sábado, 10 de outubro de 2015

UM


tigran tsitoghdzyan


   Não dorme com o ruído da porta, do vento, do cão a ladrar , o gato do vizinho ou a televisão do segundo esquerdo.
   Não dorme porque lhe encheu as malas com roupa amarrotada de raiva, de irritação, de mágoa ou ira. Não são ciúmes, não. Nem é uma dor intensa. É um sopro que lhe revolve o pensamento e o atira pelo vão das escadas. Toma que lá vai a mala, as roupas e o perfume barato. Vai a barba por fazer e os lençóis com cheiro a alfazema, como ele gosta.
   Não dorme porque o engano a esmaga, fecha os olhos mas o sono não chega. Apenas o ruído ritmado das cores cinzentas, do fato escuro, o casacão cinzento a avisar que aquilo tudo vai ser só escuridão, mesmo que os lençois sejam brancos, que os momentos brilhem.
  Não dorme porque vê a metamorfose do amado. Vê a chuva, vê a água e a mala enlameada. O Outono foi ele que o trouxe, as escadas como folhas caídas, a mala com a roupa na penumbra . E as miúdas a olhar sem perceber o momento, o vazio dos amantes, a nudez inquieta da falta de gestos maiores ou ásperos sons.

   É por isso que não dorme, dia e noite a mesma luz.

Maria Luís Koen 


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