terça-feira, 23 de abril de 2019

SEIS de(s)atino



SEIS

Julia Hamilton


De súbito o claro fica escuro, fiquei parada sem avançar ou recuar. Parada no tempo, parada na vida, na vontade,  sem conseguir seguir em frente. E era algo que precisava muito fazer: não ficar ali, procurar o depois. E há sempre um depois -  depois da chuva parar, depois do vento abrandar, depois da porta se entreabrir, depois dos medos voarem , depois das más lembranças se desvanecerem. Mas é  difícil, nem sempre conseguimos amenizar os estragos , os cantos escuros da nossa mente, o amargo de boca que aparece quando não queremos. Então, parada ali, na estrada, parecia que a mente me obrigava a voltar atrás no tempo. Conduzi sem ver o trânsito, como um autómato, e os factos passados ali estavam, nem sempre por ordem cronológica, nem sempre da maneira que eu queria, nem sempre exactamente como tinham acontecido, numa onda que ia crescendo, crescendo, crescendo. Às vezes os factos passados ainda eram presente e, por isso, essa já gigante onda parecia não ter fim. E depois, repentinamente, algo pareceu acontecer, como uma buzinadela, um peão que se atravessou na passadeira ou uma travagem busca e tudo se desvaneceu, tudo se tornou  num novelo imaginário de lembranças pouco nítidas, que agora pareciam sem valor.
Muitas vezes assim, vemos o que não queremos e, num qualquer movimento, vagamente absurdo ou não, num dia especial ou não, aquela lembrança desaparece, aquelas nuvens escuras já não estão ali, aquela triste irritação já não é nada disso. Ficam apenas imagens sem dor.

Maria Luís Koen



segunda-feira, 15 de abril de 2019

Des(a)tino - CINCO

CINCO

Henry Moore


O cheiro do mar, o cheiro da chuva, os pés enrolados na manta, a música baixinho. Era sempre tão bom estar ali nesses dias ainda sem muito frio. O Inverno era mais agreste mas não me importava de correr com o guarda chuva aberto, rápida, com o casaco bem apertado em direcção à pastelaria, para aí me sentar, molhada, cansada, mas feliz. Geralmente nesses dias chovia sem parar, as pessoas ao lado a protestar, que não havia taxi, que não podiam sair. Fazia tanto frio! A humidade do mar e da chuva colava-se à roupa, as vozes sussurradas de café e eu sem querer saber. Nesses dias gostava da chuva, do frio, do nariz roxo, da correria nas poças de agua a caminho de casa, as calças e os pés molhados, as mãos geladas apesar das luvas. Às vezes ele vinha e abríamos uma garrafa de vinho, eu ainda cansada da correria à chuva, esfomeada, sentava-me no quente e seco da lareira e era um bocadinho eu. Outras vezes não lhe abria a porta, ficava parada no tempo ou algures num devaneio, sem conseguir sair daquela espécie de poça de lama. Ficava parada  em frente a um muro cinzento que me impedia de avançar. Trovejava muitas vezes, fazia um esforço grande para afugentar o torpor, inventava um sorriso e, sem pressa, corria em direcção a ele, outra vez, abrindo a porta no meio da chuva, porque era esse o caminho certo para chegar inteira ao destino.



Maria Luís Koen


domingo, 14 de abril de 2019

Des(a)tino- Quatro




QUATRO



Maria Magdalena Oosthuizen


Disseste que estava frágil nos seus muitos anos, que o corpo não obedecia. 
Quando a vi, a sombra do candeeiro tapou os olhos já vazios, o descontrolo das mãos. Sim, houve um silencio inicial, aquele momento em que acendeste um cigarro para disfarçar o sentimento. Ligaste a luz do tecto para que a nitidez crua das emoções não se pudesse esconder na sombra do mesmo candeeiro. 
Veio a conversa conveniente de quem nada diz, nada quer dizer - a conversa à volta do nada até começar a ser tudo. Há uma distancia física que se impõe, ao mesmo tempo que uma transmutação parece surgir vinda de outra dimensão, tudo parece ficar dito nos silêncios. Mas elas surgem, as palavras, envoltas numa qualquer luz mágica. Surgem temerosas e sossegadas,  a dizer que o futuro parece sempre incerto. E vemos a certeza, pouco inocente, que é hora de mergulhar na verdade encantada, com roupas brancas cintilantes.
Apagas o candeeiro e ela parte.

