com ou sem nexo


1.

@Palma OneShot


      Tão depressa veio como foi.

     Disse isto cem vezes sem falar, ou talvez mais, disse com o pensamento porque veio rápido sim,  mas foi tão depressa que não deixou rasto profundo ou sentimento que valesse a pena guardar cá dentro. Um foguete, algo assim de sopetão, como uma imagem que surge no canto do olho quando caminhamos no campo ou quando, sentados no sofá da sala, olhamos sem ver para a televisão. Uma bola, gigante. Ainda assim, fui conferir se a presença dele valeu a pena, se deixou saudade, algo que faça falta. Posso dizer que sim, que deixou silêncios e fragmentos sem conexão, depois de dois ou três almoços. E posso dizer que não, que falta realmente não faz mas fica sempre um vazio de não sei o quê, talvez do nada ou do vago, que se esvazia rápido. Uma possibilidade fragmentada  ou algo que poderia fazer sentido se o magnestismo fosse outro, que suavemente puxasse ou obssessivamente matasse.

     Talvez por isso depressa foi, por redondas travessas, no meio da poeira de um dia seco, a fumar pensando que ninguém  via o rasto da sua presença breve,  ausência.


Maria Luís Koen



2.  Amor ou teia?

                                                                   @Palma OneShot


Chegou, tocou à campainha e pediu-me para caminhar, respirar o mar, que precisava muito. A incerteza minava -lhe a mente, o não saber o que fazer, o que responder, o que dizer. Queria muito amar a pessoa que ele era, com os seus defeitos algo exóticos, as paranóias fantásticas que tinha e que a cansavam, demasiado.  O desejo e o medo, os dois que a paralizavam, não a deixavam respirar, decidir. Não queria arrepender-se, não queria ferir e ferir-se,  também não queria esta amargura triste de nada fazer. Era como cair num poço ou quase cair, sentia isso mesmo, a cabeça à roda, tonta de tanto pensar e cada vez mais emaranhada nas suas próprias angústias. Noites sem dormir, a ver o poço no fundo e as nuvens no alto. Acordar, beber leite quente para tentar dormir. Digo que sim? Mas ele é louco. Esgota-me sempre, todos os dias, com o seu egoísmo indecente, a sua fome individualista que me prende. Sinto-me presa, presa, não vês? Luto pela liberdade mas quero estar na prisão. Sinto-me morrer se o aceitar, estou já morta se não o fizer. Diz-me, isto é o quê? Amor ou teia?


3.

Paulo Potinari

    Todos os dias é mais do mesmo, a mesma lenga lenga do dia a dia, a mesma rotina seca e fria, os mesmos monocórdicos pensamentos, talvez o mesmo sol, as mesmas plantas. Parece que a vida não passa, o jogo mantém-se igual e depois, afinal, há movimento porque a planta murchou, eu reguei mas não foi suficiente ou não falei com ela e não fotografei, não mimei o bastante. Não soube entender a sua língua, as fadas foram morar noutros vasos que não os meus. Por isso, os dias passam lentamente, até as emoções virarem pó e eventualmente morrerem.


4

. Fantasmas

Vincent van Gogh

São duas da manhã e não se ouve um som, tudo está calmo e dorme. Pode ser Domingo ou Sábado ou um qualquer outro, não interessa. Imagino as pessoas deitadas, em sonos profundos. Menos eu que deambulo, sem nexo, pelos armários da cozinha, para comer qualquer coisa, para pensar nada, o que é impossível. A sala está ali mesmo em frente, posso remexer nos livros apesar de não querer lêr, posso ligar a TV e nada ver, posso sentar-me no sofá e comer um iogurte grego com bolachas e banana. Posso isso tudo porque são duas da manhã e não há barulho que me incomode.  Fico feliz com isso mas o silêncio também pode perturbar- às vezes mais do que o barulho, porque não silencia os pensamentos, não apaga  as memórias e as preocupações que não queremos ter. É isso que irrita. O dia inteiro imersa em atividades e, depois, o pretenso descanso transforma-se num turbilhão de inseguranças e a noite torna-se maldição. É isto, não é? Tudo fica nu e a crueldade nua das coisas magoa. Por vezes, o som de um cão ou de uma gata que mia distrai-nos destas noites insensatas, em que não suportamos os fantasmas que nos confundem e não entendem nada. 


