sábado, 13 de abril de 2019

Desatinos - Dois



DOIS

Gabriella Cleuren

Cheguei a casa e pensei que talvez a faca fosse demasiado afiada e, por isso, cortei o dedo. Congestionada com pensamentos vazios, esqueci-me que objectos como aquele podem magoar e que as coisas ausentes se tornam muitas vezes presentes. Sento-me e percebo, cansada, que está tudo errado, mesmo o que parece certo. Dói-me o dedo da faca afiada, as malvas parecem-me da cor do sangue que tenho na mão e suspiro porque sei que espero o que não vem. Ah, às vezes as esperas magoam, há algumas que são eternas e acabamos em caminhos estranhos. Tenho um amigo que diz: desde que os sonhos sejam belos, tudo passa. 
Os sonhos são outra vida que alimenta todas as possibilidades, outras fotografias. E assim sucedem os presságios e vamos amanhecendo.
Perguntei-te se vinhas jantar, reguei as flores, rasguei os papéis acumulados nas gavetas, preparei as maçãs para serem assadas. Já no forno, o cheiro levou-me ao passado, à quinta, percebi os risos alegres delas, o grelhado que ele preparava, as conversas amenas no meio de cigarros cheios de tempo. Fazia-se noite tarde, os ecos dos copos com bebida traziam excessos. 
“Que queres que diga?” 
Às vezes era bom estar ali, tudo calmo, tudo por começar e por terminar, tudo por dizer e por pressentir. Tu vais falar, tu vais fumar ou beber mas a luz apagada, adormecida, será a ausência insuportavelmente forte do que fica por dizer, por ouvir ou perguntar. 
Parece ontem, mas não sei quando foi. Pode até ser todos os dias em que há encontros nos feriados e passeios em que se ouvem os pássaros. 
Perguntei se vinhas jantar, preparei os sumos, a mesa com três pratos. Então apareceste. E acho que não disseste nada a noite inteira.

Maria Luís Koen



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