quinta-feira, 30 de julho de 2020



OITO

( @João Alfaro)


       A profundidade dos teus olhos cansa-me.
      Sabê-los escuros e não conseguir penetrar (te) deixa-me em raivas, surdos desejos na alma, que se torna angústia do desconhecido.
      Vejo- te passar na noite e o passeio é um eterno caminho cujo fim não descortino, cujo princípio não adivinho.
       A imagem ou mistério é a tua, mas só os olhos sobressaem, só eles têm sentido, só eles são tempestade de mim.
     Quando penso em ti, penso no formato desses brilhos da tua face. Raramente o corpo te revela, apenas quando é frenético de música ou lânguido de paixão. No entanto, sei-te o contorno dos dedos, o tamanho do pulso e a lisura das costas. Também a humidade, que é o mel da tua boca, eu vejo.
       Fecho os olhos assim, que te quero meu.


Maria Luís Koen





Memórias da Aldeia



14.

A árvore do avô e da avó






 (João Batista Nunes)
(António Nunes da Rosa)



       O avô tinha um irmão, cujo apelido era diferente. Pelas fotos são parecidos. O João e o António. Em comum o nome Nunes, que não é o sobrenome. O porquê, não sei.
     O avô João Batista Nunes e o irmão António Nunes da Rosa eram filhos de Francisco Dionísio e de Nazaré Nunes, cujos pais foram o José Mendes Dionísio e Maria Dias – pais do primeiro e Manuel Nunes da Rosa e Mariana Joaquina Rola – pais da segunda.
       O avô João Batista Nunes nasceu em 1907, no dia 6 de junho e os seus padrinhos foram António Nunes e Maria Nunes.  Faleceu com 93 anos de idade. O seu irmão António Nunes da Rosa nasceu em 31 Agosto de 1892 e faleceu em 1971.
      Os irmãos João e António casaram. O António com a Maria de Jesus Branco e o avô João com a Isabel da Cruz a 4 de setembro de 1929, tinha ele 21 anos.
     Ambos os irmãos tiveram filhos:  o António teve dois rapazes – o João Batista Nunes Branco que nasceu em 1926 e o José Maria Nunes que nasceu em 1922. Os sobrenomes, no entanto, continuam a baralhar-me.
 O avô João teve gémeos: o  Francisco da Cruz Nunes e a Rosária da Cruz Nunes que nasceram no dia 25 de outubro de 1930.
      Um dos filhos do António  (irmão do meu avô), o José Maria, casou com a Isaura, de quem teve uma filha, a Aura Celeste Nunes. O outro filho de António (irmão do meu avô), o João,  tomou-se de amores pela prima, a filha do seu tio João (meu avô), irmão do seu pai, e ela correspondeu.
      O amor entre os dois era grande e nada os demoveu. Após muita celeuma, o João e a Rosária casaram no dia 6 de setembro de 1950 e viveram felizes até ele morrer em 2007.
      Desse casamento nasceram dois filhos a quem chamo os primos que, por sua vez, também casaram e tiveram cada um dois filhos.
     O outro gémeo, filho do avô João Batista Nunes, o Francisco, casou com a Rosalina e teve duas filhas. A primeira teve dois filhos .
     Voltando atrás, aos dois irmãos, ao meu avô João Batista Nunes e seu irmão António Nunes da Rosa,  foi-me contado pelo primo mais velho e também escrito por ele no ORACIUS, que os irmãos eram diferentes na personalidade. Enquanto o João era o homem da pedra e do martelo e bom contador de histórias, o António gostava de ler, de números e de improvisar quadras e, quando a carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian passava na aldeia, era uma alegria.
     Desta árvore da parte do avô, nada mais sei. Talvez o primo mais novo  saiba pois elabora a árvore da família.
     


