Pétalas - estórias e um monólogo




1.
Passou cinco anos num torpor adormecido até que um dia, num sonho,  ao pegar numa flor, cai uma pétala e ela acorda dentro do sonho. Acorda sem saber sair dali, sem conseguir pegar na pétala que esvoaçou, com a flor incompleta na mão, os olhos esbugalhados de surpresa, dormindo acordada dentro de si própria, a querer voar com a pétala, a querer agarrá-la para poder voltar a dormir.
E é assim todas as noites.
Todas as noites Isabel tem o mesmo sonho dentro do sono. Todas as noites a mesma falta de descanso, a mesma busca, o mesmo descontrolo. De manhã quando acorda, no entanto, a flor continua no vaso, intacta, viçosa, suave. Não parece a mesma do sonho interminável de todas as noites dos últimos cinco anos.
Isabel pensa naquilo todos os segundos durante o dia, quando trabalha e quando descansa, quando come, quando está absorta num filme e deixa de estar, porque a imagem da flor sem a pétala torna-se numa obsessão carregada de porquês, de tentativas de explicação, de buscas e interrogações. São dias cansativos, em que tudo se transforma em branco sedoso, todos em forma sinuosa e macia ao toque, todos cúmplices de um mesmo sonho – o dela.
No trabalho acham-na estranha, tipo bicho do mato, com quem é difícil estabelecer uma conexão, uma qualquer ligação, um qualquer contacto. Parece que ela nunca está ali, nunca está presente, nunca é capaz de ouvir, sempre com um olhar distante, que sim mas não, a escrever as frases ditas numa agenda ou apenas a consultar não se sabe bem o quê. Até chegar o fim do dia e ela sair, sem dizer nada ou então dizendo muito pouco, com o vaso na mão. Para chegar no outro dia, com o mesmo vaso, a mesma flor, a mesma loucura espelhada no olhar, o mesmo desconforto.
Chega à noite cansada de tanto pensar na pétala, desejosa de voltar a sonhar o mesmo sonho, de sentir o vento quente e doce a levar-lhe a pétala, a pétala a desprender-se da flor, ligeira no ar, em círculos lentos e ela a olhar, a tentar seguir-lhe o rasto, os círculos, os movimentos que só uma pétala pode ter. A tentar até conseguir dobrar assim o corpo, moldar-se assim ao movimento, ao ar, ao quente, ser pétala.
Acorda na frustração de  mais um dia, como todos os outros, em que, de vaso na mão, não é a pétala do sonho. Mas vai, segue o  caminho que conhece desde sempre, o café no mesmo sítio, o cheiro sempre o mesmo do emprego. Os papéis, a agenda, o restolhar de sons sempre iguais e inseparáveis do lugar sem fantasia.
É aí que poisa o vaso e recomeça a sonhar.

(continua)

Maria Luís Koen






Estória 2




(quadro de Marisa Reve)



2.
Sentia muito a falta de algo extremamente forte ou extremamente suave. Precisava mesmo muito de algo, mas não sabia muito bem o quê. Era perseguida por esse vazio, essa falta, esse querer tanto.  Até lhe doía o corpo, o pensamento era de agonia, os olhos palpitavam de tanto querer esse algo que não vinha. Essa espécie de sentimento que a perseguia era terrível – como se durante dez meses não houvesse sol, como se caminhasse numa estrada poeirenta que não tivesse fim. Era assim que Rita sentia. Como uma danada, aterrorizada pela falta do que tanto desejava, sem saber o quê. Por isso ninguém a entendia e ela não se fazia entender. Só dizia que lhe doía tudo, uma dor sem remédio e chorava sem saber porquê.
Enrolada na capa de lã, fazia caminhadas pelas ruas e pelos campos, perdida numa busca que parecia não ter fim. Se lhe perguntavam dizia que sim, que era aquilo que queria.  Aquilo o quê? A busca, buscar não sei o quê. Buscar a alegria, aquilo que me falta. O que te falta? Falta-me não sei o quê. Não sei, gritava. Não sei o que me falta, não sei o que falta!
Perdia-se nessa loucura, nessa tormenta de querer sem saber o quê. Sem perceber que há sempre algo que nos faz falta. É mesmo assim. Faz-nos sempre falta algo.
Um dia Rita procurou demais.
Nas nuvens quando olhou para o céu, nos campos quando mirou as searas ondulantes, no mar quando quis saborear o sal, nas memórias, nos jardins em frente à casa, nos desenhos de Dali, nos recônditos da sua sede, sem conseguir parar a busca.
Branca, pálida e perdida no desejo, deixava os dias passar, os meses, cada vez mais fraca, mais débil, na dor de nada conseguir encontrar.
Não conseguia parar, não conseguia voltar.

