segunda-feira, 21 de julho de 2014

A Roda - capítulo 12



Helene Perdriat

12.
Somos sete aros numa roda que é a mesa da sala, pequena teia que dá para a piscina redonda do condomínio da Roda . Gabriela, a taróloga, refere a perfeição como curiosidade. Por exemplo, as cartas números quatro e três formam o par chamado Imperador - Imperatriz, o pai e a mãe, portanto a perfeição. E quatro com três soma sete. Disse também  que as cartas cinco e dois são o par Papa - Papisa, o par da espiritualidade . Número sete.  Depois,  que  a carta número sete é a Carroça, símbolo de cumprimento, realização. Gabriela continua dizendo que o sete é, assim, o algarismo do homem perfeito. Finalmente, antes de começar a sua lição sobre as cartas, acrescenta que “o sete representava também os sete estados da matéria, os sete graus da consciência, as sete etapas da evolução -consciência do corpo físico, da emoção, da inteligência, da intuição, da espiritualidade, da vontade e da vida - e ainda os sete pecados mortais, de todos conhecidos: Avareza, Inveja, Ira, Gula, Preguiça, Soberba e Vaidade” (sic). E sorriu:
- Tudo se passa no universo dentro de um ritmo septenário.

Maria Luís Koen

sábado, 19 de julho de 2014

De repente


16

Telmo Rocha



De repente as cores ficam cinzentas
o rumo é infinito e assustador
as sensações adoecem na chuva
e eu
não sinto nada.

A memória
essa, recorda-me episódios
que saboreio
mas não sei.

Quero e não
esquecer.


Maria Luís Koen


Podia




Deborah Younglao



Podia ter lido o livro que me deste,

podia ter, finalmente,  escrito aquela longa carta,

podia ter programado melhor o trabalho.

Podia ter feito tanta coisa, mas não fiz.

Podia ter-te telefonado,
podia ter-te dito o que queria para depois descansar.

Mas isso não aconteceu.


Ando assim.


Maria Luís Koen

Sempre


15

John Bramblitt


Sempre esta dôr
de ver teus olhos
bichos inquietos.


maria luís koen




Joana

A Roda - continuação

Gun Legler

Joana continua : 
-Estou impressionada convosco! Mas digo mais: o sete está presente em inúmeras histórias populares e lendas.
- Sim? Interessante. Dá exemplos!
- Por exemplo a história da Branca de Neve e dos sete anões.
Acrescentam:
- As sete léguas das botas do Pequeno Polegar.
-Pois é, formavam um grupo de sete rapazes.
- O sete possui um certo poder, é um número mágico. Para mim o sete está relacionado com a perfeição.
Mafalda fingiu estar boquiaberta e ligeiramente impressionada, apesar de não me enganar:
- Já vi que percebem de numerologia. Sabes muito sobre o número sete, Joana. E vocês também.
- Sei ainda mais – sorriu - mas agora quero apresentar-vos a Gabriela. Pedi à Gabriela que nos lesse ou nos ensinasse a ler as cartas.
Claro, só podia ser isso, pensei. Que treta. Isso ou uma reunião de tuppersex. Não sei qual a melhor. Para mim, nenhuma. Mas agora não posso fazer nada a não ser entrar no jogo, em mais uma brincadeira ao gosto de Joana. Uma brincadeira no meu apartamento, um pouco à minha revelia, o que me desagradou mais ainda. 
A invasão do meu espaço, das minhas coisas, dos meus objectos era quase a invasão da minha alma, do que eu sentia. Era isso que não perdoava a Joana. Que trouxesse duas estranhas, uma bruxa e outra bruxa, a minha casa. Perturbava-me isso, como depois disse a Joana. Não sei se ela compreendeu, até acho que não, é muito prática a minha amiga. Mas disse-lhe na mesma. Não quero que ela repita a gracinha. Não quero pessoas que não conheço na minha casa. Não quero abrir as portas a qualquer um. Não quero ser sugada de surpresa por olhos cor de violeta como fui sugada pelos dele. Não quero passar pelo mesmo, pela morte, pela ida à sepultura colocar flores e vir de lá a cheirar a mortos. Não quero voltar a isso, nem lentamente, não quero pensar nele – escondi a cadeado as fotografias amarelecidas pelo tempo, as saudades, a escova do cabelo, o pente. 
- Como calculam não podia ser na minha casa, que o Miguel não gosta destes assuntos e morando a Ana no número sete, achei brilhante ser aqui.
 
