sábado, 10 de outubro de 2015

UM


tigran tsitoghdzyan


   Não dorme com o ruído da porta, do vento, do cão a ladrar , o gato do vizinho ou a televisão do segundo esquerdo.
   Não dorme porque lhe encheu as malas com roupa amarrotada de raiva, de irritação, de mágoa ou ira. Não são ciúmes, não. Nem é uma dor intensa. É um sopro que lhe revolve o pensamento e o atira pelo vão das escadas. Toma que lá vai a mala, as roupas e o perfume barato. Vai a barba por fazer e os lençóis com cheiro a alfazema, como ele gosta.
   Não dorme porque o engano a esmaga, fecha os olhos mas o sono não chega. Apenas o ruído ritmado das cores cinzentas, do fato escuro, o casacão cinzento a avisar que aquilo tudo vai ser só escuridão, mesmo que os lençois sejam brancos, que os momentos brilhem.
  Não dorme porque vê a metamorfose do amado. Vê a chuva, vê a água e a mala enlameada. O Outono foi ele que o trouxe, as escadas como folhas caídas, a mala com a roupa na penumbra . E as miúdas a olhar sem perceber o momento, o vazio dos amantes, a nudez inquieta da falta de gestos maiores ou ásperos sons.

   É por isso que não dorme, dia e noite a mesma luz.

Maria Luís Koen 


quarta-feira, 7 de outubro de 2015


13. (continuação)


Anita Nowinska

O Ruivo não fizera mais do que trair a fantasia, sentimento escondido ou pecado muito desejado de Joana. Depois de uma noite de luxúria no apartamento que ela julgara dele, nem a lua cheia salvou a falta de romantismo,  quando desbocadamente lhe escapa “é pá, hoje são os anos da minha mulher!”.
- Mas há algum homem que diga isso a uma mulher??
-Vê tu o cabrão. Traiu-me o filho da puta.
E a conversa continua, sentadas no sofá da minha sala.
- Ninguém ama só uma pessoa na vida.
 -Quem nunca traiu, mesmo em pensamento, que atire a primeira pedra. Eu traí. Tu não?
Namorado atrás de namorado, noivos atrás uns dos outros, pecadora sem limites, Joana ainda doída pela traição do Ruivo, pela indignação e humilhação de ser a outra.
-Não, nunca traí.
-Não acredito. Está provado que os humanos são traidores por natureza.
-Provado?
-Há várias teses, algumas polémicas, sobre o assunto.
- Teses!! Tens cada uma!
- Olha, o  Dr.Stephen Emlen, médico, da Universidade Cornell , refere que nove entre dez mamíferos são infiéis.
- Quem é esse?
-Um médico, já disse. Este médico também afirma que o que é raro é a existência da monogamia.
- Muito raro mesmo!!! - E ri.
- Ele diz que existem dois tipos de monogâmicos: os de carácter genético e os de carácter social.
- Isto carece de mais bebida, não achas?
- Mas queres ouvir ou não?
- Pronto, não te zangues. Conta lá o que diz o médico.
-Emlen diz que, no caso da monogamia genética, a fidelidade entre parceiros surge como uma excepção.
- Sim?

- Sim, não brinques.  Ele também diz que no caso da monogamia social,  os parceiros estão juntos com o objectivo de procriar e criar filhos. 
- Isso é tudo para desculpares a atitude do Ruivo?
-Claro que não. Só te estou a tentar dizer que a fidelidade não passa de um mito.
-Mito?
-Sim, o mito criado na sociedade de que os filhos criados por pais não separados têm uma vida melhor e mais feliz. É mito. Apenas mito.
-Com mito ou sem mito, o Ruivo traiu-me. Não lhe perdoo.
-Espero que não tenha sido esse o motivo porque arranjaste noivo logo em seguida.
- Qual motivo?
-Um motivo ao gosto de Nietzsche que dizia que na vingança e no amor a mulher é mais bárbara do que o homem.



Maria Luís Koen















sábado, 3 de outubro de 2015


Phenomenal Woman

BY MAYA ANGELOU
Pretty women wonder where my secret lies.
I’m not cute or built to suit a fashion model’s size   
But when I start to tell them,
They think I’m telling lies.
I say,
It’s in the reach of my arms,
The span of my hips,   
The stride of my step,   
The curl of my lips.   
I’m a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,   
That’s me.

I walk into a room
Just as cool as you please,   
And to a man,
The fellows stand or
Fall down on their knees.   
Then they swarm around me,
A hive of honey bees.   
I say,
It’s the fire in my eyes,   
And the flash of my teeth,   
The swing in my waist,   
And the joy in my feet.   
I’m a woman
Phenomenally.

Phenomenal woman,
That’s me.

Men themselves have wondered   
What they see in me.
They try so much
But they can’t touch
My inner mystery.
When I try to show them,   
They say they still can’t see.   
I say,
It’s in the arch of my back,   
The sun of my smile,
The ride of my breasts,
The grace of my style.
I’m a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That’s me.

Now you understand
Just why my head’s not bowed.   
I don’t shout or jump about
Or have to talk real loud.   
When you see me passing,
It ought to make you proud.
I say,
It’s in the click of my heels,   
The bend of my hair,   
the palm of my hand,   
The need for my care.   
’Cause I’m a woman
Phenomenally.
Phenomenal woman,
That’s me.



I want to feel my life while I'm in it. -- Meryl Streep


18



Doris Clare Zinkeisen




  É sempre tudo tão bem. O sol manso de manhã,
o cheiro a orvalhada, o frio a gelar as mãos, a colorir
a face. Mas logo aparece o que arrefece, enlouquece.
Instala-se o nó e a vontade de rasgar papéis, 
quilómetros de eternas letras num palmilhar 
de veios passados.
Mesmo quando desaparece, a surdez continua, 
a cegueira de todos os doces, 
a nudez de todas as esperanças.
E ficas quedo, com medo de tanta paz e
de eu te dizer que te amo.