 (João Batista Nunes Branco)
 (José Maria Nunes)
 (Francisco da Cruz Nunes)
 (Rosária da Cruz Nunes)
(Aura Nunes)


      A avó Isabel, que nasceu no dia 27 de julho de 1908,  teve como pais Ernesto Dias Delfim Delgado e Rosária Jorge Mendes (meus bisavós).  Talvez por isso tenha decidido dar à filha o nome de sua mãe: Rosária.
     Teve como padrinhos António da Cruz Granchinho e Isabel de Cruz Granchinha.
     Faleceu com 84 anos.

     Mais haverá a dizer sobre estas árvores mas no momento, há pesquisa a fazer. Do que for descoberto, aqui será acrescentado.



 Isabel da Cruz Nunes)
(Os pais e os filhos gémeos)



Maria Luís Koen


domingo, 26 de julho de 2020



Memórias da Aldeia


13
O avô Baptista e a avó Isabel




     O avô era um bom contador de histórias. Conhecia várias e sabia contá-las. Tão bem, que serão de Inverno não o era sem um conto – o do João Sem Medo ou João Soldado, o meu favorito. Também me ficou “O conto que nunca mais  acaba. Se queres que te conte, eu conto, se não queres, não conto. Queres que te conte?”
- “Sim” – dizia.
- “Não digas sim, que este é o continho que nunca mais  acaba.  Se queres que te conte, eu conto, se não queres, não conto. Queres que te conte?”
- “Ó avô, já dissemos que sim!”

- “Assim não vale!” – resmungávamos.
- “Não digam – assim não vale - que este é o conto que nunca mais  acaba.  Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
 Já aborrecidos dizíamos:
- “Isto já chateia!”
- Não digam – isto já chateia - que este é o conto que nunca mais  acaba.  Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
- “Não! Já não queremos, pronto. “
- Não digam – Não, já não queremos, pronto - que este é o conto que nunca mais acaba.  Se querem que vos conte, eu conto, se não querem, não conto. Querem que vos conte?”
     Escusado será dizer que este conto era irritante e não tinha fim!!
     Já o meu pai o contava no caminho para a aldeia e também aos netos, meus filhos.
     Mas havia outros, que já não sei precisar. Os serões nunca eram monótonos, fossem eles sem luz elétrica ou, mais tarde,  com luz elétrica.
     O avô João era pedreiro. Um homem direito e magro, que depois do trabalho tratava da horta e dos animais. Foi sempre um avô bondoso, que cuidou do trabalho, das terras, da casa e da família.
     O avô bebia aguardente com uns minicopos que ainda guardamos como preciosidades de outros tempos. Era ele que a fazia e, das reações de quem a bebia, era fogo ardente! Havia também o azeite, das azeitonas que ele e a avó colhiam, quando era o tempo.
     Já mais no fim da vida, viúvo, revejo a imagem do homem seco de carnes e cheio de coração.
     A avó Isabel era risonha, direita e magra. Não me lembro dela nova. Só me lembro dela já velhota. Admirava as suas saias, saiotes e aventais – por serem muitos e diferentes. Achava admirável que nunca tivesse cortado o seu longo cabelo, enrolado atrás e preso com ganchos largos. E havia os lenços que as mulheres colocavam na cabeça. Variados, também. Nas pernas usava meias até ao joelho ou mesmo até acima, presas com ligas. E o xaile. Imprescindível.
      Na verdade, os costumes são mais da Beira do que do Alentejo, até no vestir.
    A avó tinha muitas dores. Queixava-se que lhe doía aqui e ali. Ali e aqui. Foi decidido que talvez as termas fossem boas para ela. E num Verão lá fomos, todos os dias, com a avó a banhos. Era uma banheira cheia de água muito quente onde ela ficava durante, já não sei precisar, quanto tempo. Fora do edíficio o espaço era bonito e verdejante. E ela teve menos dores. Também era alérgica como eu e a Primavera não era muito agradável.
     Não sei se era boa cozinheira, mas cheira-me aos pratos que fazia – como as sapatinhas, que ainda hoje adoro.
     Vê-la no hospital ainda é real. Foi uma grande tristeza quando morreu.