Maria Luís Koen



quinta-feira, 19 de junho de 2014

Hoje


Sunset by leonid afremov
Leonid  Afremov

Hoje o amor é acalmia doce.
Há  saudade do tempo em que o mal não existia.
Sim.
Gosto desse sabor salgado.
O mar.

Gosto.

maria luís koen


quarta-feira, 11 de junho de 2014

coisa ausente

monólogo

Paul Cumes



Coisa ausente

   Trovejou toda a tarde. Peguei no carro e fiz-me à estrada, sem destino certo. Andei pelas ruas da cidade, nem depressa nem devagar, sem prestar especial atenção ao trânsito. Parei no semáforo vermelho e ouvi a gritaria de uma mulher. Gritava e esbracejava e reparei que era para mim. Olhei mas não a reconheci. Duvidei até que fosse para mim mas, olhando em volta, eu era a única condutora parada no semáforo, para além dela. Olhei melhor e quando ela disse “Então não me reconheces?” com aquela boca enorme, fez-se luz e percebi que era a minha querida mel-ancia! Ficou verde e parámos cinco minutos à frente – onde não se podia estacionar, mas era uma emergência. Uma emergência de há vinte anos talvez. Saímos do carro e eu fiquei um pouco esgazeada, tonta do reencontro que estava longe de pensar que pudesse acontecer. A mel-ancia, quem diria! Efusiva como sempre logo ali me deu um grande abraço. “Ó Eva, que saudades que tinha. Que saudades dos nossos despiques e das nossas longas conversas.Como é que perdemos assim o contacto? Como é que desapareceste, mulher? Está tudo bem na tua vida? És feliz?” E logo ali trocámos números de telemóvel e promessas de um jantar de amigas como tínhamos o hábito de fazer noutros tempos.
   Já no carro, novamente conduzo, ainda sem destino, muito distraída e com a mente fixa na mel-ancia, como carinhosamente gostávamos de lhe chamar, porque ela era redondinha e corada, sumarenta de sentimentos. Pelos vistos não foi mesmo para freira. Lembro-me bem da conversa a três quando ela recebeu a notícia de que a sua grande paixão morrera num estúpido acidente rodoviário. Na altura não pensou a não ser em tornar-se freira. As paixões nunca lhe tinham dito nada. Ouvia as amigas falar dos primeiros beijos, das primeiras carícias e aquele entusiasmo não lhe dizia nada. Não as invejava. Não queria ser ou sentir como elas. Achava que o seu destino era estar com Deus, dedicar-se a Cristo. A sua missão sublime e terrena era essa. Depois começou a escrever cartas àquele católico que conheceu durante uma peregrinação a Fátima e sentiu-se desorientada na sua fé. O seu desígnio já não lhe parecia o mesmo, sentia-se viva quando lhe escrevia, em ebulição até a resposta chegar, a ferver quando o correio trazia a carta esperada. Não disse nada às amigas, a nós que tanto a estranhámos, não queria comentários jocosos ou perguntas a que seria difícil responder, confessou mais tarde. Viveu aquele romance platónico como seu, só dela e de mais ninguém, numa fúria de secretismo completamente assustadora. E um dia varreu-se tudo. Foi-se tudo com a trovoada. Como agora a minha vida. Também se foi toda. Só resta este estúpido carro, esta estúpida tempestade, esta maldita vida. Até se foi a fala: a mel-ancia não abriu a boca pelo menos durante três dias. Por fim, teve que dizer a uma das amigas, que comentou comigo e que não comentámos nada com ela porque não sabíamos bem o que dizer, pois ela era quase uma santa para nós e as santas não se apaixonam por rapazes durante peregrinações a Fátima, que depois morrem. Mas foi assim mesmo que aconteceu e Lídia disse em casa que queria ser freira. Disse alto para o pai ouvir que, coitado, por sua vez pensou não ter ouvido bem. “A rapariga está parva de todo” – comentou com a mãe e saiu para comprar o jornal, como fazia todos os Domingos depois da missa. Mas a ideia continuava lá e Lídia todos os dias pensava no mesmo. Foi ter connosco à costa alentejana,  uma combinação que tínhamos feito com a mãe da mel-ancia.  