(continua)
Maria Luís Koen




estória 3



(obra de Marisa Reve)


3.
Vivia como uma danada, uma agitação sem controlo. Como se o mundo acabasse amanhã e não houvesse tempo para fazer tudo o que queria. Era uma correria constante, uma azáfama audaciosa e enérgica, em que o tempo para o importante não existia. Todos os dias sempre assim, todos os meses, todos os anos.
Mariana vivia um engano. Não via a Primavera, não via as flores e os cheiros. Não via os muros que começavam a cercá-la, os silêncios, as portas que não se abriam. Havia dinheiro, festas, carros e viagens, lojas e compras para fazer. Trabalho aqui e ali, reuniões para aqui e a toda a hora.  Telefonemas, jantares, dias sem princípio ou fim. Sem noites, sem descanso, sem paragens. Vivia cega de frenesim.
Um dia achou que tinha rugas.
Um dia acordou.
Um dia abriu um olho, abriu o outro olho e viu o muro e muitas portas fechadas.
Um dia  ouviu o silêncio, os reflexos do sol desmaiado, sentiu-se amarga.
Mariana caminhou na casa onde raramente estava, sentiu pela primeira vez que o chão era frio, que havia janelas fechadas, outros que eram silêncio, cheiro a mofo e a solidão. Percebeu que o que viveu era fadiga, não sabia o que estava para além do muro, não conseguia ultrapassar o muro, bater à porta que estava fechada. Mariana agora percebia a farsa. Percebia o roubo. Percebia a enorme bola vazia como se tivesse acordado de uma maldição, de um pesadelo.
Passaram horas e dias, muitos momentos frios. A vida, sentia-a muito dura. Esperava que algo mudasse, que o sol não fosse ténue, que pudesse enfim chorar, sair do poço triste e húmido.
Não morrer em vida.

(continua)

Maria Luís Koen




estória 4




Anthony Falbo

Sabia lá porque se tinha apaixonado por ele.
Tinha uma vaga ideia de o ter conhecido numa esplanada, na feira. Todos tinham bebido um pouco demais ao jantar: o vinho era quente e macio, escorregava depressa pela garganta, que parecia pedir mais, mais e mais. Depois, os olhos ficaram brilhantes e os sorrisos  fáceis de distribuir.
 Lembrava-se vagamente do homem ali sentado com outros, lembrava-se que gostara das mãos, da maneira como segurava o copo de cerveja.
Sílvia sabe que resistiu pouco, muito pouco, ao desconhecido, sabe que achou piada àquele momento em que as cadeiras chocaram e ela quase caiu. Até riu que nem uma idiota e ele também. Parecia um pouco parvo, mas ela nem reparou.
Recorda menos vagamente que riram os dois como selvagens, sem conseguirem parar, durante pelo menos quinze minutos. Lembra-se bem disso, sim. De facto, está novamente com vontade de rir, como naquela altura. Às tantas, riam os dois de nada, riam de se verem a rir, riam um do outro, riam da idiotice da situação, só riam. Riram tanto, que foi difícil parar. E quando conseguiram parar de rir, os outros com quem  estavam, ficaram idioticamente sentados a olhar para eles e isso ainda os fez recomeçar a rir, até os outros ficarem aborrecidos por estarem a fazer figuras tristes, até os outros os deixarem sozinhos na esplanada.
Sim, ficaram os dois sozinhos a rir, foram expulsos pelo empregado e, a rir, saíram dali desolados, sem conseguirem ultrapassar aquele momento fantasticamente ridículo.
Finalmente pararam. Doía-lhes a boca e ficaram a olhar um para o outro sem saber o que fazer. Afinal não se conheciam de lado nenhum e não sabiam bem porque estavam ali os dois, não sabiam como deviam reagir a uma situação como aquela. Olharam-se um pouco a medo, desamparados. Sílvia lembra-se que disse uma coisa qualquer para desanuviar o ambiente, vamos comer algodão-doce ou um disparate do género. Deram o braço e foram. Comeram algodão doce e massa frita. Parecia que se conheciam desde que nasceram. Andaram no carrossel gigante. Ouviram a música pimba contentes e só saíram da feira quando as luzes se apagaram.
Depois, Sílvia não se lembra bem do que lhe passou pela cabeça, mas há imagens, detalhes que surgem com ele a secar-lhe o cabelo com o secador, no quarto. Lembra-se dos bichos da seda, do pátio da casa com vasos cheios de flores falsas. Mas nada disso parece importante perante a paixão que ambos sentiram, uma coisa meio louca, que a fez comportar-se da maneira mais estranha desde que o conheceu.
Agora que pensa no assunto, fica precisamente na mesma. Não sabe porque se apaixonou por ele. Não sabe e pronto.

