sábado, 11 de maio de 2013

Pétalas

Leonid Afremov
6.
Sara era feia.
Tão feia que é difícil descrever.
Os olhos estavam sempre encovados, rodeados de olheiras escuras, tinha os dentes tortos na boca grande, as mamas descaídas apesar dos vinte anos, o cabelo desgraçadamente escorrido e espigado. Depois, era alta e magra mas não era elegante e sim desengonçada. Uma calamidade em termos de beleza, a que era difícil fugir ou deixar de olhar.
Era tão feia que as pessoas paravam, não conseguiam deixar de a mirar, às vezes com despudor, outras vezes disfarçadamente, mas olhavam sempre, como se ser feia fosse um íman. Ela, no entanto, parecia não ver o quanto chamava a atenção, parecia não saber que era feia, parecia não ligar a nada. Não parecia sentir-se incomodada ou infeliz, frustrada ou deprimida. Era feia, pronto. O que podia fazer?
Às vezes as amigas mais chegadas diziam-lhe que devia arranjar melhor o cabelo, pintar um bocadinho os olhos e os lábios, ir ao dentista arranjar os dentes. Mas Sara fazia ouvidos de mercador e continuava a vida dela, parecia contente por ser tão feia. Já as colegas não estranhavam que ela fosse assim, depressa se habituaram aquela figura estranha, desengonçada e torta,  que parecia estar sempre a cair.
As amigas de Sara eram raparigas normais, até bastante bonitas e saudáveis. Muitas vezes, quando ela não estava presente, eram um bocadinho más nos comentários que faziam mas, no fundo,  gostavam da amiga, sentindo até um pouco de pena dela, achando que Sara nunca seria de facto feliz, nunca teria vida própria, que seria uma bela tia, a tia feia – e riam de maldade.
No dia em que houve trovoada e choveu torrencialmente, Sara apareceu no café do costume, onde se juntava com as amigas e convidou-as para uma ida até ao lago, no fim de semana. Combinaram o farnel, a hora da chegada, o ponto de encontro. Nesse dia nem estava sol. Estava encoberto e havia nuvens escuras no céu a dizerem que choveria mas elas não se importaram. Em vez do guarda sol levaram o guarda chuva, em vez do fato de banho, um impermeável, em vez do sol abrasador, um vento seco. E na hora combinada elas esperaram por Sara, que demorava.
E de repente a chuva.
Chuva e mais chuva, as pernas a ficarem molhadas, os cabelos despenteados e a feia nada. Sem saberem o que fazer esperaram mais um pouco, até que, lá bem ao longe, no meio da trovoada, um vulto finalmente aparece, a caminhar lentamente.
Já fazia frio e a Sara demorava a chegar. Elas queriam sair dali para um lugar mais seco e mais quente, aborrecidas com o atraso da Sara feia, desengonçada, estúpida, atrasada. Só lhe saiam da boca nomes feios, na irritação de se verem encharcadas.
E Sara veio, o vulto cada vez mais perto, cada vez mais nítido. Sara trazia companhia, não vinha sozinha. Um braço forte aconchegava-lhe o corpo desengonçado. Um braço que pertencia a um corpo grande e forte, que caminhava com desenvoltura. Eram dois vultos num só, onde sobressaia um pescoço largo que amparava uma cabeça cheia de cabelos pretos, onde brilhavam uns olhos esverdeados cheios de amor por Sara. Era  um homem tão belo quanto  Sara era feia e isso deixou-lhes as pernas roxas, os olhos abertos, as bocas imóveis de espanto.
Chovia sem parar.
A chuva parecia lavar a Sara feia
 – que estava bonita, sim,  estava bonita.

Maria Luís Koen


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