O objetivo era tirar-lhe essa obsessão da cabeça – isso de ser freira era demais! Lídia, ou melhor, a mel-ancia, foi. Queria sentir paz e a paisagem daria o seu contributo. Queria a calma que não tinha no Porto, queria não pensar no rapaz, queria ver-se de hábito, rezar o terço, sem ter que se justificar com ninguém. Queria não ficar cansada, queria não sentir, queria não pensar-se a dizer – “por favor amor, leva-me contigo para a eternidade, preciso muito de ti”. Nós não lhe demos descanso, contudo. Houve acérrimas discussões, choros, apelos. Que bem me lembro destas nossas tragédias pessoais. Só ficámos felizes quando ela disse que iria repensar melhor a decisão. Nesse dia houve farra para comemorarmos. Sendo assim, emborcámos três ou mais garrafas de vinho tinto e dormimos vestidas, na certeza que não a iríamos visitar ao convento nos próximos tempos. Pelo menos enquanto estivéssemos por perto. 
   E agora, que a minha vida está caótica, que não vislumbro o que fazer dela, aparece-me a minha querida amiga que queria ser freira. Será este um desígnio de Deus?  Quero continuar a conduzir, mas coisas mais terrenas, como a falta de combustível, levam-me a ter que atestar,  sob pena de ficar sem carro. Eu bem sei que lhe chamei estúpido mas não tenho dinheiro para comprar outro por isso retiro o que disse. Quero fazer-lhe todos os elogios possíveis, quero mimá-lo até mais não, a este companheiro das minhas venturas e desventuras. Mas é normal amar assim um carro, um chupador de dinheiro? Ou estarei a ficar louca e em breve começarei a mutilar-me? Talvez me espere uma depressão e morra sem saber do quê, imersa em confusões mentais dificilmente compreendidas. Não, talvez fique como aqueles que todos os dias vejo com um certo ar de tristeza, espanto, consternação. Vou para casa que aí posso lamuriar-me por um preço mais barato. Em casa não gasto os pneus do carro e posso poupar na gasolina. Posso sentar-me no sofá e tentar fechar os olhos, posso esquecer que as pessoas não me ligam, que o meu marido fugiu com outra, posso tentar esquecer o ambiente no trabalho, posso nem ouvir o que oiço todos os dias. Pois posso. Assim evito ficar como a Nelita. Isso mesmo. Tão bem educada que ela era, sempre tão simpática, prestável, doce. Como eu. Uma excelente rapariga. Como eu. “Quem a levar ao altar fica de certeza bem servido” – repetia vezes sem conta a tia, a avó, a mãe, as primas, um número infinito de familiares que conhecia quando passava o fim de semana em casa dela, nos tempos em que ainda era estudante, feliz, bem com a vida, com os homens. Ela era o centro de tudo, agora que penso nisso, o sol de qualquer local onde estivesse. Também era inteligente, estudiosa, amiga. Enfim, um rol de qualidades. Exigente. Ser amiga dela requeria um brilhantismo quase indecente. Os rapazes eram colocados a uma distância conveniente e Nelita suspirava com fome por aquilo que não tinha. Dizia-me quase em segredo, quando estávamos sozinhas ou as três (havia mais uma amiga de fora que passava os fins de