quarta-feira, 29 de maio de 2013

A Roda

Marisa Reve

7 .
Ao ver o desejo nos olhos dele, ela pressiona-o. Vezes sem conta ela dá a entender que quer sair com ele, quer estar com ele de outra maneira. Mas a resposta não é a desejada. Andam em círculos como se seguissem um caminho, labirinto sempre o mesmo, raios opostos de uma roda sem domínio, que não pára. Roberta hoje e amanhã vai dizendo o que quer. Eu vejo. Ela diz que ele não vê ou não quer ver. Até que um dia os círculos se juntam, raios de uma teia, um choque em labaredas de beijos que não conseguem parar. Há toques e corpos que se fundem em ânsia. Rodam juntos uma e outra vez, esquecendo as pedras no caminho, o restolhar de conversas invejosas e maldizentes, o amor a vaguear.
-Ana, não consigo parar. Ele consome-me o corpo e a alma. Vejo-me a inventar palavras e situações só para estar com ele.
-Cuidado Roberta.
-Eu sei, sei que não posso nem devo, que as pessoas vão falar, mas também sei que ele me faz viver, renascer. E, por mais voltas que dê, é ele que eu saboreio nos sonhos de solidão.
(continua)
Maria Luís Koen



domingo, 26 de maio de 2013




"Saying nothing sometimes says the most"
Emily Dickinson




Jaroslav Kourbanov












Christina Perri




a thousand years








Marisa Reve



Armadilha

E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Rosa Lobato Faria







Aissata Pinto da Costa



Os Amigos

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia, porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.


Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"









A Roda -
Continuação

Frieda Bruck

-As bebidas são por conta da casa, senhoras.
-Aqui podemos dançar?
-Sim, senhoras.
Mas não dançamos. Um homem entra no bar e, sem cerimónia, avança em direcção ao disk-jockey, que parece ter entendido ser melhor não protestar. A música pára e a voz do homem anuncia que a cerimónia terá lugar dentro de cinco minutos. O barman deixa uma garrafa de champanhe em cada mesa e o número de copos correspondente ao número de pessoas que aí se encontram. Olhamos umas para as outras sem perceber a razão da festa, apenas Joana sorri parecendo entender tudo ou esconder algo. O homem que entrou no bar volta a anunciar ao microfone que a cerimónia se vai realizar e que as damas de honor se podem dirigir ao palco. Diz estas palavras olhando para nós, enquanto o escocês aparece com um lindo bouquet de rosas cor dos sapatos de Joana. Só nessa altura entendo o que se vai passar, mas nem tempo tenho para dizer algo, uma vez que somos obrigadas a ir até à espécie de palco, com um sorriso nos lábios, enquanto Miguel de olhos verdes aguarda que Joana se lhe junte. Ainda não estou em mim com tamanha surpresa! Os olhos de Joana brilham de felicidade, enquanto os amigos mais chegados de Miguel continuam a chegar. Agora que olho com mais atenção, reparo que o escocês está vestido a rigor, que as mesas do bar têm todas uma pequena jarra com um bouquet de flores brancas e vermelhas e que a clientela é, afinal, seleccionada.
Joana, a louca, acaba de me surpreender.

Maria Luís Koen

quinta-feira, 23 de maio de 2013



leonard cohen


But I'm always alone.
And my heart is like ice.
And it's crowded and cold
in my secret life




Pétalas


João Alfaro

8.