Maria Luís Koen


sábado, 13 de abril de 2019



TRÊS


Petru Botezatu


Ele é engraçado. Verdade! Diria até espantoso mas, afinal, mostrou-se mera fachada feita de mármore branco, daquele bonito e macio que vemos no cemitério. Raramente se desesperava e eu admirava isso, a dinâmica que impunha a si próprio, mostrando que era bom viver, espalhando um ilusório brilho imenso. De repente, digo-te que ficou lamento. 
Eu vi como o vento soprou e apagou toda aquela chama, eu vi como o brilho se transformou em cinza, eu vi que a luz ficou fosca. Aquilo que parecia ser uma coisa boa, desapareceu, esfriou, quebrou. Compreendes? 
Não é amargura, não é falta de entendimento, não  é agressividade. É despertar e perceber que o tempo mostrou que a verdade era uma grande mentira. 
Clarividência!!
Fiquei farta de o ouvir. 
Como quando fomos àquele espectáculo, lembras-te? Aí, fiquei farta de ouvir estereótipos de desgraças alheias, de palmas forçadas de quem fingiu que percebeu todas as palavras declamadas. Confesso-te, suspirei de alívio, porque tudo tinha chegado ao fim – todas as luzes, todos os lamentos, todos os passos estudados. Pude sair depressa e respirar o ar gélido, pude voltar ao carro e chegar ao aconchego da casa, quente.
Farta de ouvir a lengalenga dele.
Farta de ouvir a lengalenga do suicídio daquela, da pobreza do outro, do choro da prima, da gargalhada ignorante dos outros que nada entendem mas falam de tudo. 
Ainda bem que cheguei rápido, ainda bem que a casa estava quente, ainda bem que liguei a TV sem o som, ainda bem que o telefone não tocou e que ele não ligou.


Maria Luís Koen 

Desatinos - Dois



DOIS

Gabriella Cleuren

Cheguei a casa e pensei que talvez a faca fosse demasiado afiada e, por isso, cortei o dedo. Congestionada com pensamentos vazios, esqueci-me que objectos como aquele podem magoar e que as coisas ausentes se tornam muitas vezes presentes. Sento-me e percebo, cansada, que está tudo errado, mesmo o que parece certo. Dói-me o dedo da faca afiada, as malvas parecem-me da cor do sangue que tenho na mão e suspiro porque sei que espero o que não vem. Ah, às vezes as esperas magoam, há algumas que são eternas e acabamos em caminhos estranhos. Tenho um amigo que diz: desde que os sonhos sejam belos, tudo passa. 
Os sonhos são outra vida que alimenta todas as possibilidades, outras fotografias. E assim sucedem os presságios e vamos amanhecendo.
Perguntei-te se vinhas jantar, reguei as flores, rasguei os papéis acumulados nas gavetas, preparei as maçãs para serem assadas. Já no forno, o cheiro levou-me ao passado, à quinta, percebi os risos alegres delas, o grelhado que ele preparava, as conversas amenas no meio de cigarros cheios de tempo. Fazia-se noite tarde, os ecos dos copos com bebida traziam excessos. 
“Que queres que diga?” 
Às vezes era bom estar ali, tudo calmo, tudo por começar e por terminar, tudo por dizer e por pressentir. Tu vais falar, tu vais fumar ou beber mas a luz apagada, adormecida, será a ausência insuportavelmente forte do que fica por dizer, por ouvir ou perguntar. 
Parece ontem, mas não sei quando foi. Pode até ser todos os dias em que há encontros nos feriados e passeios em que se ouvem os pássaros. 
Perguntei se vinhas jantar, preparei os sumos, a mesa com três pratos. Então apareceste. E acho que não disseste nada a noite inteira.

Maria Luís Koen