semana em casa dela como eu – a Madalena) que o seu maior desejo era  libertar-se da mãe castradora, do pai ditador, da família que a oprimia. Por isso estudava noites a fio, numa pressa desmesurada em acabar o curso, imaginando já a euforia de poder ser a dona da sua própria vida. Quando isso aconteceu, candidatou-se para o local o mais longe da sua casa de família e foi aceite. Aí começou a busca, a fantasia, a loucura. Começou a mudança. Uma mudança que me assustou quando a revi, me custou lágrimas escondidas, apertos no coração, telefonemas desesperados à mel-ancia, já depois da mania de ser freira. “Meu Deus, a vida é mesmo estranha” – penso, deitada no sofá da sala que me oprime. Vou até à cozinha, abro o frigorífico para comer uns morangos. 
   Um dejá vue que acontece. Quando a vi sentada no banco da cozinha a comer romãs com açúcar amarelo, percebi que algo não estava bem. A nossa Nelita dizia que os dedos ou as unhas vermelhas, já não me lembro bem, eram uma tormenta. Uma tormenta, repetia. As manchas não saiam e ela tinha vontade de cortar os dedos. “Mas tu estás louca, Nelita?” – eu bem que perguntava, dizia! Mas pensou que uma maldição se tinha apoderado dela e começou a olhar para as pessoas como se fossem vermes, bichos podres que a queriam possuir, comer, atacar. Doía-lhe já lavar as mãos com lixívia, esfregar os dedos com palha de aço. Aquilo não saía. Ninguém via o que ela via, mas lá estava o vermelho escuro nos interstícios das unhas, lá estava aquela porcaria a impedi-la de acariciar alguém. Doía-lhe muito a espera. Doía-lhe não ser pura, a falta de alegria. E depois, um dia, quando foi mudar o óleo ao carro, o mecânico apertou-lhe muito, mas mesmo muito,as mãos, com as unhas negras e quando foi pagar, ele deu-lhe um narciso amarelo e o romance começou aí. Malditos romances. Foi como quando ele me ofereceu flores. Mentiras. Flores manchadas de traição. Desde o dia em que ele partiu, que não quero margaridas em casa. Margaridas com cheiro a dor. Margaridas sem pétalas. Margaridas manchadas de falsidade, como as unhas da Nelita manchadas de romã: o mecânico não se importava com as unhas manchadas dela e ela começou a odiá-lo na primeira noite em que dormiu com ele. Uma manhã acordou e estava toda vermelha. Ela, ele, a cama, o lençol. Tudo menos os dedos que via agora limpos, imaculados. “Que maravilha, querida Eva. Finalmente a maldição desapareceu, finalmente a nódoa deu lugar ao belo”. Do que a polícia disse, espetou-lhe uma faca de cozinha  porque não gostou do pano branco com que ele se vestira para lhe agradar.Relembra o que leu no relatório onde ficou escrito que Nelita  também não gostou dos lençóis de cetim, “que parvoíce mais sem nexo, coisa de puta! Coisa de puta!” - gritou, que ela não era isso. Espetou-lhe a faca bem fundo e ficou a ver o vermelho escuro, a romã, com um grande nó no peito, lindos os fractais que ela via. “ Desculpa meu amor, não te queria fazer mal” e telefonou à mãe a chorar dizendo que “no melhor pano cai a nódoa, mãe, no melhor pano”. E nunca mais me esqueço disto. Nem disto nem dos armários vazios da roupa dele, quando cheguei a casa, cansada, já tarde, a pensar no jantar que tinha preparado na véspera, com tanto amor, tanto amor. E depois isto. As gavetas sem a cuecas brancas, o armário da casa de banho – que corri a ver – oco dos objectos e dos cheiros dele. Tanto trabalho, tanto namoro, tantas escolhas, tanto tempo juntos para quê? 
