Memórias da aldeia
11.
A
casa do boqueirão
Quando os avós mudaram para a casa no
boqueirão, foi outra novidade, pois o espaço era diferente, tanto no interior
como no exterior.
No interior havia um corredor com uma
porta envidraçada, colorida, que nos fazia chegar à cozinha onde se fazia o
lume de chão e uma sala. Nesse corredor, do lado direito e esquerdo havia quartos,
sendo um deles o quarto onde o porco era desmanchado e a salgadeira. Lá em
cima, no sobrado, havia mais quartos com janelas. A casa tinha um quintal com
um pequeno palheiro, onde ficavam as galinhas, patos e coelhos. Um limoeiro. Também
ali ficava a lenha que aquecia a casa no Inverno. O avô era pedreiro e acabou
por fazer uma casa de banho numa parte do quintal.
O exterior também foi diferente porque a
amálgama de casas deixou de existir bem como a vivacidade do interior da
aldeia. A rua era larga e as pessoas outras. Mas o hábito da chave na porta, do
lado de fora das casas, o mesmo.
Esta casa, tal como as outras, aviva boas
recordações. Não há vidas direitas nem só coisas boas. Porque esta última
acompanhou a vida dos avós até ao fim, também nos presenteou com recordações mais
tristes.
Daqui guardo memórias dos gatos a entrar e
a sair e do Pardal, o cãozinho preto do meu avô. Como e quando apareceu
não sei mas sei que alegrava toda a gente. Quantas foram as vezes que a
pestinha negra nos foi acordar de manhã? Quantas e quantas vezes nos fez
levantar sem termos vontade? Estas coisas tão simples que os cães domésticos
fazem também podem deixar marcas nas nossas vidas.
Quando havia festa, quase não era
necessário sair pois a música entrava pela casa dentro como se esta fosse o
palco. Quando não havia, a vida da aldeia decorria normalmente e a casa
acordava cedo, mesmo antes do sol nascer. Ouvia, meio estremunhada, o som da
porta a fechar ou mais tarde a abrir. No Verão era a luz que nos acordava, no
Inverno as mantas quentes diziam para ficarmos no aconchego da cama, mesmo que
o barulho das vozes, lá embaixo, na casa,
nos acordasse.
Nesta, como nas outras casas, houve muita
vida, muita conversa, muitas festas de Natal . Houve alegrias e dores. Vida e
morte. Nascimento. Casamento. Arrelias também.
É esta que mantemos. É esta que melhorámos,
apesar dos contratempos e múltiplos aborrecimentos com os empreiteiros e
pedreiros, que disseram mas não fizeram ou, pior, desarranjaram. É esta que nos continuou a
reunir.
É nesta que chorámos a partida primeiro da avó, depois do avô.
Com esta vimos partir o tio João, a tia
Rosária.
Nela sentimos saudade do pai, que também
partiu.
Do lado paterno, fica a casa e tudo o que
nela foi vivenciado e continua a ser. Agora com visitas mais espaçadas, mas com
o mesmo gosto, porque as vidas não
permitem mais.
Da casa ontem e da casa hoje – lá estão as
estórias, contadas, veladas, vividas.
Maria Luís Koen
Sem comentários:
Enviar um comentário