sapatinhas


Maria Luís Koen







NEOWISE 2020




(Miguel Claro)


sexta-feira, 24 de julho de 2020


Memórias da Aldeia

12
As festas







     Num Verão os aldeões decidiram retomar as festas em honra do padroeiro da aldeia, S. João Baptista. Muito entusiasmo na sua organização. Recordo algumas delas. Quando as raparigas,  primas, bateram à porta e disseram: “- Vamos fazer os papelinhos para o baza r. anda ajudar.”  - eu fui. Nunca tinha enrolado tanto papelote. À noite, havia os cantores que se vestiam na casa da Maria. E o bailarico ainda era mais divertido. A música alta, os petiscos, os carros daqueles que vinham à festa e que ocupavam os dois lados da rua, os foguetes... Era a agitação das festas da aldeia. Havia cacholeira assada e morcela, entre outros petiscos, e as pessoas estavam contentes.
     As primas vinham muitas vezes buscar -nos e isso também era divertido.
     Nesses dias estava calor e de tarde ficavamos na penumbra da casa mas ao final do dia tudo recomeçava. A avó aparecia muitas vezes na saleta para mostrar as rendas e os linhos  ou para conversar. A avó tinha mantas trapiças que gostava de nos mostrar e fazia uma tomatada divinal. Nunca mais comi igual. Nem eu nem a minha tia Ana que me disse que se lembrava muitas vezes da avó Isabel por causa da tomatada que ela fazia.




Maria Luís Koen



quinta-feira, 23 de julho de 2020

 


NEOWISE  2020

(desconheço o autor)




Memórias da aldeia


11. 
A casa do boqueirão


(Monet)


     Quando os avós mudaram para a casa no boqueirão, foi outra novidade, pois o espaço era diferente, tanto no interior como no exterior.
     No interior havia um corredor com uma porta envidraçada, colorida, que nos fazia chegar à cozinha onde se fazia o lume de chão e uma sala. Nesse corredor, do lado direito e esquerdo havia quartos, sendo um deles o quarto onde o porco era desmanchado e a salgadeira. Lá em cima, no sobrado, havia mais quartos com janelas. A casa tinha um quintal com um pequeno palheiro, onde ficavam as galinhas, patos e coelhos. Um limoeiro. Também ali ficava a lenha que aquecia a casa no Inverno. O avô era pedreiro e acabou por fazer uma casa de banho numa parte do quintal.
     O exterior também foi diferente porque a amálgama de casas deixou de existir bem como a vivacidade do interior da aldeia. A rua era larga e as pessoas outras. Mas o hábito da chave na porta, do lado de fora das casas, o mesmo.
     Esta casa, tal como as outras, aviva boas recordações. Não há vidas direitas nem só coisas boas. Porque esta última acompanhou a vida dos avós até ao fim, também nos presenteou com recordações mais tristes.
     Daqui guardo memórias dos gatos a entrar e a sair e do Pardal, o cãozinho preto do meu avô. Como e quando apareceu não sei mas sei que alegrava toda a gente. Quantas foram as vezes que a pestinha negra nos foi acordar de manhã? Quantas e quantas vezes nos fez levantar sem termos vontade? Estas coisas tão simples que os cães domésticos fazem também podem deixar marcas nas nossas vidas.
     Quando havia festa, quase não era necessário sair pois a música entrava pela casa dentro como se esta fosse o palco. Quando não havia, a vida da aldeia decorria normalmente e a casa acordava cedo, mesmo antes do sol nascer. Ouvia, meio estremunhada, o som da porta a fechar ou mais tarde a abrir. No Verão era a luz que nos acordava, no Inverno as mantas quentes diziam para ficarmos no aconchego da cama, mesmo que o barulho das vozes, lá embaixo,  na casa,  nos acordasse.
      Nesta, como nas outras casas, houve muita vida, muita conversa, muitas festas de Natal . Houve alegrias e dores. Vida e morte. Nascimento. Casamento. Arrelias também.
     É esta que mantemos. É esta que melhorámos, apesar dos contratempos e múltiplos aborrecimentos com os empreiteiros e pedreiros, que disseram mas não fizeram ou, pior,  desarranjaram. É esta que nos continuou a reunir.
     É nesta que chorámos a partida  primeiro da avó, depois do avô.
     Com esta vimos partir o tio João, a tia Rosária.
     Nela sentimos saudade do pai, que também partiu.
     Do lado paterno, fica a casa e tudo o que nela foi vivenciado e continua a ser. Agora com visitas mais espaçadas, mas com o mesmo gosto,  porque as vidas não permitem mais.
     Da casa ontem e da casa hoje – lá estão as estórias, contadas, veladas, vividas.