Maria Luís Koen

(continua)


estória 5


Danielle Duer


Sentia-se completamente desorientada.
Louca, desesperada.
Sem saber o que fazer.
Sem dinheiro no cartão, sem telemóvel, sem os números de telefone de ninguém, sem as moradas, sem nada.
Nada.
Sem carro ainda por cima.
Uma completa desorientação.
Foi assim que ele a deixou. A ela, parva, Francisca parva, que confiara cegamente nele. Confiara tudo: o coração, a alma, o dinheiro. Tudo. E agora não tinha nada. Nada excepto a raiva que emergia lentamente, a sobrepor-se ao desespero, a misturar-se com ele, a querer impor-se, a querer explodir, sair, abrir-lhe o peito para que ela chorasse, gritasse!
Ele saiu no carro dela uma manhã  e não voltou.
Tinha sido cruel e desonesto, totalmente horrível. E agora estava já em Setúbal, de certeza,  com a outra. Quis lá saber dela e da filha, das despesas no hotel, no que os pais diriam.
Pior que tudo é que o sol desaparecia e ela sem saber o que fazer, danada, triste, cansada.
 Cruel, falso! – gritava.
Como tinha conseguido fazer aquilo? Como? Deixá-la na praia de mãos a abanar, coração ao relento. 
Que diriam os amigos quando soubessem e a vissem desmembrada de afecto novamente?
Não queria que lamentassem esta falta de sorte ou que dissessem que o destino de Francisca era este. Este de acabar sempre abandonada, prostrada, limitada.
Queria tanto ter paz, sentir-se em paz, libertar o pensamento de toda a sujidade acumulada. Mas não conseguia. Não queria. Agora não. Agora estava de mãos vazias, de olhos vazios, de coração vazio. Agora estava imersa em falta de perdão, num lugar cheio de malmequeres brancos que não lhe diziam nada. Agora estava cheia de dor, uma dor calada e intensa que atravessava o corpo fraco, a boca inerte, as palavras que não saiam, o vazio dos olhos.
O mar, o cheiro a Verão, o barulho da água,, a filha a perguntar pelo pai, nada a fazia sair do torpor desgraçado que sentia, que subia e lhe apertava o pescoço. Esperou tanto que aquele momento não acontecesse, que não sentisse a perda, o abandono. E ali estava a cinza dos momentos que passaram juntos, o pó, o nada que sobrou.
Era já tarde quando o Miguel a encontrou sentada no hall de entrada do hotel.
A vida prega-nos muitas partidas - Francisca disse. Emprestas-me o teu telemóvel para fazer uma chamada?
E recomeçou outra vez do nada.

Maria Luís Koen



estória 6


Leonid Afremov

Sara era feia.
Tão feia que é difícil descrever.
Os olhos estavam sempre encovados, rodeados de olheiras escuras, tinha os dentes tortos na boca grande, as mamas descaídas apesar dos vinte anos, o cabelo desgraçadamente escorrido e espigado. Depois, era alta e magra mas não era elegante e sim desengonçada. Uma calamidade em termos de beleza, a que era difícil fugir ou deixar de olhar.
Era tão feia que as pessoas paravam, não conseguiam deixar de a mirar, às vezes com despudor, outras vezes disfarçadamente, mas olhavam sempre, como se ser feia fosse um íman. Ela, no entanto, parecia não ver o quanto chamava a atenção, parecia não saber que era feia, parecia não ligar a nada. Não parecia sentir-se incomodada ou infeliz, frustrada ou deprimida. Era feia, pronto. O que podia fazer?
Às vezes as amigas mais chegadas diziam-lhe que devia arranjar melhor o cabelo, pintar um bocadinho os olhos e os lábios, ir ao dentista arranjar os dentes. Mas Sara fazia ouvidos de mercador e fazia a vida dela, parecia contente por ser tão feia. Já as colegas não estranhavam que ela fosse assim, depressa se habituaram aquela figura estranha, desengonçada e torta,  que parecia estar sempre a cair.
As amigas de Sara eram raparigas normais, até bastante bonitas e saudáveis. Muitas vezes, quando ela não estava presente, eram um bocadinho más nos comentários que faziam mas, no fundo,  gostavam da amiga, sentindo até um pouco de pena dela, achando que Sara nunca seria de facto feliz, nunca teria vida própria, que seria uma bela tia, a tia feia – e riam de maldade.
No dia em que houve trovoada e choveu torrencialmente, Sara apareceu no café do costume, onde se juntava com as amigas e convidou-as para uma ida até ao lago, no fim de semana. Combinaram o farnel, a hora da chegada, o ponto de encontro. Nesse dia nem estava sol. Estava encoberto e havia nuvens escuras no céu a dizerem que choveria mas elas não se importaram. Em vez do guarda sol levaram o guarda chuva, em vez do fato de banho, um impermeável, em vez do sol abrasador, um vento seco. E na hora combinada elas esperaram por Sara, que demorava.
E de repente a chuva.
Chuva e mais chuva, as pernas a ficarem molhadas, os cabelos despenteados e a feia nada. Sem saberem o que fazer esperaram mais um pouco, até que, lá bem ao longe, no meio da trovoada, um vulto finalmente aparece, a caminhar lentamente.
Já fazia frio e a Sara demorava a chegar. Elas queriam sair dali para um lugar mais seco e mais quente, aborrecidas com o atraso da Sara feia, desengonçada, estúpida, atrasada. Só lhe saiam da boca nomes feios, na irritação de se verem encharcadas.
E Sara veio, o vulto cada vez mais perto, cada vez mais nítido. Sara trazia companhia, não vinha sozinha. Um braço forte aconchegava-lhe o corpo desengonçado. Um braço que pertencia a um corpo grande e forte, que caminhava com desenvoltura. Eram dois vultos num só, onde sobressaia um pescoço largo que amparava uma cabeça cheia de cabelos pretos, onde brilhavam uns olhos esverdeados cheios de amor por Sara. Era  um homem tão belo quanto  Sara era feia e isso deixou-lhes as pernas roxas, os olhos abertos, as bocas imóveis de espanto.
Chovia sem parar.
A chuva parecia lavar a Sara feia
 – que estava bonita, sim,  estava bonita.