Maria Luís Koen













A Roda  

13.


awaiting miracles
Marta  Orlowska


 As reacções são diversas. E diferentes. Uns perdoam, outros fingem que não sabem, uns deprimem, outros matam-se, outros matam e outros vingam-se:  temos o exemplo do marido inglês que leiloou a mulher na internet quando soube que tinha sido enganado;  temos a mulher que decidiu vender tudo o que era do marido e ter alguns lucros;  temos o homem que, por vingança, vendeu duzentas fotos sexy da ex-mulher no eBay quando soube que esta o tinha traído com o melhor amigo;  temos a noiva italiana que, ao descobrir através do facebook que o noivo era um porco traidor, decidiu colar cartazes com a cara do desgraçado, agradecendo ao facebook; temos a australiana que fez um leilão virtual com as cuecas da amante do marido juntamente com um invólucro vazio de um preservativo “tamanho pequeno”;  temos a mulher que teve um caso com o padre da freguesia fugindo e casando com ele e outra que começou a coleccionar amantes secretos. Também há outro tipo de reacções: a mulher que colocou nas redes sociais “sou corno” e “tenho chifres” e a outra que enviou emails dizendo que ele tinha palitos; a mulher que se atirou da varanda, partiu a bacia mas não morreu;  o homem que atirou ácido à cara da namorada e aquele que inventou boatos pouco abonatórios sobre a mulher.
                                  Desespero
                                            Raiva e dor
                                                  Vingança.
    Traição não tem sexo
Nem nexo
                 Traição.

É disso que se trata.  As pessoas nem sempre falam, nem sempre dizem mas, muitas vezes, basta uma palavra para mostrarem o que não querem dizer. E eu finalmente apreendi a palavra que resume todas as reacções de Joana, desde a estalada na cara do Ruivo, o engenheiro, até ao rápido namoro, noivado e casamento com o Miguel, também engenheiro. As cartas reveladoras e silenciosas de Gabriela na sessão de tarot foram claras para ela e para mim. Não mentiram, não omitiram, um circulo magnético de verdade que penetrou, devagar,  em mim.
Nem todas quiseram expor-se ao mistério das cartas, ao risco de uma verdade muito escondida aparecer, à magia doída de algo que não se quer revelar, ao tesouro muito intimo que se quer esconder,  mas a Joana não podia recusar-se e, por isso, foi a primeira. No final ficou calada mas conheço bem aquele olhar e percebi, quase li, tudo o que a boca não disse.
Parvoíce minha não ter pensado que tudo advinha da traição, dura de engolir, que nos massacra todos os segundos quando aparece para nos perseguir os sonhos e a realidade também. Sonhos traídos são piores que qualquer dor. 

Maria Luís Koen




















terça-feira, 3 de fevereiro de 2015




the look of love




-sempre


17


tina cassati 



É sempre tudo tão bem. O sol manso de manhã
o cheiro a orvalhada, o frio a gelar as mãos, a colorir
a face. Mas logo aparece o que arrefece, enlouquece.
Instala-se o nó e a vontade de rasgar papéis,    ´
quilómetros de eternas letras 
num palmilhar de veios passados.
Mesmo quando desaparece, a surdez continua, a cegueira 
de todos os doces, a nudez de todas as esperanças.
E ficas quedo, com medo de tanta paz e
de eu te dizer que te amo.



Maria Luis Koen



a roda



isaac  maimon


Perante o olhar curioso de todas, à excepção de uma,  baralha e parte as cartas, com a face oculta, e coloca-as em circulo, começando pela parte de cima à direita e rodando no sentido dos ponteiros do relógio. Dispõe assim doze cartas, mais uma no centro. Depois, vira-as sequencialmente, começando pela primeira, explicando que “esta dará o ambiente global do mês”. “A segunda”, esclarece, “sobre o mês  seguinte e assim sucessivamente, até ao fim dos doze meses”. E continua: “Depois de se ter virado e interpretado os doze arcanos, vira-se a carta que se colocou no meio do círculo, da roda. Esta irá dar-nos uma ideia geral do ano ou então do número de meses, quer estejamos em Janeiro ou noutro mês, fazendo assim um resumo dos meses”. Olhando para nós: “Se um dos meses estudados, ao ser comparado com o resultado dos outros, parecer mais estranho ou difícil de interpretar”, explica, “deve-se isolar essa carta  e fazer um lançamento especial, do género 'lançamento em cruz', para saber mais sobre esse período  que não se consegue interpretar com alguma precisão”. 
Estamos atentas à explicação de Gabriela que fala no geral sobre a simbologia e o significado de cada carta do tarot, o que , para nós, leigas no assunto, é complicado e difícil, chegando rapidamente à conclusão que, aprender tudo num só dia, será uma missão impossível. Assim, sugerimos um intervalo, que chegava para a primeira lição. O que queríamos mesmo era que  Gabriela nos lesse o futuro. Roberta peremptoriamente disse que nem pensar, não acreditava em futurologia e não queria sequer experimentar. Amélia concordou de imediato, seguida de Mafalda. Achei estranho, mas tenho a certeza que foi só para disfarçar. Demais conhece a bicha o seu futuro. Restava a dona da brilhante ideia, a dona da casa e Júlia, que não se negou. Afinal não tinha nada a perder, depois de perder o marido só tinha era que ver o que o futuro lhe reservava. Não querendo ser a primeira, aguardou expectante e com muita curiosidade que chegasse a sua vez. Gabriela foi clara nas exigências, que tinha que haver algum silêncio e concentração para além da vontade de cada uma das participantes. 

Maria Luís Koen