Maria Luís Koen


terça-feira, 14 de julho de 2020



Memórias da Aldeia

10. Os doces


 (cavacas)
(tigelada)



     O bolo de azeite e os bolinhos de azeite:  parecem iguais mas são diferentes.
     Ao bolo de azeite associo a avó Isabel, aos bolinhos de azeite associo a tia Rosária.
     O primeiro, não tinha doce e era grande – penso que feito sem açúcar, tinha como ingredientes principais pão, azeite e farinha; os segundos eram pequenos, doces e bem mais saborosos.
     O primeiro não fazia grande questão em comer, já quanto aos segundos... tudo era bom: a massa ainda crua, quentinhos a sair do forno ou frios, eram simplesmente maravilhosos!! E a receita, onde está? Não sei. A avó morreu, a tia morreu, a mãe não sabe, os primos só se recordam de os comer...
     Se pensar nas filhós, eram também diferentes daquelas a que estava habituada. A minha avó materna fazia as filhós típicas da zona onde morávamos na altura do Carnaval e a minha avó paterna, avó Isabel, fazia as filhós na época do Natal e eram bem diferentes, pois eram também feitas com azeite, farinha, ovos e aguardente. Revejo-a a amassar e a tender a massa, a colocar a massa no azeite a ferver, a virar cada filhó assim que estivesse bem dourada. O cheiro a fritos, o açúcar...
     A tigelada era outro doce que a avó Isabel gostava de preparar.  Era feita numa tigela de barro e levava ovos, farinha, açúcar e canela. Vejo-a, muito direita, com as suas saias rodadas, várias,  e avental, com o cabelo apanhado. As mulheres não cortavam o cabelo. Às vezes, na casa do boqueirão, a avó sentava-se à lareira e soltava os cabelos que iam até à cintura. Nunca o cortara. Penteava-o com um gancho grande e era depois enrolado e preso à cabeça. Na rua,  as mulheres tapavam o cabelo com um lenço e não havia decotes. Já mais velhas vestiam muito de preto porque toda a gente era parente e havia sempre alguém a morrer. Feita a tigelada era só comer e chorar por mais. 
     As cavacas eram mais elaboradas. Havia mais trabalho a fazer. Geralmente, no sobrado, juntava-se a tia, a avó e lembro outra mulher para preparar a massa, o “branquinho” das cavacas e depois as terminar. Era bom comer a cobertura branca e era também bom comer tudo quando ficavam prontas. Ficavam em cestas de verga, cabazes ou tabuleiros, dentro de um panos brancos de linho.


 (bolo de azeite)
 (filhós)
(bolinhos de azeite)



Maria Luís Koen




23

(Tiffany Hagen)




Sinto que já disse todas as palavras
e no entanto não disse.

Não ousei o toque 
nem o secreto falar do
depois
não ousei a cumplicidade dos códigos
nem a faísca do som.