Maria Luís Koen



João Alfaro


7.
Pensou dizer-lhe tudo, entrar no jogo, sempre e só a verdade: boa ou má, aquilo que sentia sobre tudo e todas as coisas. Foi assim o combinado.
No início não se apercebeu que um jogo dessas características seria perigoso.  Foi jogando, 
foi dizendo, 
foi mostrando, sem pudor, todos os trunfos que tinha no baralho: 
a alma nua, os gostos e desejos, as dores e sofrimentos, as paixões e ódios. Tudo ela lhe mostrou. 
E ele bebia sofregamente o que Margarida lhe dava de presente. Sempre sequioso de mais informação, 
de mais emoção.
Foi um despudor o que entre ambos aconteceu – um ardor, um crescendo desejoso de mais, cada vez mais. Um desvario descontrolado,  em que cada um bebia o outro sem se tocarem, sem se verem, sem se conhecerem realmente. Falavam do mais fundo deles próprios, daquilo que aos outros calavam.
Disseram tudo, não silenciaram nada, até o jogo se tornar bem perigoso. Até as suas vidas privadas se tornarem lúgubres, escuras, intoleráveis.
Margarida percebeu que a vida real não tinha já sentido, que queria aquele jogo. Era o seu alimento, a droga de que precisava para escapar ao desamor. Mas o crescendo do jogo parou. Havia que dar um outro passo, subir mais um degrau, fazer uma ultima jogada. 
O degrau era alto, havia que dar um grande passo, esticar bem a perna para não cair. E a subida desse degrau foi sendo adiada para logo, 
para amanhã, 
para outro dia, 
semana, 
mês. 
Por fim, o baralho caiu, faltavam uns minutinhos, um gesto, uma cartada e, afinal, tudo se desmoronou.
Foi uma dor tão funda que Margarida ainda hoje não recuperou.
Perdeu tudo.
Perdeu o jogo e a vida real.
Perdeu-se.
A vida não espera e ela continua lutando, mas já sente –  
sente que  não é capaz de se desnudar, de abrir novamente a janela para a brisa entrar.

Maria Luis Koen


8.

João Alfaro

Havia vento que lhe saía da boca. Às vezes ventania, às vezes brisa, outras apenas um bafo quente de espanto, de alegria, de nada, de tudo.
Quando o vento parava, as palavras não saíam, ouviam-se os cães a latir e os silêncios passavam por entre raios de sol, assim, discretos, sem deixar que os outros sentissem que a garganta estava seca como a areia no deserto.
Outras vezes parecia que a tempestade chegara sem avisar, rugidos secos e uivos de cortar o coração.
Mas só quando o vento lhe saía da boca é que Adriana se sentia livre de dizer, de falar, de tentar sair do vaso e então espalhar a brisa pela noite demasiado fria, pelos tardes demasiado secas, até as manhãs chegarem e ela as sentir suas.
Havia coisas terríveis que ela sentia, havia sentimentos feios que escondia, coisas que não queria dizer, que queria muito ocultar, ódios e invejas sem cor e, por isso, ela temia a tempestade, que aparecia sem avisar, de rompante, seca, barulhenta, destruidora.
E Adriana arrependia-se de dizer aquelas coisas todas sem nada ocultar. Até parecia que os dentes escureciam e a boca a mexer sem parar, as palavras a saírem numa corrente molhada. Fecha a janela, fecha a janela, há que parar a tempestade, deixa a brisa voltar, dizia a si própria, no medo de não conseguir e de se afogar. Vinha então a calma das palavras doces, as pétalas suaves, os cheiros que aparecem sempre depois da tempestade.  Adriana ficava feliz.
Às vezes adormecia num torpor sem memória, outras vezes nem a brisa aparecia.  Apenas via o silêncio azul e então, sentia vontade de chorar, uma mágoa que a atravessava e ela saía para a rua, para cheirar, para afogar o espanto doentio, à procura de sinais, de rostos, de olhos , de uma janela aberta para poder entrar. À espera que o vento, de novo, lhe saísse da boca.
De novo ventania,
brisa,
tempestade
e depois silêncio
e acalmia.
Era assim a Adriana.

