quarta-feira, 1 de julho de 2020

MEMÓRIAS DA ALDEIA

  
Memórias da Aldeia





(aguarela de Roque Gameiro)



1. A casa velha

        De noite, em casa, não havia luz, não havia movimento, não se pensavam os olhos, não se sentiam as sombras, mesmo que ligeiras. Era mesmo tudo escuro. Uma escuridão estranha, que nos envolvia e nos deixava quedos, quase em torpor. De vez em quando havia um som de madeira a chiar, um som aumentado pela falta de todos os outros sons. Por vezes também se ouvia a madeira a ser comida e aquilo ficava. Ficava o som a embalar, até que o sono nos levava e a manhã aparecia , não com a luz que sempre se espera, mas com o cantar agudo do galo e o cacarejar das galinhas, ao longe. Era sempre assim ali, na casa velha, provavelmente também nas outras casas da aldeia.
         No sobrado não havia janelas, não podíamos ver as estrelas de noite ou a lua, nem o raiar do sol. Era sempre noite escura no sobrado, mesmo quando dia. Descíamos a escada estreita, de madeira, para o rés- do- chão que era a casa, com o chão em lages largas de pedra cinzenta e a porta de madeira maciça com postigo que deixava entrar a luz. Tinha uma cortina, se não me engano. Não havia janela. A casa, em baixo,  tinha também dois quartos: um primeiro, maior,  onde estávamos e comíamos,  um segundo, onde os avós dormiam. A separá-los, uma cortina.
           Tudo passava por ali, pelas portas sempre abertas ou com a chave, a dizer que se podia entrar, nada havia a esconder. Entrava-se e saía-se para os campos. Havia que ir buscar água, com os potes. Havia os animais para tratar, as terras para cavar, a fruta para colher. Parecia tudo simples, então. Sem muitas complicações ou agitação.
           Da casa, rude e de pedra, descia uma rua também em pedra, ladeada de outras casas cujos habitantes pouco lembro. Descíamos para ir comprar rebuçados ao café do lado esquerdo da rua, na casa que era da minha tia. Entrava-se e estava sempre escuro, havia homens a bebericar e a falar. À saída, e na volta para casa, lembro as flores plantadas, muito doces, vermelhas, dos lados das casas,  que chupávamos, e o poial da casa acima, do António e da Maria, que servia de cadeira para conversas cantadas naquela pronúncia, mais à tardinha, no Verão.  À noite ficava-se em casa. Não havia eletricidade e as conversas faziam-se à luz dos candeeiros a petróleo.
          A rua, cujo nome não sei precisar,  descia até ao fim da aldeia, fazendo um ligeiro S, parecendo grande mas, agora, vejo que não. Logo a seguir ao S, havia um largo, pequeno, com um  poço por baixo da  casa da minha tia. O poço tinha um banco. Se ali nos sentássemos, podíamos ver o fim da rua, em frente e à direita, outra, que iria dar à principal, direta à vila. Víamos as portas das casas dos outros, entreabertas, muitas,  e sons que vinham lá de dentro. Pessoas que já não lembro, exceto a Miguela do lado esquerdo e a  Luz, lá mais à frente.
          Se subisse a rua da casa velha, tinha três possibilidades:  dois degraus e lá estava a mercearia, com a balança antiga e o cheiro característico das mercearias de aldeia, o marido ou a mulher de óculos, sempre simpáticos a aviar. Se virasse à esquerda, comprava o pão acabadinho de fazer no forno da aldeia. Ia com a avó e ela nunca trazia só um pão, mas sim cinco ou seis, num bornal de pano, que ficavam guardados algures na casa velha e que davam para muitos dias. Não me lembro de alguma vez ter comido pão duro, ali. Seguindo nessa direção, também podia continuar e sair da aldeia, rumo à vila ou pelo lado oposto, em direção aos campos. Disse que havia três possibilidades. A terceira,  seria virar à direita, se pensar na mercearia como o centro,  quando subia,  vinda da casa velha. Por aí ia muitas vezes com a avó ou o avô, dar alimento aos porcos e em direcão à horta. Outras vezes, quando eles estavam, com os primos.


Maria Luís Koen




(nós os quatro a caminho)

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