Volto a sentir que já disse todas as palvras
palavras ditas       que se dizem       que se devem
dizer
os outros esperam que sejam ditas
no entanto

não ousei as que pensei
não ditas porque não
não se deve
os outros não

ah raiva
dôr de só as poder sonhar
escrever
que nunca (as sei) dizer.



Maria Luís Koen




sábado, 11 de julho de 2020



Memórias da Aldeia


9. O Monopólio



     No Verão, com os dias quentes, muitas noites se passavam na rua, os mais velhos sentados nas cadeirinhas de palha. Havia cadeiras para todos os tamanhos.  Durante o dia, a casa da tia era fresca e, quando os primos estavam, havia jogos de monopólio. A sala, quando se entrava pela porta da rua da casa velha, tinha uma mesa quadrada grande, onde podíamos jogar à vontade, com muitos risos e protestos que este jogo proporcionava e  ainda proporciona. Quando assim acontecia, o jogo durava a tarde toda. Essa e outras mais, pois nunca parecíamos cansados de o jogar. Não havendo jogo, havia o descanso da tarde, não a dormir mas a ler muitos livros do pato Donald e do tio Patinhas, entre outros. Apesar de não haver televisão, não me lembro de ficar aborrecida.
     Havendo sede, tinhamos a água fresquinha nos potes da cantareira; havendo fome, o pão caseiro, o queijo fresco feito pela avó Isabel ou o outro, bem mal cheiroso, que ela guardava dentro de uma folha de couve. Às vezes também havia almece, a que a avó dava outro nome. Ordenhadas as cabras, o leite era utilizado para fazer o queijo e o almece.  Como não gosto de queijo, certamente o meu lanche era outro. Já dos bolinhos de azeite feitos pela tia Rosária, não posso dizer o mesmo. Ainda hoje, que ela já faleceu, tenho saudade de os comer. Nunca comia só um.
     Inquiridos os primos sobre os bolinhos que eles tão bem se lembram de comer, continuo sem a receita. Procuradas outras, parece-me sempre que não serão como os dela.


 (Bolinhos de azeite)


(pão caseiro)



Maria Luís Koen

quinta-feira, 9 de julho de 2020



Memórias da Aldeia


8.  A Matança


(sopa de cachola)



(fumeiro)

