quinta-feira, 9 de maio de 2013

A Roda - Parte 1
3.Continuação



Irina Karkabi

Joana estaciona o carro e às oito em ponto entramos no restaurante. Reparo que o olhar dela brilha e que, disfarçadamente, procura alguém que não está. Júlia acena da mesa onde se encontra sentada. Não parece ter cinquenta anos. Os olhos, hoje azuis escuros, condizem com o conjunto turquesa e sorri. Escolhemos vinho da Herdade do Esporão e carne grelhada. A conversa caminha e salta por temas diversos, uns mais, outros menos fúteis, desde a actualidade política, a casos ligados à profissão, passando pelo apartamento que Júlia comprou depois da separação, do tempo que levou a adaptar-se à nova situação de divorciada, à falta de alguém com quem conversar e partilhar, da solidão, do sofrimento calado, dos medos que a assolaram, do frio nas costas quando se deitava do mesmo lado da cama, nunca ao meio ou do lado onde ele dormia, das reacções diferentes dos filhos e como conseguiu que estes passassem pelo divórcio de um modo o mais pacífico possível, do tempo que demorou a recompor-se do golpe, de como se colou à nova vida de solteira, terminando no assunto principal: o casamento de Joana. Afinal a madrinha é a Júlia e há certos pormenores que elas gostam e querem discutir. Na verdade, nem sei porque vim também. Teria ficado melhor em casa mas, por outro lado, quando estamos juntas estamos bem, sentimo-nos mais fortes, mais apoiadas, mais seguras,  e acabamos por nos habituar às singularidades e diferenças umas das outras. São estas que nos aproximam. A conversa aborrece-me um pouco e acabo por divagar, durante segundos apenas pois Júlia não resiste:
- Por favor Joana, casa com separação de bens. É o melhor que tens a fazer. Repara no que aconteceu comigo. Ele, com as suas míseras traições, levou-me metade de tudo o que era meu.
- Não significa que aconteça o mesmo com a Joana, digo, ou que os homens sejam todos iguais.
Mentira descarada, palavras falaciosas, nó que se atravessa na garganta. Não há psicanálise que cure esta vontade de batalhar inutilmente contra a maré, de iluminar as ruas escuras. O culpado é ele, por me sentir sempre assim, por não ser capaz de parar, por não passar duas horas por dia no ginásio, por não conseguir começar uma relação, que acaba sem ter começado. O medo de ficar exausta e cega, de não ver os sinais, da cabeça a ferver, das notícias tristes.
- Não sejas ingénua, Ana. Acorda para a realidade. Este é um mundo de homens, feito por homens, para os homens. As mulheres, algumas, começam agora a despertar. E a realidade é que os homens têm no sangue o gene da traição. Mais tarde ou mais cedo, ela acontece.
E insiste.  
- Joana, vais casar-te, portanto prepara-te para te sentires enganada e traída.
- Não digas isso, Júlia. Nem todos os casos são como o teu, digo.
Mas são. Vontade de dizer que são, mas não digo. São como o dela e como o das outras. Vontade de destruir algo, mas não faço. Vontade de requintadamente fazer mal, querer que chorem, que amaldiçoem o dia, que saibam que é tempo perdido. Eles vão, partem de uma maneira ou outra, partem sempre, ficam as culpas intermináveis, as memórias doces, doentias, as flores brancas nas campas. …

(continua)
Maria Luís Koen

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