DOIS
Gabriella Cleuren
Cheguei a casa e pensei que
talvez a faca fosse demasiado afiada e, por isso, cortei o dedo. Congestionada
com pensamentos vazios, esqueci-me que objectos como aquele podem magoar e que
as coisas ausentes se tornam muitas vezes presentes. Sento-me e percebo,
cansada, que está tudo errado, mesmo o que parece certo. Dói-me o dedo da faca
afiada, as malvas parecem-me da cor do sangue que tenho na mão e suspiro porque
sei que espero o que não vem. Ah, às vezes as esperas magoam, há algumas que
são eternas e acabamos em caminhos estranhos. Tenho um amigo que diz: desde que
os sonhos sejam belos, tudo passa.
Os sonhos são outra vida que alimenta todas
as possibilidades, outras fotografias. E assim sucedem os presságios e vamos
amanhecendo.
Perguntei-te se vinhas jantar,
reguei as flores, rasguei os papéis acumulados nas gavetas, preparei as maçãs
para serem assadas. Já no forno, o cheiro levou-me ao passado, à quinta, percebi
os risos alegres delas, o grelhado que ele preparava, as conversas amenas no
meio de cigarros cheios de tempo. Fazia-se noite tarde, os ecos dos copos com bebida
traziam excessos.
“Que queres que diga?”
Às vezes era bom estar ali, tudo calmo,
tudo por começar e por terminar, tudo por dizer e por pressentir. Tu vais
falar, tu vais fumar ou beber mas a luz apagada, adormecida, será a ausência
insuportavelmente forte do que fica por dizer, por ouvir ou perguntar.
Parece
ontem, mas não sei quando foi. Pode até ser todos os dias em que há encontros nos feriados e passeios em que se ouvem os pássaros.
Perguntei se
vinhas jantar, preparei os sumos, a mesa com três pratos. Então apareceste. E
acho que não disseste nada a noite inteira.
Maria Luís Koen
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