quarta-feira, 31 de março de 2021

Fantasmas

 

  Vincent van Gogh


São duas da manhã e não se ouve um som, tudo está calmo e dorme. Pode ser Domingo ou Sábado ou um qualquer outro, não interessa. Imagino as pessoas deitadas, em sonos profundos. Menos eu que deambulo, sem nexo, pelos armários da cozinha, para comer qualquer coisa, para pensar nada, o que é impossível. A sala está ali mesmo em frente, posso remexer nos livros apesar de não querer lêr, posso ligar a TV e nada ver, posso sentar-me no sofá e comer um iogurte grego com bolachas e banana. Posso isso tudo porque são duas da manhã e não há barulho que me incomode.  Fico feliz com isso, mas o silêncio também pode perturbar- às vezes mais do que o barulho, porque não silencia os pensamentos, não apaga  as memórias e as preocupações que não queremos ter. É isso que irrita. O dia inteiro imersa em atividades e, depois, o pretenso descanso transforma-se num turbilhão de inseguranças e a noite torna-se maldição. É isto, não é? Tudo fica nu e a crueldade nua das coisas magoa. Por vezes, o som de um cão ou de uma gata que mia distrai-nos destas noites insensatas, em que não suportamos os fantasmas que nos confundem e não entendem nada.


Maria Luís Koen


terça-feira, 30 de março de 2021

 


                                                                  Paulo Potinari

         



Todos os dias é mais do mesmo, a mesma lenga lenga do dia a dia, a mesma rotina seca e fria, os mesmos monocórdicos pensamentos, talvez o mesmo sol, as mesmas plantas. Parece que a vida não passa, o jogo mantém-se igual e depois, afinal, há movimento porque a planta murchou, eu reguei mas não foi suficiente ou não falei com ela e não fotografei, não mimei o bastante. Não soube entender a sua língua, as fadas foram morar noutros vasos que não os meus. Por isso, os dias passam lentamente, até as emoções virarem pó e eventualmente morrerem.


Maria Luís Koen


Amor ou Teia?

 


@Palma OneShot



Chegou, tocou à campainha e pediu-me para caminhar, respirar o mar, que precisava muito. A incerteza minava -lhe a mente, o não saber o que fazer, o que responder, o que dizer. Queria muito amar a pessoa que ele era, com os seus defeitos algo exóticos, as paranóias fantásticas que tinha e que a cansavam, demasiado.  O desejo e o medo, os dois que a paralizavam, não a deixavam respirar, decidir. Não queria arrepender-se, não queria ferir e ferir-se,  também não queria esta amargura triste de nada fazer. Era como cair num poço ou quase cair, sentia isso mesmo, a cabeça à roda, tonta de tanto pensar e cada vez mais emaranhada nas suas próprias angústias. Noites sem dormir, a ver o poço no fundo e as nuvens no alto. Acordar, beber leite quente para tentar dormir. Digo que sim? Mas ele é louco. Esgota-me sempre, todos os dias, com o seu egoísmo indecente, a sua fome individualista que me prende. Sinto-me presa, presa, não vês? Luto pela liberdade mas quero estar na prisão. Sinto-me morrer se o aceitar, estou já morta se não o fizer. Diz-me, isto é o quê? Amor ou teia?


Maria Luís Koen


segunda-feira, 29 de março de 2021

Tão depressa veio como foi.

 

@Palma OneShot


     Tão depressa veio como foi.

    Disse isto cem vezes sem falar, ou talvez mais, disse com o pensamento porque veio rápido sim,  mas foi tão depressa que não deixou rasto profundo ou sentimento que valesse a pena guardar cá dentro. Um foguete, algo assim de sopetão, como uma imagem que surge no canto do olho quando caminhamos no campo ou quando, sentados no sofá da sala, olhamos sem ver para a televisão. Uma bola, gigante. Ainda assim, fui conferir se a presença dele valeu a pena, se deixou saudade, algo que faça falta. Posso dizer que sim, que deixou silêncios e fragmentos sem conexão, depois de dois ou três almoços. E posso dizer que não, que falta realmente não faz mas fica sempre um vazio de não sei o quê, talvez do nada ou do vago, que se esvazia rápido. Uma possibilidade fragmentada  ou algo que poderia fazer sentido se o magnetismo fosse outro, que suavemente puxasse ou obssessivamente matasse.

     Talvez por isso depressa foi, por redondas travessas, no meio da poeira de um dia seco, a fumar pensando que ninguém  via o rasto da sua presença breve,  ausência.


Maria Luís Koen


Primavera

   

Carmen Guedez

    Todas as flores do campo, 

todos os cheiros,

todas as cores que o vento empurra.

Toda a maresia, areia dourada

Toda a lua cheia

Que abraça e aperta

Um nó que atravessa.

Não é dor no peito, não é tristeza

É celebração que não se aguenta.

Dizem que é o aroma anestesiante, 

potente

Dos maios e damas da noite

Ou a cor suave do amor perfeito

Amarelo estasiante.

Há quem morra hoje

E a Primavera (re)nasça 

amanhã.


Maria Luís Koen