quinta-feira, 2 de julho de 2020



Memórias da Aldeia


2. A Horta

     Deixando a aldeia para trás, caminhava-se um bom bocado, mas havia sempre o contentamento de ver os bichos na pocilga, esfomeados, a grunhir. Geralmente eram dois. Espreitar lá para dentro era sempre uma aventura. Abria-se o portão de madeira e, ao longe, a pocilga em pedra escura, com dois degraus feitos, também, de pedra mal amanhada. Recordo a alegria de ver os porcos e a tristeza de os ver morrer, mais tarde, aquando da matança.
      No caminho de pedra e pó, até à horta, muitas flores silvestres, muitas “chagas de cristo”, muitos muros de pedra e muitos sons que só ouvimos no campo. Esta era uma terceira paragem porque, muitas vezes, a primeira estava perto da saída da aldeia. Aí, havia um poço e uma nora. Levava-se água  aos animais. Aí, também havia uma espécie de latrina pública. Um nojo, é verdade. Não havia saneamento público e passo à frente este assunto.
     Nessas caminhadas do terreno dos porcos até à horta, havia sempre correria, gritaria, berros com eco e era bom. Muito bom. Aberto o portão da horta, tudo dependia da época...  – mas ...   muitas vezes favas! Favas, muitas favas. O terreno era ligeiramente inclinado e ladeado de oliveiras. Recordo o mar de favas, não sei porquê.  Ao cimo, o palheiro e mais oliveiras, figueiras, ameixas amarelas e escuras, tão doces, tão boas, pêros amarelos.  Muita hortaliça. Na altura da apanha da azeitona, lá íamos, não varejar mas apanhar, sim. Algumas, pelo menos, que éramos primeiro crianças, depois jovens.
     Havia um poço e um tanque, do outro lado do terreno, uma nora, um pequeno riacho que vinha de outra horta acima, com água fresca e transparente e muita coisa para fazer e comer.
     O avô ou a avó cavavam ou colhiam ou semeavam e nós...muita brincadeira com os primos, quando eles estavam.
     Muitos cheiros, intensos, claros.
    No palheiro estava um burro preto. Uma ou duas vezes lá me sentei, em cima do burro, pouco à vontade. Noutras alturas, havia tiro aos pássaros, mas a pontaria era pouca, que me lembre.  Tardes ou manhãs bem passadas, de muita acalmia.
     Recordo com muita saudade essas alturas, essas caminhadas, a ida para a horta com a paragem nos porcos, e a volta com muitas amoras pretas e ar puro  no caminho.
     Os cheiros.

     Enchiam-nos a alma e não sabíamos. 


 (pai na figueira)

 (o burro... o pai e a mana )

 (passarinhos)

(na tapada)

("chagas de cristo")
       

Maria Luís Koen



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