   Bendito sofá. 
   Bendito chá de tília. 
   Passaram os anos e nunca fui capaz de me impor. Impor-lhe os meus desejos, manter as minhas amizades, roubar o tempo ao tempo da casa. Foi para isto que casei? Para ficar sozinha sem um tostão? Muita razão tinha a Florbela quando me disse que ele era dúbio e que ela sabia muito bem o que dizia e, que se dizia, era porque era a verdade, fruto da experiência.Florbela sentou-se no sofá, noutro que tinha na minha antiga casa de solteira, esperou pela mel-ancia que não apareceu porque andava às voltas com as maleitas da mãe, esperou pela Nelita, que finalmente surgiu de olhar fundo, e contou-nos que se sentia a mais parva das criaturas, a mais triste e só de todas as que se lembrava de alguma vez ter conhecido. Sim, é assim mesmo que me sinto agora. Agora sinto-me muito Florbela, como já me senti mel-ancia e Nelita na vontade de alguma loucura. Afinal, dizia-nos de boca cheia e olhos tresloucados, afinal  levara uma vida de mentira, numa ausência de si própria que sempre abominara nas outras. Nessa caminhada ausentara-se do importante, que eram as amigas, os passeios sozinha, as caminhadas pelas livrarias, os fins-de-semana de conversas com elas. Pior que tudo, ausentara-se do que ela sempre fora. 
   Meu Deus, acho que ela sou eu ou eu sou ela, porque sozinha neste apartamento que me leva metade do ordenado, rodeada de móveis que não escolhi, de livros que nunca mais li, desespero de nada. Nada. Perdi tudo, tudo. Sentada no sofá na casa grande, percebo que me ausentei dos livros que sempre amei. Sinto que o caminho é muito mais difícil de percorrer, que tenho que conhecer tudo de novo. Eu, Eva, não sei se ainda consigo aprender, não sei se caminho bem pelas ruelas, se tenho as palavras certas para me aproximar de novo dos outros e criar raízes de confiança. E esta casa que me irrita, que me prende, que me absorve as energias. Estes tachos que me oprimem. Como à Madalena. Eu vivo a vida delas, mas nunca quis ser freira para fugir à dor. Eu vivo a vida delas, mas nunca matei ninguém. Eu vivo a vida delas mas ainda não enlouqueci. Madalena, minha louca amiga, minha grande lavadeira de tachos, Madalena que lavou um tacho durante pelo menos vinte minutos ou mais, que eu contabilizasse, que esfregou, passou por água quente, depois por água fria, depois mais espuma para tirar qualquer resto de gordura, lavou, lavou, lavou com o imaginário “ele” a olhar para ela, sem perceber que este  imaginário “ele” lhe havia partido as asas, quando a levou e quando finalmente a trouxe do edifício branco, onde todos riam, tinham olhares pardos e de repente choravam ou gritavam fantasmas que só eles viam.É isto mesmo que penso -  tirou-lhe as asas. E eu também não tenho asas. Sinto-as partidas e é por isso que choro e tenho raiva ao meu automóvel, que consome gasolina até mais não. Não tenho asas. A Madalena já não podia voar, “já não consigo sentir o vento a passar rente ao corpo, agora doem-me as pernas, agora já não sinto o corpo leve, Eva” e   esfregava o tacho sem esforço, a pensar que a tinham depenado para lhe enfiarem aquele vestido feio, para que se sentasse com as dos olhos secos e com o rapaz que assobiava de noite e gritava de dia. E ela tinha muito medo outra vez porque o tacho continuava sujo, havia pó, estava nua, não podia voar, não podia olhar a imensidão do verde, não podia ouvir aquilo que queria. Disse-me que já não era pomba, já