Maria Luís Koen




andrew judd

9.

Quis morrer mais do que uma vez.
Estava farta de tudo:  farta de sentir, farta de não sentir, de não encontrar o que sonhava, farta de viver.
Pegou no carro e pensou : vai ser desta que acabo com isto! Vagueou até descobrir o local certo. Havendo local certo, que ela não sabia bem.  Ali não lhe agradava, era muito barulhento; ali também não, era muito de passagem. Talvez ali, ao longe, no cimo, bem alto, perto da fortaleza onde, no passado, tantos homens morreram a lutar. Aí talvez fosse bom morrer – sempre encontraria os bravos na viagem.
Estacionou e não pensou muito ou até pensou um bocado. Não tem memória se pensou – na filha pequena, nos pais, porventura em algum amigo. Talvez tenha pensado. Não sabe ao certo. Querer morrer é doença, dizem. Por isso não sabe se pensou no assunto. Queria era acabar com tudo o que tinha na cabeça. Tudo.
Não via a magia. Não havia. Nada, a não ser os comprimidos que emborcou para parar de sentir. Sentir para quê? O quê? Queria outra vida, melhor do que esta que tinha. Pelo menos diferente. Queria mais, queria outra coisa, queria à noite não sentir fome de doçura. Uma mudança que a morte lhe traria. Seria, no mínimo, o paraíso.
O paraíso branco e verde quando acordou, o cheiro a hospital, olhos e mais olhos a julgar.
O psiquiatra a falar, a questionar. Atrás da janela da sala Fernanda recorda algumas coisas. Apenas as que quer recordar. Sabe que algo mudou. Não aquilo que queria. Mudou certamente o olhar. As certezas não. As expectativas sim. De que não vale a pena querer o impossível, não vale a pena estender a mão, não vale e pena exigir a magia. Ela acontece se tiver de acontecer, apesar de poder nunca vir a brilhar.
Não sabe se é mais feliz, se é mais infeliz.
Procura um tesouro escondido, cigarro na boca, olhos a brilhar, presa num corredor infinito, de mãos estendidas. Procura sabendo que pode nunca o encontrar.
Fernanda pensa no suicídio quando se olha ao espelho pela manhã. Pensa também que precisa dos cheiros que surgem do campo em frente à janela do quarto, pensa que tudo se esvai, que tudo desaparece como aparece.

E continua a moldar a sua pequena estátua de barro escuro, à espera que as horas passem e que chegue o dia de voltar a ser ela.

Maria Luís Koen


10. 
Viveu num poço durante muito tempo. Ou durante o tempo todo de que se recorda. Achava aquilo tudo normal. 
Aquilo é o espaço que escolheu para  viver: o poço. 
O frio, o cheiro a humidade, o escuro, o musgo que ali havia. Mudar para quê? Para ficar pior, antes assim.

Mudar implicava sair dali, dormir e acordar noutro lugar. 

Ia fazer isso porquê? 
Qual a garantia de que seria melhor? 
Seria menos ou mais frio? 
Menos húmido? 
Mais claro? 
Até gostava do musgo, que era macio ao toque. E o escuro fazia com que se sentisse segura. Pelo menos ninguém a via, ninguém sabia.

Se mudasse, seria tudo diferente?
Se mudasse, alguém olharia para ela?  Alguém diria: “Olá  Ana?”
Alguém se preocuparia com ela?
Alguém perguntaria: “Está tudo bem, Ana? “
Se mudasse, seria mais feliz?

Talvez alguém lhe dissesse: “Ana, fico contente por saber que estás bem, que estás menos tímida, que saíste da casca, do buraco onde estás sempre metida”.
E talvez Ana respondesse que sim, que já não tinha vergonha, nem medo de ser julgada pelos outros, de ser traída pelas emoções.