5.

  
Tom Shropshire

Como é possível ficarmos cegos e aceitarmos tudo o que antes não queríamos? Dizemos que sim, sim e não resistimos. Deixamos em parte incerta todos os nossos sonhos e projetos, sem nos apercebermos que estamos errados, que devemos lutar, que não devemos aceitar só porque é importante para a outra pessoa. Imersa nestes pensamentos, distraio -me com o som que vem da janela da sala: chove. São pequenas pedras brancas minúsculas, que batem às vezes com força nos vidros e depois desenham pequenos ribeiros de água, que sigo com os olhos, até fazerem um pequeno lago do lado de fora. É isso. Vejo no espelho que é o vidro da janela, um percurso frio, que nos alaga e, no final, mais tarde, dizemos:

– como é possível ter aceite, como é possível não ter mudado, como é possível ter hesitado, não ter resistido?



6. Carícias

                                                               (@João Alfaro)


     Todas as tardes de sexta feira havia encontro. Ele esperava ansiosamente por ela, mas só no início. Depois tornou-se um hábito e ele, certo de que ela não faltava, já nem esperava com anseio ou desespero, nem comprava os doces que ela tanto gostava ou fazia sequer as pequenas surpresas que ela tanto adorava. Era assim e foi assim durante muito tempo. A rotina era tanta que muitas vezes não falavam, só o estar ali juntos era suficiente. Sentados, viam um filme, ou dois ou três filmes, quase a noite toda e pouco sobrava para se olharem por dentro. Outras vezes ficavam por ali, em casa, cada um entregue aos seus pensamentos, sem nada esperar um do outro, sem frustrações, medos ou acusações. Era assim. Desamparo que ambos amparavam. Não sabe o que fez alterar a situação, tentou muitas vezes relembrar qualquer detalhe diferente ou algo que tivesse despoletado a mudança, mas nada lhe ocorreu.  Ela não apareceu. Esperou a tarde toda, foi ao calendário do telemóvel verificar se era de facto sexta-feira e era, mas não ficou ansioso. Desesperadamente procurou na memória algo que ele ou ela tivessem dito mas raramente diziam algo. Pensou : talvez tivesse sido o que não foi dito. Talvez. Ou a falta de carícias.


   

7.      Outono mas parece Primavera


                                         (@Anna Silivonschik)
                                     

São seis da manhã e é Outono mas parece Primavera. O sol ainda não nasceu e a claridade passa pelas gretas da janela. O autocarro é só às oito, ainda tenho tempo para ganhar coragem e dizer-lhe, sim coragem, porque há certos assuntos que são difíceis de abordar e, por isso mesmo, não os dizemos. Mas hoje talvez consiga. Talvez consiga e não fique calado, mas tenho medo. Umas vezes falamos e o outro entende algo diferente, não o que dissemos. Parece que o som transforma as nossas palavras noutras palavras e noutros sons. Ainda assim, é melhor dizer, é melhor eu hoje falar, ganhar coragem e dizer, senão pode acontecer nunca mais ter essa conversa e ficaremos com saudades daquilo que não dissemos, das palavras que não ouvimos e, por causa disso, do que não sentimos. O autocarro é só às oito, vou levantar-me, chegar perto e, ao pequeno-almoço, falar-lhe de como gosto de sentir o fio dos seus cabelos nas minhas mãos ou do seu sorriso manso quando largamos as bicicletas junto à nossa árvore,  passeamos de mãos dadas no jardim e paramos para ver sempre o mesmo pato, colorido. Eu sei que não digo as coisas ou digo só com o pensamento e, por isso, ela não ouve mas mesmo com todos os silêncios, sabe que gosto dela quando a abraço de uma forma especial ou quando lhe toco nos fios dourados do cabelo. Os beijos que damos à sombra da nossa árvore fazem-me cantar loucamente por dentro mas sei que vai rir se o disser, ou melhor, não sei mas imagino e continuo a querer e a crer que as mãos que damos são verdadeiras, que os nossos corpos nus não são miragens e que  não quero continuar nesta incerteza que me mata.