não era livre, já não havia o seu milagre, o que lhe  importava - a ilusão, desaparecera de vez. A minha ilusão de felicidade também desapareceu num dia de trovoada, como o dia de hoje, em que andei às voltas de carro para esquecer ou para lembrar ou para sentir ou não sentir, para fugir do medo de ficar sozinha e reencontrei a mel-ancia num semáforo que estava vermelho. É aquele medo que eu não queria que voltasse, de não conseguir soltar o que tenho cá dentro, porque não sei se isso ainda existe, se ainda lá está. Nem sei se me apetece jantar com a Lídia amanhã. Não quero abrir a conversa, o peito, soltar a dor. Não quero ouvir a história que ela me vai contar, não quero saber de mais desgraças, não lhe quero dizer que todos os dias quando me sento sozinha no sofá, vejo que não escolhi o caminho certo, percebo que andei tempo demais a vaguear, que me deixei enredar e não soube manter o que é efetivamente importante. Tenho quase a certeza que não vou jantar, não vou, não. 
   A campainha toca, a Lídia-mel-ancia desbocada e sentimental ali à porta, a entrar sem pudor na minha casa, como se vinte anos fossem meros vinte minutos, os olhos a  vaguearem pela sala, por ali, pelas peças decorativas que já não sei se comprei ou se foi ele e ela sente uma dor miúda e calada, igual à minha, copiada de mim ou que eu copiei dela,  que a faz desviar os olhos e mergulhar na paisagem que aparece ao longe, que vê da janela da sala, à espera que o tempo passe, mais vinte anos passem, que apaguem ou amenizem o que calamos. Mas ela fala, a Lídia fala. Diz as estórias que eu não queria ouvir e oiço, diz o desassossego da alma, que eu tão bem entendo, diz do medo e da esperança que o sol a deixe mais animada, que uma das poucas amigas que lhe restam telefone, para ela poder dizer algumas palavras, lembrar-se de como se conversa, de como se confia. E eu a ouvir mas a repetir o que ela me diz, como se fosse o eco dela. E tinha sede do que lhe faltara naqueles anos todos. Muita sede e vontade de se embebedar de outros, de se enfrascar no que eles dizem, barbaridades ou ninharias do dia a dia, tanto faz para ela. E eu pensava, enquanto ouvia, pensava que me tinha afastado dos outros, que os outros se tinham transformado nele e que ele tinha fugido com outra.Ele tinha fugido com outra, ele tinha levado com ele os sonhos e as asas que precisava para voar.  Lídia, minha querida Lídia, minha querida amiga, minha mel-ancia, eu só não quero ou não posso continuar a sentir que lutei tanto para nada, para ter nada, para acabar com as mãos cheias de vazio. Finalmente falo, finalmente digo, finalmente abro o coração e digo que era isso mesmo que não conseguia digerir, era isso que tinha dificuldade em expressar, esse sentimento enraivecido de que tinha tanta coisa que era um nada translúcido. Nem a paz me sobrava. Os dias passam e de repente lá estou eu sentada no sofá à espera que a ausência de tudo seja preenchida, o vazio fique ocupado e que esta espera contínua e tão grande seja interrompida sem dor. E Lídia diz-me que também quer a alegria roubada em tempos porque também  ela não pode mais viver morta. Está cansada de si mesma, tem uma saudade imensa das pedras coloridas, das palavras que gritava com as amigas, das risadas, do tricôt que era o pretexto para inventar possíveis estórias, tem saudade do antes de morrer. Quer o carrossel gigante. Como eu. Não uma coisa ausente, um carrossel gigante e colorido.