Mas isso assusta as pessoas -  Ana sabia.   
A verdade, a clareza, as emoções cruas. Não querem saber, não querem ver ou fingem que não sabem nada, que não viram nada. Colocam a máscara de todos os dias e pronto, está tudo bem porque sim, porque deve estar, porque é normal. Não desejam saber o lado escuro e descarnado que os outros cobrem com a roupa do dia a dia, não querem saber o que está por detrás da máscara. Estão-se a borrifar para  a Ana que conhecem vagamente. Acham apenas que  vive numa mansão e não num poço frio e escuro.
O que interessa é que todos os dias digam: “ Boa Tarde, como está?” E pronto, está a pergunta feita. E a resposta estereotipada: “Está tudo bem, obrigada”.

Fica tudo feliz, fica tudo satisfeito. Afinal está tudo bem. 
A vizinha doente está bem, o vizinho alcoólico está muito bem, o drogado ali do lado está fantástico, o velhote do terceiro esquerdo que anda na cadeira de rodas e não sai de casa desde que teve o acidente, está uma maravilha.

É melhor viver escondida num poço, mesmo que no Verão ele seque e assim morra.

Maria Luís Koen






Paul Cumes



Coisa ausente

   Trovejou toda a tarde. Peguei no carro e fiz-me à estrada, sem destino certo. Andei pelas ruas da cidade, nem depressa nem devagar, sem prestar especial atenção ao trânsito. Parei no semáforo vermelho e ouvi a gritaria de uma mulher. Gritava e esbracejava e reparei que era para mim. Olhei mas não a reconheci. Duvidei até que fosse para mim mas, olhando em volta, eu era a única condutora parada no semáforo, para além dela. Olhei melhor e quando ela disse “Então não me reconheces?” com aquela boca enorme, fez-se luz e percebi que era a minha querida mel-ancia! Ficou verde e parámos cinco minutos à frente – onde não se podia estacionar, mas era uma emergência. Uma emergência de há vinte anos talvez. Saímos do carro e eu fiquei um pouco esgazeada, tonta do reencontro que estava longe de pensar que pudesse acontecer. A mel-ancia, quem diria! Efusiva como sempre logo ali me deu um grande abraço. “Ó Eva, que saudades que tinha. Que saudades dos nossos despiques e das nossas longas conversas.Como é que perdemos assim o contacto? Como é que desapareceste, mulher? Está tudo bem na tua vida? És feliz?” E logo ali trocámos números de telemóvel e promessas de um jantar de amigas como tínhamos o hábito de fazer noutros tempos.
   Já no carro, novamente conduzo, ainda sem destino, muito distraída e com a mente fixa na mel-ancia, como carinhosamente gostávamos de lhe chamar, porque ela era redondinha e corada, sumarenta de sentimentos. Pelos vistos não foi mesmo para freira. Lembro-me bem da conversa a três quando ela recebeu a notícia de que a sua grande paixão morrera num estúpido acidente rodoviário. Na altura não pensou a não ser em tornar-se freira. As paixões nunca lhe tinham dito nada. Ouvia as amigas falar dos primeiros beijos, das primeiras carícias e aquele entusiasmo não lhe dizia nada. Não as invejava. Não queria ser ou sentir como elas. Achava que o seu destino era estar com Deus, dedicar-se a Cristo. A sua missão sublime e terrena era essa. Depois começou a escrever cartas àquele católico que conheceu durante uma peregrinação a Fátima e sentiu-se desorientada na sua fé. O seu desígnio já não lhe parecia o mesmo, sentia-se viva quando lhe escrevia, em ebulição até a resposta chegar, a ferver quando o correio trazia a carta esperada. Não disse nada às amigas, a nós que tanto a estranhámos, não queria comentários jocosos ou perguntas a que seria difícil responder, confessou mais tarde. Viveu aquele romance platónico como seu, só dela e de mais ninguém, numa fúria de secretismo completamente assustadora. E um dia varreu-se tudo. Foi-se tudo com a trovoada. Como agora a minha vida. Também se foi toda. Só resta este estúpido carro, esta estúpida tempestade, esta maldita vida. Até se foi a fala: a mel-ancia não abriu a boca pelo menos durante três dias. Por fim, teve que dizer a uma das amigas, que comentou comigo e que não comentámos nada com ela porque não sabíamos bem o que dizer, pois ela era quase uma santa para nós e as santas não se apaixonam por rapazes durante peregrinações a Fátima, que depois morrem. Mas foi assim mesmo que aconteceu e Lídia disse em casa que queria ser freira. Disse alto para o pai ouvir que, coitado, por sua vez pensou não ter ouvido bem. “A rapariga está parva de todo” – comentou com a mãe e saiu para comprar o jornal, como fazia todos os Domingos depois da missa. Mas a ideia continuava lá e Lídia todos os dias pensava no mesmo. Foi ter connosco à costa alentejana,  uma combinação que tínhamos feito com a mãe da mel-ancia.  