Havia vento que lhe saía da boca. Às vezes ventania, às vezes brisa, outras apenas um bafo quente de espanto, de alegria, de nada, de tudo.
Quando o vento parava, as palavras não saíam, ouviam-se os cães a latir e os silêncios passavam por entre raios de sol, assim, discretos, sem deixar que os outros sentissem que a garganta estava seca como a areia no deserto.
Outras vezes parecia que a tempestade chegara sem avisar, rugidos secos e uivos de cortar o coração.
Mas só quando o vento lhe saía da boca é que Adriana se sentia livre de dizer, de falar, de tentar sair do vaso e então espalhar a brisa pela noite demasiado fria, pelos tardes demasiado secas, até as manhãs chegarem e ela as sentir suas.
Havia coisas terríveis que ela sentia, havia sentimentos feios que escondia, coisas que não queria dizer, que queria muito ocultar, ódios e invejas sem cor e, por isso, ela temia a tempestade, que aparecia sem avisar, de rompante, seca, barulhenta, destruidora.
E Adriana arrependia-se de dizer aquelas coisas todas sem nada ocultar. Até parecia que os dentes escureciam e a boca a mexer sem parar, as palavras a saírem numa corrente molhada. Fecha a janela, fecha a janela, há que parar a tempestade, deixa a brisa voltar, dizia a si própria, no medo de não conseguir e de se afogar. Vinha então a calma das palavras doces, as pétalas suaves, os cheiros que aparecem sempre depois da tempestade.  Adriana ficava feliz.
Às vezes adormecia num torpor sem memória, outras vezes nem a brisa aparecia.  Apenas via o silêncio azul e então, sentia vontade de chorar, uma mágoa que a atravessava e ela saía para a rua, para cheirar, para afogar o espanto doentio, à procura de sinais, de rostos, de olhos , de uma janela aberta para poder entrar. À espera que o vento, de novo, lhe saísse da boca.
De novo ventania,
brisa,
tempestade
e depois silêncio
e acalmia.
Era assim a Adriana.

Maria Luís Koen




quarta-feira, 22 de maio de 2013





Megan Gibben



... Deveria chamar-te claridade
pelo modo espontâneo
Franco e aberto
Com que encheste de cor meu mundo escuro...

Vinicius de Moraes



terça-feira, 21 de maio de 2013



Carolina Beatriz Ângelo



Em 1911 a médica Carolina Ângelo depositou o seu voto nas urnas para as eleições da Assembleia Constituinte.
Nessa altura só os cidadãos portugueses com idade superior a 21 anos , que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família, podiam votar.
Carolina Ângelo , na altura viúva e mãe, invocou isso mesmo, conseguindo que um tribunal lhe reconhecesse o direito a votar, com base na expressão "cidadãos portugueses" (plural): homens e mulheres.
Carolina Angelo foi deste modo a primeira mulher a votar no quadro de doze países europeus.