Maria Luís Koen


terça-feira, 10 de junho de 2014

a roda - continuação




Trish Laffrenere

O pensamento é interrompido pela campainha. Por sorte cada uma das minhas amigas traz um doce, uma bebida, nenhuma de mãos vazias. Um amontoado de casacos, luvas, cachecóis e malas no meu quarto, taças na cozinha, bebidas no móvel da aparelhagem, a confusão da chegada e de quererem saber a razão de ali estarem e da importância que tal teria para mim.
-Não sei. A Joana é que marcou isto tudo na minha casa. Sabem como ela é. Gosta de surpresas e a maior surpresa é que ainda não chegou.
O telemóvel toca.
- Está atrasada, mais dez minutos e já cá está.
Todas conhecemos os dez minutos de Joana, por isso atacamos o bolo de chocolate da Roberta e o abafadinho da Júlia enquanto pomos a conversa em dia. Passados três dez minutos, a campainha do número sete toca e eis a nossa querida Joana acompanhada de alguém que nunca viramos antes.
- Desculpem o atraso mas tive que ir buscar a Gabriela. Com ela somos sete.
Olhámos umas para as outras. A Joana sempre teve a mania, fixação, ou fetiche - mais um - por números. A tudo associava números e vice-versa, até nós tínhamos números. Não gostava de alguns, como o seis, e chegava a desmarcar compromissos quando o número não lhe agradava.  
-E o que tem sermos seis ou sete? Pergunta Mafalda, ainda novata nos gostos de Joana.
-Não sabes que o seis é de mau agouro e o sete é um número tradicionalmente cheio de significados e simbologias? É um número divino. Vou dar-te alguns exemplos. 
- Então é melhor sentarmo-nos… - disse eu, desagradada com tudo aquilo e ainda mais porque a bruxa estava na minha casa, coisa que eu queria evitar a todo o custo. E o que é facto é que a pimenteira murchou, como verifiquei no dia seguinte. Mas não podia fazer nada, o que me irritava ainda mais, pois mesmo que quisesse explicar, como o iria fazer? Sentia-me aleijada com aquela mulher na minha casa, a ver tudo com aqueles  olhos de bicho frio. Louca, diriam por certo, se alguma vez ousasse mencionar o que sabia. 
- Olha Mafalda, para mim o sete é um número muito especial. E vou dar-te vários exemplos do porquê desta minha convicção. 
Como se a bruxa não soubesse – pensei.
- Por exemplo, os dias da semana são sete por alguma razão, os planetas para o mundo antigo também são sete, existem sete sábios Gregos e sete graus celestes .
-E uma rosa, imagina, tem nada mais nada menos do que sete pétalas-  acrescentam as outras na risota.
 E Roberta diz:
-As cores do arco-íris são sete, e quantos são os pecados mortais?
- Sete -  respondem .
Cada uma acrescenta um ponto:
-As notas musicais são sete.
-Sabes quantas estrelas formam cada uma das constelações da Ursa Maior e da Ursa Menor?
- Sete! Sete!
Já conhecedoras da sua paixão por este número, continuam e ajudam na festa:
- Sim, o sete é também é um número simbólico: simboliza as três virtudes teológicas.
- Pois é! A Fé e a …
- Esperança
- A caridade.
-E também há as quatro virtudes: prudência e temperança …
-Justiça e força.
- De acordo com a Bíblia o mundo foi criado em seis dias, sendo o sétimo, o dia do descanso.
- É verdade. É considerado dia Santo.
 E eu, para não me ficar atrás, não me tornar mal educada e gerar desconfiança, acrescento e repito as palavras de Simão no Evorahotel:
-O número sete é a chave do Apocalipse.
- Sabes isso?
- Sim,  é também símbolo da totalidade humana.
- Sim? Como?
- Adicionando o número quatro que simboliza o homem com o número que simboliza a mulher, isto é, o três.
- Como é que sabes isso? – pergunta Joana.
- Li num site que encontrei na internet, minto.

(continua)
Maria Luís Koen


domingo, 8 de junho de 2014

ó terra


14

Derek McCrea




Ó terra
     Ó mãe
                matriz

Quero ser areia
                              areia  
areia

E em mim
receber
                      o mar.




