva parar, depois do vento abrandar, depois da porta se entreabrir, depois dos medos voarem , depois das más lembranças se desvanecerem. Mas é   difícil, nem sempre conseguimos amenizar os estragos , os cantos escuros da nossa mente, o amargo de boca que aparece quando não queremos. Então, parada ali, na estrada, parecia que a mente me obrigava a voltar atrás no tempo. Conduzi sem ver o trânsito, como um autómato, e os factos passados ali estavam, nem sempre por ordem cronológica, nem sempre da maneira que eu queria, nem sempre exactamente como tinham acontecido, numa onda que ia crescendo, crescendo, crescendo. Às vezes os factos passados ainda eram presente e, por isso, essa já gigante onda parecia não ter fim. E depois, repentinamente, algo pareceu acontecer, como uma buzinadela, um peão que se atravessou na passadeira ou uma travagem busca, e tudo se desvaneceu, tudo se tornou  num novelo imaginário de lembranças pouco nítidas, que agora pareciam sem valor.

Muitas vezes assim, vemos o que não queremos e, num qualquer movimento, vagamente absurdo ou não, num dia especial ou não, aquela lembrança desaparece, aquelas nuvens escuras já não estão ali, aquela triste irritação já não é nada disso. Ficam apenas imagens sem dor.


Maria Luís Koen





SETE





                                                                                   Karen Hurley


Depois da conversa à  volta de botões, percebo que sei nada e que todos estão doentes, do corpo e da cabeça, do coração imagino que também. 
Ela falou da história dos botões, da recolha em grandes garrafões, de botões de todas as cores, tamanhos e feitios. Ela mostrou a garrafa de um litro, branca, quase cheia de muitas ofertas, abriu a tampa, despejou o conteúdo para cima da mesa limpa e falou tempo sem fim, já não recordo quanto, da história de cada um, de cada memória, de cada desgosto, alegria, coisa boa ou má, apegada a cada objecto redondo, quadrado, pequeno, grande. Um frasco cheio de estórias que eu desconheceria não fosse o chá de citronela para que me convidou nessa tarde de setembro. Fui me afundando no sofá à medida que ela falava de cada um daqueles botões, sentido a dor do dono do casaco azul a que um deles pertencera ou a loucura ardente e macia que emanava daquele redondinho cor de violeta. Fiquei assim um pouco tonta, porque passadas mais do que três horas, me apercebi que tudo era terrivelmente belo e ao mesmo tempo muito real, profundo, verdadeiro. Todas aquelas cores e formas me sugaram para as suas vidas, desconhecidas, transformadas em corações, olhos e bocas pouco silenciosas, como se soubessem que eu ouviria, que compreenderia e sentiria. Foi assim um pouco assustador perceber que até os botões trazem histórias, muitas, murmúrios que não podem voltar atrás. E essa tarde foi sobre seres, talvez já mortos, não sei, que viram e sonharam e voltaram às suas casas caiadas, aos seus ódios de estimação, às incompreensões alheias e amores sem remédio. 
Quando ela voltou a colocar os botões no frasco percebi que estava diferente, eu também, nem próximas nem distantes. Pouco falámos já, tínhamos visto muito.


Maria Luís Koen






OITO

(João Alfaro)



       A profundidade dos teus olhos cansa-me.
      Sabê-los escuros e não conseguir penetrar (te) deixa-me em raivas, surdos desejos na alma, que se torna angústia do desconhecido.
      Vejo- te passar na noite e o passeio é um eterno caminho cujo fim não descortino, cujo princípio não adivinho.
       A imagem ou mistério é a tua, mas só os olhos sobressaem, só eles têm sentido, só eles são tempestade de mim.
     Quando penso em ti, penso no formato desses brilhos da tua face. Raramente o corpo te revela, apenas quando é frenético de música ou lânguido de paixão. No entanto, sei-te o contorno dos dedos, o tamanho do pulso e a lisura das costas. Também a humidade, que é o mel da tua boca, eu vejo.

       Fecho os olhos assim, que te quero meu.






NOVE


                                                                             (Camelia -07)

Todo o dia choveu e fechei muitas vezes os olhos para não te ver. Confesso que queria muito abraçar-te, olhar para os teus olhos doces, ouvir as tuas palavras calmas e risadas alegres. Mas morreste. Morreste -me. Morreste para mim e para os outros. E é por isso que fecho os olhos enquanto a chuva cai.  Fecho para não ver a tua imagem e fecho porque ao fechá-los, vejo-te com uma dimensão maior. Só com os olhos fechados consigo imaginar os risos que não vou mais ouvir, as frases que não vais dizer nunca mais, os gestos que nunca iremos ter. Por isso não escondo a dor, esta amargura de nunca mais  te ver sorrir.



DEZ

                                                       (Victor Nizovtsev)


Tentou muitas vezes não errar, escolher a pessoa certa, aquela cujas vibrações fossem muito positivas, que lhe trouxessem calma e não agitação, tentou, mas pensa não ter conseguido descobrir essa pessoa. Depois de tanta busca, de tanto mirar e escrutinar essa gente que passa por ela e fica, por vezes, alguns momentos, ou dias, ou então meros segundos, chega à conclusão que está cansada dessa busca e que, pelo menos nesta vida, essa pessoa certa, a existir, não será encontrada. Às vezes parece, aquela mesmo, ser a tal, até pelo cheiro que dela emana, pelo brilho com que ilumina os outros na sua presença, mas não, não é aquela que  precisa, não é aquela que lê nos silêncios. Então sente-se cansada e roubada na alegria de finalmente a ter encontrado, quando afinal tudo era farsa.


ONZE

 É fim de tarde

                                                                           (Monika Luniak)


Sento-me na areia, com vento e sol, ao amanhecer e, por vezes, ao anoitecer.  Penso como é insuportável imaginar que posso deixar de te provar e às tuas emoções. As coisas continuam, há perdas, eu sei, mas gostava de ver tudo claramente quando olho para ti, e não consigo. Não é falta de oportunidade ou falta de luz, é o constante do dia a dia, talvez, ou o obscuro medo de te perder que me deixa , assim, inerte, esquecida de sorrir, parada, sentindo tudo e nada.

Só queria ser feliz contigo.

À mesa do café bebo o que os teus olhos dizem. Na acalmia do dia vejo, sem erro ou mania, que nada é perfeito, nem nós. És como um espelho que nos mostra o começo ou o fim. Ambos sabemos, mesmo sem palavras, no meio de um cigarro aceso lentamente, sabemos sempre, às vezes até com delicadeza, que houve um erro. O erro de chamarmos amor, ou o descuido, a pressa,  de entrar e estar dentro do que dizem ser bom. Quem errou não sei. É fim da tarde, cheira a mar e quero mesmo é ter saudade do brilho que ficou, da fome que está por vir.





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