quinta-feira, 23 de julho de 2020



Memórias da aldeia


11. 
A casa do boqueirão


(Monet)


     Quando os avós mudaram para a casa no boqueirão, foi outra novidade, pois o espaço era diferente, tanto no interior como no exterior.
     No interior havia um corredor com uma porta envidraçada, colorida, que nos fazia chegar à cozinha onde se fazia o lume de chão e uma sala. Nesse corredor, do lado direito e esquerdo havia quartos, sendo um deles o quarto onde o porco era desmanchado e a salgadeira. Lá em cima, no sobrado, havia mais quartos com janelas. A casa tinha um quintal com um pequeno palheiro, onde ficavam as galinhas, patos e coelhos. Um limoeiro. Também ali ficava a lenha que aquecia a casa no Inverno. O avô era pedreiro e acabou por fazer uma casa de banho numa parte do quintal.
     O exterior também foi diferente porque a amálgama de casas deixou de existir bem como a vivacidade do interior da aldeia. A rua era larga e as pessoas outras. Mas o hábito da chave na porta, do lado de fora das casas, o mesmo.
     Esta casa, tal como as outras, aviva boas recordações. Não há vidas direitas nem só coisas boas. Porque esta última acompanhou a vida dos avós até ao fim, também nos presenteou com recordações mais tristes.
     Daqui guardo memórias dos gatos a entrar e a sair e do Pardal, o cãozinho preto do meu avô. Como e quando apareceu não sei mas sei que alegrava toda a gente. Quantas foram as vezes que a pestinha negra nos foi acordar de manhã? Quantas e quantas vezes nos fez levantar sem termos vontade? Estas coisas tão simples que os cães domésticos fazem também podem deixar marcas nas nossas vidas.
     Quando havia festa, quase não era necessário sair pois a música entrava pela casa dentro como se esta fosse o palco. Quando não havia, a vida da aldeia decorria normalmente e a casa acordava cedo, mesmo antes do sol nascer. Ouvia, meio estremunhada, o som da porta a fechar ou mais tarde a abrir. No Verão era a luz que nos acordava, no Inverno as mantas quentes diziam para ficarmos no aconchego da cama, mesmo que o barulho das vozes, lá embaixo,  na casa,  nos acordasse.
      Nesta, como nas outras casas, houve muita vida, muita conversa, muitas festas de Natal . Houve alegrias e dores. Vida e morte. Nascimento. Casamento. Arrelias também.
     É esta que mantemos. É esta que melhorámos, apesar dos contratempos e múltiplos aborrecimentos com os empreiteiros e pedreiros, que disseram mas não fizeram ou, pior,  desarranjaram. É esta que nos continuou a reunir.
     É nesta que chorámos a partida  primeiro da avó, depois do avô.
     Com esta vimos partir o tio João, a tia Rosária.
     Nela sentimos saudade do pai, que também partiu.
     Do lado paterno, fica a casa e tudo o que nela foi vivenciado e continua a ser. Agora com visitas mais espaçadas, mas com o mesmo gosto,  porque as vidas não permitem mais.
     Da casa ontem e da casa hoje – lá estão as estórias, contadas, veladas, vividas.


Maria Luís Koen


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