     Na aldeia quase todos os habitantes tinham horta e animais: galinhas, patos, coelhos, cabras, ovelhas, vacas e porcos. O meu avô tinha galinhas, coelhos, patos, cabras e porcos.  Depois da engorda, vinha a época das matanças. Geralmente era em janeiro ou fevereiro.  Às vezes no Natal. Estava frio. Vinham os filhos, os netos e os vizinhos também.
    A primeira recordação que tenho, é dorida. Ir para um grande espaço e ouvir guinchos alucinantes de um animal em sofrimento, foi algo que nunca esqueci. Era pequena na altura. Mãos nos ouvidos para tapar o som que não queria ouvir. O porco preso, os homens, vários, a segurá-lo, o grito lancinante do animal e o meu, para não ouvir o dele.
     Mas, já maior e noutro espaço – no quintal da casa da tia e depois na casa do boqueirão -  os guinchos foram iguais e a recordação dorida, mantém-se.  
     Preparado o local onde o animal ia ser colocado, também tinha que haver homens em número suficiente, cordas para o segurar e pendurar, faca para o matar, carqueja para o chamuscar e lenha para o cozinhar. As mulheres também preparavam a matança: a avó e a tia buscavam alguidares de barro que iriam receber as carnes que por elas iriam ser temperadas bem como os alguidares que receberiam as tripas do porco e o sangue ainda quente.
     O avô e outros homens iam buscar o porco à pocilga, que traziam para o local onde iria ser morto. Era atado, vários homens o seguravam- o avô, os primos já homens, o tio, o pai, às vezes mais um ou dois e, era depois morto com uma grande faca espetada no coração.  A imagem dos guinchos e do espernear do porco mantém-se viva.  A faca espetada no coração, o alguidar em baixo a receber o sangue quente, que a tia ou a avó mexiam continuamente. Com ele fazia-se a sopa de cachola comida ao almoço e posteriormente as morcelas.
     O porco  era  então  chamuscado com carqueja a arder. Ainda sinto o cheiro a queimado nas narinas. Depois de chamuscado era raspado com uma faca e lavado.
    Eram sempre dias de grande agitação e festa familiar.
    Para o matar havia vários homens, embora apenas um o fizesse, para o levantar e pendurar no quarto da desmancha, outros tantos.
     Esse quarto tinha um grande gancho preso ao teto. Era aí que o porco era pendurado, já chamuscado, raspado e lavado. Ali ficava a escorrer. O avô, então,  abria o porco de alto a baixo para tirar as tripas e o estômago para um lado e os rins, o fígado, os pulmões e o coração para outro alguidar.
     Havia, ainda, muito a fazer. Limpar o espaço onde o animal tinha sido morto, preparar o almoço. O lume de chão já tinha brasas, pronto para se assarem umas febrinhas só com sal ou o rabo do porco. As primeiras. Preparavam-se as laranjas que acompanhavam a sopa de cachola. Havia queijo que cheirava mal e vinho feito pelo avô. Pão caseiro . Febras e carne de porco assada na brasa. Do resto do almoço, não lembro.
     A matança não acontecia só num dia. Um dia não chegava para tanta azáfama.
     As mulheres tinham a incumbência das tripas do porco. Estas eram muito bem  lavadas e esfregadas pela avó, mãe, tia e outras mulheres numa ribeira com água corrente. Não falo do cheiro. Também não gostava dessa parte. Era um trabalho meticuloso pois se assim não fosse, tudo o que se seguiria ficava estragado. Ficavam guardadas, com sal e não sei se mais alguma coisa, até serem utilizadas. O intestino grosso para umas carnes e o delgado para outros. No porco tudo se aproveitava.
     Só o avô desmanchava o porco. Tenho a imagem bem presente do porco pendurado  e mais tarde, não sei se já no chão, ele a escolher e cortar: os presuntos, orelha, pedaços para isto e para aquilo, cada pedaço no seu alguidar, o toucinho. Daí viriam as morcelas, os paios, as cacholeiras, o bucho, farinheiras, linguiças.  No entretanto, havia sempre umas febrinhas para assar no lume de chão.
     Desmanchado o porco – tudo se aproveitava – voltava o trabalho das mulheres. A avó, a tia e outras mulheres da aldeia cortavam as carnes em pequenos pedaços e  temperavam. Este trabalho era feito com a porta fechada. Sentadas nas pequenas cadeira de palha, migavam, temperavam, mexiam, preparavam. E se alguma mulher, que não elas, entrasse no quarto das carnes, olhavam diretamente nos olhos das pessoas, a saber se estavam com sangue ou não, para não estragar a carne.
    Preparada a carne, deixada a tomar sabor por não sei quantos dias, havia outros preceitos a fazer: escolher o que por na salgadeira, preparar o fumeiro da chaminé.
     Depois havia que encher as tripas lavadas e preparadas. Era trabalho das mulheres, outra vez. Parece que as estou a ver. E a ver-me. E à minha irmã. E à minha mãe. À avó e à tia. Ao pé da grande chaminé. Os alguidares com as carnes, o cheiro a cominhos, as tripas, os funis para poder encher as tripas, o cordel para as atar. O dedo polegar a trabalhar ou um pauzinho. Eram depois fervidas em água, as morcelas naquele dia as outras carnes noutro, que depois se colocavam nas varas do fumeiro: os presuntos, as cacholeiras, as morcelas de sangue, os paios... e ali ficavam até estarem prontos a comer.
       Lembro as conversas e os cheiros.



Maria Luís Koen