A Roda
6- continuação

Andre Kohn

-Vamos sair um pouco. Precisamos todas de rir um bocado e beber uns copos, Ana. Vou telefonar à Roberta, à Júlia e à Amélia. Às dez e meia na minha casa ou, se preferirem às onze no bar da Rua 16.
- Bar da Rua 16??
Na verdade sinto-me cansada e seria melhor ficar no sofá e terminar a Terceira Rosa mas, por outro lado, o dia duro que tive no consultório leva-me a querer tirar da cabeça histórias e dramas quotidianos. A ideia de Joana acaba por me agradar sobremaneira. Tomo um duche rápido que me revigora e enquanto passo hidratante no corpo penso no pobre Miguel. Não sei porque me lembrei dele.
O escocês ruivo olha-nos um pouco de soslaio. E não é para menos. Somos cinco mulheres que dominam o ambiente essencialmente masculino. Coisas de Joana, a advogada feminista que gosta de provocação. Jogo perigoso.
Quando cheguei ela já lá estava. Havia escolhido a mesa central. O bar restaurante estava decorado em tons de azul cor do mar revoltoso e branco, um balcão cor de areia, comprido, a contrastar.  Quando telefonou pediu que fosse vestida de branco.
- Branco? Sabes bem que não tenho roupa dessa cor!
- Vem de branco e vem bonita.
O que me obrigou a ir à Boutique onde vou sempre tentar comprar um fato branco. Felizmente que a Berta da boutique ainda tinha dois em stock: calça e casaco que realçavam a minha figura. Berta tornou-se numa amiga de tantos anos a visitar, de tanto me aconselhar, de tanto confidenciar. Mas não parecia ela. Um olho arroxeado tornava-a diferente. De uma queda, batera no vão, uma infelicidade, um azar apenas estético – foi a resposta quando a questionei sobre o assunto. Na verdade não fiquei muito convencida, os olhos não mentem, mas estava com alguma pressa e deixei o assunto arrumado para mais tarde. “Volto depois para pagar, Berta”.
Sapatos castanhos e mala a condizer com os cabelos cor de mel, a cair a meio dos ombros e olhos sombreados , foi assim que o barman me viu entrar. Não fora o perfume favorito e o baton suave e não me teria sentido tão segura ao ser nitidamente esventrada por mil olhares até me sentar ao lado de Joana.
-Mas, porque escolheste este bar? Parece que só vejo homens.
-Ó Ana, e isso importa? Sorriu, vestida sensualmente num vestido branco decotado. Cabelo curto, castanho escuro avermelhado, com madeixas, era aquela Joana enigmática e felina que os homens tanto queriam e temiam.
Entretanto chega Roberta, fato saia e casaco branco, lenço de seda preto e branco, cabelos negros compridos, olhos escuros de pantera, que sorri para nós, de imediato acenando para Júlia, que espera por Amélia. Júlia, olhos azuis a condizer com a bijuteria, a blusa branca com decote e a saia branca e justa a cobrir as botas brancas e, por fim, Amélia, cabelo louro escuro, olhos verdes, sorriso franco a condizer com a saia plissada e a blusa arrendada, brancas. Rimos as cinco porque nos achamos bonitas e a ideia da Joana de irmos as cinco de branco foi seguida à risca, formando um conjunto agradável ao olhar e que transmitia alegria e boa disposição. Nestas alturas sentia-me sempre feliz, como se a carga do luto se desvanecesse e secretamente me sentisse de novo viva e com vontade de mais. Uma paz que chegava devagarinho, subia pelo corpo até ao coração, um sol que despontava de mansinho.
O barman tenta, ao que parece sem grande sucesso, responder às múltiplas solicitações de alguns clientes e, talvez já irritado, decide oferecer-nos uma bebida no intuito de evitar a curiosidade alheia.
Mas nós também estamos curiosas. Muito curiosas mesmo. Queremos saber a razão da estalada no Ruivo, da cor branca, daquele bar e se o noivado com o Miguel continua.
                                   É jogo?


(continua)
Maria Luis Koen

domingo, 19 de maio de 2013












unbreak my heart










VIII

Eis-me sem explicações
crucificada em amor:
a boca o fruto e o sabor.

in "O livro dos Amantes"








A Roda
1º Parte - 6

Linzi Louise

6.
 JOANA
O bar restaurante  toca música dos anos sessenta, que convida a uma certa melancolia. Uma nuvem de fumo perfura o ar mas ninguém parece notar. Olhos que parecem todos iguais, não há diferença, não há distinção nas luzes que nos tornam um pouco sobrenaturais. Os sons das palavras são abafados pela música e apenas nos apercebemos do início ou do fim das mesmas, os lábios a mexerem em conversas de mudos. O barman ruivo, talvez de origem escocesa não sei, parece vindo de um outro tempo, o do barba-azul. Tenho sede. Traz-nos as bebidas e quase imagino serem portadoras de uma qualquer potencialidade mágica. Sede do que não tenho, sede da loucura que elas pensam que eu não conheço, sede do intenso que provoca a cegueira. Somos cinco: umas com sede do que já viveram, outras com sede do que sentem que lhes faz falta. Mulheres completamente diferentes na personalidade, no vestir, na profissão. Mulheres incomuns e tão comuns aos olhos dos outros. Tão belas ou tão chique, tão misteriosas ou tão claras. Somos nós, eu sei que somos nós mesmas quando estamos juntas, quando gostamos de com -ou- desconversar, com ou sem domínio,  de rir ao som da música e de estar , aqui ou ali, mas estar.  Uma grande amizade torna-nos cúmplices, apesar das nossas divergências e diferenças. E essa amizade torna-nos mais fortes e poderosas, quase um clã feminino.
Desta vez foi Joana quem telefonou.
(continua)
Maria Luís Koen


quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pétalas
estória 7


João Alfaro

7.
Pensou dizer-lhe tudo, entrar no jogo, sempre e só a verdade: boa ou má, aquilo que sentia sobre tudo e todas as coisas. Foi assim o combinado.
No início não se apercebeu que um jogo dessas características seria perigoso.  Foi jogando, 
foi dizendo, 
foi mostrando, sem pudor, todos os trunfos que tinha no baralho: 
a alma nua, os gostos e desejos, as dores e sofrimentos, as paixões e ódios. Tudo ela lhe mostrou. 
E ele bebia sofregamente o que Margarida lhe dava de presente. Sempre sequioso de mais informação, 
de mais emoção.
Foi um despudor o que entre ambos aconteceu – um ardor, um crescendo desejoso de mais, cada vez mais. Um desvario descontrolado,  em que cada um bebia o outro sem se tocarem, sem se verem, sem se conhecerem realmente. Falavam do mais fundo deles próprios, daquilo que aos outros calavam.
Disseram tudo, não silenciaram nada, até o jogo se tornar bem perigoso. Até as suas vidas privadas se tornarem lúgubres, escuras, intoleráveis.
Margarida percebeu que a vida real não tinha já sentido, que queria aquele jogo. Era o seu alimento, a droga de que precisava para escapar ao desamor. Mas o crescendo do jogo parou. Havia que dar um outro passo, subir mais um degrau, fazer uma ultima jogada. 
O degrau era alto, havia que dar um grande passo, esticar bem a perna para não cair. E a subida desse degrau foi sendo adiada para logo, 
para amanhã, 
para outro dia, 
semana, 
mês. 
Por fim, o baralho caiu, faltavam uns minutinhos, um gesto, uma cartada e, afinal, tudo se desmoronou.
Foi uma dor tão funda que Margarida ainda hoje não recuperou.
Perdeu tudo.
Perdeu o jogo e a vida real.
Perdeu-se.
A vida não espera e ela continua lutando, mas já sente –  
sente que  não é capaz de se desnudar, de abrir novamente a janela para a brisa entrar.

Maria Luís Koen




.

Linda Girassol



SEM TI 

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos, sem luas.
Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.


EUGÉNIO DE ANDRADE




quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Roda
1ª parte 5.


Marisa Reve

5.
Há uma química inequívoca entre os dois.
Ela deseja ser a capa que ele amacia, o tapete onde se estende. Quer sentir o cheiro e as mãos. O corpo a arder, é isso que deseja. Ele também. Percebe-se no olhar, na boca, nos gestos. As palavras que não diz, ou diz de outra forma.
E este quero não quero, vejo não vejo, sinto não sinto, continua.
Hoje conversam, amanhã vêm-se na normalidade da casa dos amigos ou conhecidos. No meio de risos e bebidas e algumas descobertas, ambos sentem o íman que os atrai.
Ele sente mas não avança, ela sente mas não diz. E assim caminham nos meses sem se tocarem.
- Ai Ana, nunca senti um desejo assim, que me consome nos dias e nas noites, todas as horas e todos os minutos.
- É amor, Roberta?
- É loucura. A loucura de querer saborear aquele mel.
Invejo-a. Também quero sentir como Roberta – com todas as emoções.
E a pergunta volta-me à memória:     
                                           És feliz, Ana?
Eu não sei se sou feliz ou se a felicidade existe. Vivo momentos de felicidade, como vivo obscuras raivas e profundas tristezas.
- Vou fazer tudo para estar com ele. Sim, Ana, eu sei que sou casada mas aqueles lábios não me saem da cabeça. De noite e de dia, o mesmo pensamento teima em perseguir-me. Chega a ser desumano, compreendes?
Olhamo-nos como sempre em frente ao mar. Ali há sempre vento e é sempre Maio.
- Não sei que diga nem se compreendo: uma paixão assim nunca foi sentida por mim. É demasiado avassaladora para a minha  pacatez sentimental.
Minto, minto, minto. Tenho vergonha de tanta mentira, deste engano piedoso, deste suicídio lento que me acomete. Tenho vergonha desta descontracção, deste choro escondido e lento, desta falta de coragem, deste disfarce inventado. Das palavras sem cor que pronuncio, acumuladas em anos a viver numa caixa cheia de recriminações, de dores doentias, de atrofias tortuosas, estranhamente falsas. Sempre tive medo de sentimentos abismais, de me prender demasiado, de me expor. A paixão aterroriza-me mas também me leva a invejar e a querer experimentar ondas de loucura sem medos, sem feridas de morte, sem arpões cobertos de sangue, sem choros sentidos, sem beijos encantados. Justifico-me com o estou mais habituada a ouvir, muito pouco a criticar. A escuridão dos olhos de Roberta, no entanto, diz-me tudo: agora não vejo dor na sua palidez, mas muito ardor.
(Continua)
Maria Luís Koen