8. Perdido

                                                                (Serena Rosenfeld)


Sinto-me perdido neste ciclo de acontecimentos que surgem rapidamente umas vezes e, muito lentamente, outras. Perdido e desgastado, cansado, às vezes triste, muitas sequioso de mais e mais. Hoje sinto um aperto no coração, mas não é sempre. É hoje que sinto, talvez por estar vivo e não morto, digo fisicamente, porque posso estar morto de outras maneiras, por exemplo de desespero, por não conseguir mudar o destino. Amanhã posso sentir o oposto, não sentir medo, nem dor, nem vazio , como a preparar-me para nascer outra vez. Por isso olho no espelho e penso que se fosse mágico podia escolher o meu destino, amanhecer com sol sempre que quisesse, enterrar a morte das coisas que gosto.

 

9.    Tormenta

(Inna Montano)


Não é uma mulher comum. Nunca foi. E ela sabe que eu sei que ela é diferente. Não mora na minha rua mas todos os dias a vejo. Da janela do meu quarto, quando a abro, eu pressinto aquele andar leve que ela tem e vejo. O amor deve ser assim, penso. Não há outra maneira. E, talvez por isso, o ódio que tenho de não a conhecer, também cresce. Amor e ódio numa só mulher. Parece loucura mas é assim que sinto. Todos os dias sou o mais doido dos doidos por ver os olhos dela em cada esquina, bocas cheias de beijos. Quando falei disto ao meu amigo, ainda riu e disse que já passara pela tormenta. É isso. Fiquei com a palavra tormenta, escrevi-a num papel que tenho no quarto para dela não me esquecer. Guardei o papel na gaveta, junto a outros tantos com outras tantas palavras e, todos os dias, uma ou mais vezes, abro a gaveta, remexo os papéis soltos e surge sempre aquele escrito com a palavra tormenta. Talvez porque é disso que me alimento. Um doido varrido atormentado é o que sou. Ainda mais porque deixei de a ver da minha janela ou de outro sítio qualquer. 

Ficou frio e tenho sede, faz-me falta o que não vivi.


10-  Café

                                                                  (jean jacques rene)


Olha, hoje encontrei-te no café e estavas triste. Tentaste disfarçar esse sentimento mas sei que é forte, conheço bem o motivo. Desfolhei o album de fotografias que me mostraste em tua casa, algumas carcomidas pelo tempo, outras mais recentes e sei como é difícil alguém não estar mais presente. Olha, o meu coração está mais perto do teu agora, do que quando tudo aconteceu. Agora oiço a mesma sinfonia, aquela que tu gostas tanto de comentar e, quando a brisa sopra quente, como hoje, os cheiros da Primavera  fazem-me esquecer o resto. Então, digo- te: sei que felizes, sempre, sempre, nunca somos, mas alguns conseguem habitar jardins encantados, levando com eles outros, em direção à luz.


    11. A fonte

                                                           (Vytautas- poska)

Chega desta constante falta. Já basta. Agora tenho que caminhar de novo, procurar outras paisagens. Não há outro remédio. Vou direto a Paris ou Londres ou outra qualquer capital onde sou um incógnito passageiro em busca de um novo caminho, não sei se de paz, mas um caminho que me ofereça beleza, que seja branco e nada sinuoso. A falta vai existir sempre. Falta sempre alguma coisa, até na felicidade. Mas vou. Sei que vai ser duro, sei que vou ter fome do que deixei e que vou sentir frio, também, ou talvez aconteça o oposto e nada disto, nada destes temores e pensamentos negativos, apareça. E, em vez deles, outras flores, que permitam desencadear um novo processo, um novo caminho e sejam a fonte, a porta, o outro lado do muro.


12. Com ou sem alento

                                                                       (Leonid Afremov)

Acordar às sete e sair para caminhar. Todos os dias, Inverno ou Verão, sempre a mesma rotina – um meio de limpar as teias confusas que baralham, varrer as ideias, às vezes tristes, sacudir as possíveis depressões. Acordo às seis. Quando chove, oiço as pingas a bater no asfalto da rua. Continuo de olhos fechados, imagino o cheiro e é alívio. Levanto-me. Vou. Caminho sem saber por onde. Passo seguido de outro passo. Encontro a Zilda. Por vezes caminhamos juntas, outras vezes cada uma segue o seu caminho, as suas motivações. Quando juntas não falamos muito. Apenas algumas palavras de alento ou cortesia. Não é isso que buscamos. Cada uma com os seus pensamentos, ela e eu, respiramos em sintonia, com ou sem alento, o ar sempre frio da manhã. A Zilda forte, a Zilda fraca, a Zilda das mil faces, a Zilda eu, todos os dias sai, mesmo com dores, alegre ou triste, sem prescindir do caminho, deste caminho, destas pedras soltas, deste ribeiro que corre, devagarinho, ao lado das mesmas árvores, as de todos os dias.