O objetivo era tirar-lhe essa obsessão da cabeça – isso de ser freira era demais! Lídia, ou melhor, a mel-ancia, foi. Queria sentir paz e a paisagem daria o seu contributo. Queria a calma que não tinha no Porto, queria não pensar no rapaz, queria ver-se de hábito, rezar o terço, sem ter que se justificar com ninguém. Queria não ficar cansada, queria não sentir, queria não pensar-se a dizer – “por favor amor, leva-me contigo para a eternidade, preciso muito de ti”. Nós não lhe demos descanso, contudo. Houve acérrimas discussões, choros, apelos. Que bem me lembro destas nossas tragédias pessoais. Só ficámos felizes quando ela disse que iria repensar melhor a decisão. Nesse dia houve farra para comemorarmos. Sendo assim, emborcámos três ou mais garrafas de vinho tinto e dormimos vestidas, na certeza que não a iríamos visitar ao convento nos próximos tempos. Pelo menos enquanto estivéssemos por perto. 
   E agora, que a minha vida está caótica, que não vislumbro o que fazer dela, aparece-me a minha querida amiga que queria ser freira. Será este um desígnio de Deus?  Quero continuar a conduzir, mas coisas mais terrenas, como a falta de combustível, levam-me a ter que atestar,  sob pena de ficar sem carro. Eu bem sei que lhe chamei estúpido mas não tenho dinheiro para comprar outro por isso retiro o que disse. Quero fazer-lhe todos os elogios possíveis, quero mimá-lo até mais não, a este companheiro das minhas venturas e desventuras. Mas é normal amar assim um carro, um chupador de dinheiro? Ou estarei a ficar louca e em breve começarei a mutilar-me? Talvez me espere uma depressão e morra sem saber do quê, imersa em confusões mentais dificilmente compreendidas. Não, talvez fique como aqueles que todos os dias vejo com um certo ar de tristeza, espanto, consternação. Vou para casa que aí posso lamuriar-me por um preço mais barato. Em casa não gasto os pneus do carro e posso poupar na gasolina. Posso sentar-me no sofá e tentar fechar os olhos, posso esquecer que as pessoas não me ligam, que o meu marido fugiu com outra, posso tentar esquecer o ambiente no trabalho, posso nem ouvir o que oiço todos os dias. Pois posso. Assim evito ficar como a Nelita. Isso mesmo. Tão bem educada que ela era, sempre tão simpática, prestável, doce. Como eu. Uma excelente rapariga. Como eu. “Quem a levar ao altar fica de certeza bem servido” – repetia vezes sem conta a tia, a avó, a mãe, as primas, um número infinito de familiares que conhecia quando passava o fim de semana em casa dela, nos tempos em que ainda era estudante, feliz, bem com a vida, com os homens. Ela era o centro de tudo, agora que penso nisso, o sol de qualquer local onde estivesse. Também era inteligente, estudiosa, amiga. Enfim, um rol de qualidades. Exigente. Ser amiga dela requeria um brilhantismo quase indecente. Os rapazes eram colocados a uma distância conveniente e Nelita suspirava com fome por aquilo que não tinha. Dizia-me quase em segredo, quando estávamos sozinhas ou as três (havia mais uma amiga de fora que passava os fins de semana em casa dela como eu – a Madalena) que o seu maior desejo era  libertar-se da mãe castradora, do pai ditador, da família que a oprimia. Por isso estudava noites a fio, numa pressa desmesurada em acabar o curso, imaginando já a euforia de poder ser a dona da sua própria vida. Quando isso aconteceu, candidatou-se para o local o mais longe da sua casa de família e foi aceite. Aí começou a busca, a fantasia, a loucura. Começou a mudança. Uma mudança que me assustou quando a revi, me custou lágrimas escondidas, apertos no coração, telefonemas desesperados à mel-ancia, já depois da mania de ser freira. “Meu Deus, a vida é mesmo estranha” – penso, deitada no sofá da sala que me oprime. Vou até à cozinha, abro o frigorífico para comer uns morangos. 