Maria Luis Koen




a roda - continuação



Liu Yuanshou

As mulheres modernas dos dias de hoje desconhecem a sua história como mulheres, e muitas consideram a menstruação um episódio mensal no mínimo aborrecido, um tremendo incómodo que não se importariam de abolir de vez. As mulheres do século XXI deixaram de ter e de se juntar nas “casas de lua”, nas “tendas vermelhas” para poderem descansar, conversar e partilhar as suas experiências, problemas, aflições e medos, bem como a sua intuição , essa bem antiga. Mas a verdade é que, quando acontecem jantares ou reuniões de mulheres, o resultado é que elas ficam mais felizes e sentem-se bem e com vontade de estarem de novo juntas. Nas antigas casas de lua, as mulheres mais velhas ensinavam às mais novas as chamadas “coisas de mulheres”, tais como viver com os ciclos menstruais  de uma  forma calma e sem grandes dores, ou problemas. Mas, ainda assim, apesar da era moderna em que vivemos, em algumas aldeias de Portugal, as mulheres menstruadas ainda se juntam para analisar os ciclos, para anotar a lua em que geralmente chega a menstruação (muitas vezes chamada  “a Velha ”) e para conversarem. Conhecem as luas e os seus poderes, sabem os períodos férteis, quando nascem os filhos. Sabem que a Lua Nova significa o início do ciclo, que o Quarto Crescente tem a ver com o amadurecimento, que a Lua Cheia quer dizer colheita e que o Quarto Minguante é a altura certa para avaliar o que correu bem e o que correu mal,  para assim poderem começar um novo ciclo. Este conhecimento e observação fazia com que as mulheres das aldeias não fossem ao médico, muitas ignoravam os métodos contraceptivos pois sabiam identificar os seus períodos férteis e também as probabilidades dos nascimentos.
A psicoterapeuta Patricia Cuocolo, que estudei nos tempos de faculdade e que se especializou nesta área, afirmou num dos seus estudos, algo que todas as mulheres sabem: que a “Lua, Sangue e Mulher sempre estiveram associadas. Em várias línguas as palavras menstruação e Lua são as mesmas ou estão relacionadas”. Todas sabemos o que é “estar aluada”. A primeira forma de medir o tempo foi, de facto, através do ciclo menstrual das mulheres. Estes pareciam estar de algum modo ligados entre si.  Essa sincronia apontava para uma ligação entre as mulheres, a Lua e as deusas da fertilidade. De acordo com esta terapeuta, muitas das queixas apresentadas atualmente pelas mulheres no seu (também no meu) consultório, e na clínica médica de cuja equipa faz parte, tais como “Tensão pré menstrual, cólicas, dificuldade em engravidar, doenças no útero, ovários e seios, têm as suas origens no facto da mulher se ter distanciado de sua natureza cíclica e sábia, onde a sua capacidade de se silenciar para ouvir a própria intuição e as mensagens do seu reino interior ficou para trás, com prejuízos drásticos para o seu equilíbrio físico - psíquico – espiritual” (sic).
Não é por acaso que na tradução da História Natural de Plínio aparece: «A mão de uma mulher com a menstruação transforma o vinho em vinagre, seca as colheitas, mata as sementes, murcha os jardins, faz cair a fruta das árvores, escurece os espelhos, oxida o ferro e o latão …, mata as abelhas, tira o brilho ao marfim e enlouquece os cães que lambem o sangue da menstruação…». Ainda hoje, nos países do sul da  Europa, como Portugal, se continua a acreditar que uma mulher menstruada azeda a cerveja se entrar numa cervejaria, estraga os bolos que estiverem a ser confeccionados, desanda a maionese ou estraga a carne dos enchidos quando estão a ser feitos. A mãe de uma amiga minha, de Sintra, não permitia que alguém menstruado fizesse a maionese – saia sempre mal, era um desperdício de ingredientes! A minha avó, quando matava e enchia as carnes, não deixava entrar ninguém nesse quarto, especialmente se fosse mulher, sem saber se “estava impura ou não”. Só depois de ser dito que se estava “pura” é que os olhares das outras mulheres ajudantes, que tratavam da carne, se acalmavam e se podia entrar. 

Maria Luís Koen


impasse




Telmo Rocha


Estagnou e não sabe porquê.
Falha alguma coisa
 – a intimidade que não existe.


Não é não gostar, não querer 
- é o não poder.



Entristeceu e sabe porquê.
                                                                                                              - é o cansaço, a espera contínua,
                                                                                                                                 o coração a morrer.



                                             Não sabe do que é feito das ramagens,
Não sabe.



quarta-feira, 21 de maio de 2014

Subo vezes sem número as escadas


13


Jacek Yerka


Subo vezes sem número as escadas onde

te imagino e, no topo sem fim, arrisco-me no vácuo.

Conheço histórias de fadas que são terrestres

e de príncipes encantados em carros desportivos

ou messias que não conhecem Cristo.

Mas tu estás lá, reconheço os passos no cheiro

que quero tocar. Quando regresso às portas conhecidas

e às janelas sem postigo, nunca desço.


Maria Luis Koen





já chega




Nico Vrielink



já chega de tanto desassossego