13. Não posso viver sem ti

                                                                            (Ranaking)

  Quando menos esperamos, tudo acontece.

  Sim, é isso mesmo que ouves, desculpa este telefonema sem nexo, desculpa acordar-te para dizer ninharias, mas para mim não são, são só o pretexto para ouvir a tua voz, mesmo que zangada, irada por te acordar de madrugada. Não consigo mais continuar neste jogo do sim e do não, ou do meio sim e do meio não ou outro qualquer cujo nome não sei, mas assim, assim vou continuar a ligar-te de madrugada para te ouvir zangada.

  Não quero ser precipitado e não te quero assustar com estes ímpetos noturnos, mas não posso continuar sem dormir. Ontem dormi tão pouco, talvez duas ou três horas, não sei precisar, e nas noites anteriores pouco mais. Por isso, não quero saber se ficas irada, porque agora tudo gira dentro de mim, do meu pensamento e já não tenho medo de poder ficar sozinho, ficar sem ti, vazio.

  Desculpa os telefonemas, não sei se vou conseguir não ouvir a tua voz, mesmo que irada. Não destruas isto que está prestes a acontecer, não faças isso. Vou chorar-  

-minto. Ainda me resta alguma dignidade, mesmo a implorar. Já te imagino a cair comigo numa espécie de ratoeira de angústia, individualista, onde as promessas não serão cumpridas  e, por isso, não quero ficar calado, não posso viver, não quero ficar sem ti.


14. 

Memórias


                                                                       jouke kruijer


                                  

          Não sei se vegetar é a palavra certa, mas ela vegeta em alegria. Abre a caixa escondida desde os tempos da faculdade e rejubila. Não recordava já o quanto  necessário é tudo o que lá está. Não sendo, agora que remexe nos escritos, nos postais, nas cartas e alguns recortes, nas fotos, sabe que tudo, tudo continua presente, continua dor ausente. Por isso, guarda de novo a caixa, sem dor, quase num segredo que é só dela e rejubila porque sabe que, se procurar, a dor volta, se remexer, as alegrias assomam, a saudade aperta. Prefere vegetar na calma que o dia lhe oferece, pensar nas coisas bonitas que , agora, raramente acontecem, aceitar que deu sem receber grande coisa, sei lá, aceitar saber coisas das pessoas que nem elas próprias conhecem, olhá-las e ler o que vai lá dentro, perceber que muitas vezes são más mesmo sendo boas. Isso não seria bem aceite, diria até que jamais seria perdoada, amada. É só respirar fundo e calmamente viver sem sentir nada, nada que de facto incomode, ou sentir alguma coisa, como o cheiro das rosas que estão no canteiro, vermelhas, com picos. Isso sim, interessa, pede  atenção e alegria, sem nada esperar, nada.


15. CINEMA




            Foi ao cinema, alegre, feliz como já não acontecia desde que mudou de cidade e de vida. Parecia fantástico estar ali viva, depois de quase uma ano em que desacreditou tudo o que viveu, em que, doente, deixou de agir e pensar positivo, como hoje, como agora. Bilhetes na mão, aguarda na fila como se fosse a primeira vez num cinema, numa sala escura, cheia de olhos ou contornos escuros de cabeças. Sim, olha em redor e pensa que renasceu ou recomeçou - um novo começo, o presságio de algo, finalmente bom. Não lhe interessa o murmúrio do casal ao lado, o facto de continuar com medo. Não, ela sabe que é assim, que a vida acontece em cada instante, as coisas fluem, as pessoas ficam ou seguem o seu caminho. Aguarda, no silêncio que se faz na sala, o começo de uma história em que não tem que tomar decisões, apenas fluir na paciência ou impaciência que o filme lhe vai trazer. Está feliz.

                




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