palavras para quê?





6

Marisa Reve


É tão difícil dizeres que me amas?
Descerra esses teus desenhados lábios
e diz:  amo-te!
Amo-te tanto que não sei
Tenho medo deste amor
Desta força interior de maré
Deste olhar coberto em flores de todos
os campos
Amo-te de todas as maneiras e gestos
De todos os cansaços  -  açucenas no lago
Amo-te.
- e ainda espero essas palavras.

Maria Luís Koen



terça-feira, 14 de maio de 2013





Jan Garbarek-     In Praise of Dreams








A Roda
Parte 1
4. Ana - continuação


Anyes Galleani

4. (continuação)
Quando estudei  Carl  Jung na faculdade, aprendi que este considerava a intuição uma actividade psíquica característica dos seres humanos.  Para ele, a intuição é um factor chave para podermos compreender a mente dos seres humanos. Não só a intuição mas também outros factores como  a sensação e o sentimento. Para entender a mente de um ser humano há que considerar todos estes aspectos. Na altura li o que pude e consegui sobre este tema mas agradava-me saber que Jung dizia que a intuição acontecia não a partir do nosso consciente mas sim do inconsciente, e  era um factor fundamental para a construção da nossa personalidade . Por isso, deixei de estranhar e nem me assusto já ou fico perplexa quando surge em mim, numa qualquer ocasião e a propósito de nada, uma sensação rápida e inexplicável, uma intuição, algo que me acontece sem um particular esforço ou premeditação. A cena no restaurante não me sai da cabeça e, apesar deste dom que julgo ter, não consigo perceber, intuir ou sequer antever, razões para o ocorrido. Ainda me levanto, já são duas da manhã, aqueço leite no micro-ondas, junto um pouco de chocolate, bebo devagar enquanto oiço o relógio pendurado na parede da cozinha. Lembra-me outros relógios, outras horas passadas em tormenta, horas que nunca mais passam, minutos doridos de espera, incansavelmente lentos, pelo segundo em que tudo acaba. Vou até à sala, abro as janelas largas da varanda, mas o lago escuro não me acalma, não me aquieta. É aquela desorientação a que não me habituo nunca, aquele estar sem saber como, aquele não se sabe bem o quê que não está bem, aquela dor que não o é mas que aflige, contínua e surda. Entro de novo, volto a ligar a televisão mas nada me prende a atenção. Arrumo o que vejo fora do sítio, como que alucinada, em gestos automáticos do tudo para preencher. São os olhos vazios dele que vejo, o silêncio que se interpôs no caminho, as emoções que não se mostram, a pele fria de tanto gelo, cera que ainda sinto. Vejo as palavras amargas e tristes a saírem da sua boca, que eu já sabia há muito, os gestos que não se fizeram, os comprimidos. A ventoinha  cor de metal gira, finos aros juntos em encruzilhadas quase perfeitas, que formam teias de vento. Aquela falta de algo que me agonia, aquele silêncio de que não gosto, que me incomoda no vazio da sala grande. O cigarro nas mãos trementes dele, já quase no outro lado da vida, preso num fio invisível e cinzento. A morte pode ser imperfeita.
Adormeço com a cabeça num turbilhão.
(continua)
Maria Luís Koen