   Um dejá vue que acontece. Quando a vi sentada no banco da cozinha a comer romãs com açúcar amarelo, percebi que algo não estava bem. A nossa Nelita dizia que os dedos ou as unhas vermelhas, já não me lembro bem, eram uma tormenta. Uma tormenta, repetia. As manchas não saiam e ela tinha vontade de cortar os dedos. “Mas tu estás louca, Nelita?” – eu bem que perguntava, dizia! Mas pensou que uma maldição se tinha apoderado dela e começou a olhar para as pessoas como se fossem vermes, bichos podres que a queriam possuir, comer, atacar. Doía-lhe já lavar as mãos com lixívia, esfregar os dedos com palha de aço. Aquilo não saía. Ninguém via o que ela via, mas lá estava o vermelho escuro nos interstícios das unhas, lá estava aquela porcaria a impedi-la de acariciar alguém. Doía-lhe muito a espera. Doía-lhe não ser pura, a falta de alegria. E depois, um dia, quando foi mudar o óleo ao carro, o mecânico apertou-lhe muito, mas mesmo muito,as mãos, com as unhas negras e quando foi pagar, ele deu-lhe um narciso amarelo e o romance começou aí. Malditos romances. Foi como quando ele me ofereceu flores. Mentiras. Flores manchadas de traição. Desde o dia em que ele partiu, que não quero margaridas em casa. Margaridas com cheiro a dor. Margaridas sem pétalas. Margaridas manchadas de falsidade, como as unhas da Nelita manchadas de romã: o mecânico não se importava com as unhas manchadas dela e ela começou a odiá-lo na primeira noite em que dormiu com ele. Uma manhã acordou e estava toda vermelha. Ela, ele, a cama, o lençol. Tudo menos os dedos que via agora limpos, imaculados. “Que maravilha, querida Eva. Finalmente a maldição desapareceu, finalmente a nódoa deu lugar ao belo”. Do que a polícia disse, espetou-lhe uma faca de cozinha  porque não gostou do pano branco com que ele se vestira para lhe agradar.Relembra o que leu no relatório onde ficou escrito que Nelita  também não gostou dos lençóis de cetim, “que parvoíce mais sem nexo, coisa de puta! Coisa de puta!” - gritou, que ela não era isso. Espetou-lhe a faca bem fundo e ficou a ver o vermelho escuro, a romã, com um grande nó no peito, lindos os fractais que ela via. “ Desculpa meu amor, não te queria fazer mal” e telefonou à mãe a chorar dizendo que “no melhor pano cai a nódoa, mãe, no melhor pano”. E nunca mais me esqueço disto. Nem disto nem dos armários vazios da roupa dele, quando cheguei a casa, cansada, já tarde, a pensar no jantar que tinha preparado na véspera, com tanto amor, tanto amor. E depois isto. As gavetas sem a cuecas brancas, o armário da casa de banho – que corri a ver – oco dos objectos e dos cheiros dele. Tanto trabalho, tanto namoro, tantas escolhas, tanto tempo juntos para quê? 
   Bendito sofá. 
   Bendito chá de tília. 
   Passaram os anos e nunca fui capaz de me impor. Impor-lhe os meus desejos, manter as minhas amizades, roubar o tempo ao tempo da casa. Foi para isto que casei? Para ficar sozinha sem um tostão? Muita razão tinha a Florbela quando me disse que ele era dúbio e que ela sabia muito bem o que dizia e, que se dizia, era porque era a verdade, fruto da experiência.Florbela sentou-se no sofá, noutro que tinha na minha antiga casa de solteira, esperou pela mel-ancia que não apareceu porque andava às voltas com as maleitas da mãe, esperou pela Nelita, que finalmente surgiu de olhar fundo, e contou-nos que se sentia a mais parva das criaturas, a mais triste e só de todas as que se lembrava de alguma vez ter conhecido. Sim, é assim mesmo que me sinto agora. Agora sinto-me muito Florbela, como já me senti mel-ancia e Nelita na vontade de alguma loucura. Afinal, dizia-nos de boca cheia e olhos tresloucados, afinal  levara uma vida de mentira, numa ausência de si própria que sempre abominara nas outras. Nessa caminhada ausentara-se do importante, que eram as amigas, os passeios sozinha, as caminhadas pelas livrarias, os fins-de-semana de conversas com elas. Pior que tudo, ausentara-se do que ela sempre fora. 
   Meu Deus, acho que ela sou eu ou eu sou ela, porque sozinha neste apartamento que me leva metade do ordenado, rodeada de móveis que não escolhi, de livros que nunca mais li, desespero de nada. Nada. Perdi tudo, tudo. Sentada no sofá na casa grande, percebo que me ausentei dos livros que sempre amei. Sinto que o caminho é muito mais difícil de percorrer, que tenho que conhecer tudo de novo. Eu, Eva, não sei se ainda consigo aprender, não sei se caminho bem pelas ruelas, se tenho as palavras certas para me aproximar de novo dos outros e criar raízes de confiança. E esta casa que me irrita, que me prende, que me absorve as energias. Estes tachos que me oprimem. Como à Madalena. Eu vivo a vida delas, mas nunca quis ser freira para fugir à dor. Eu vivo a vida delas, mas nunca matei ninguém. Eu vivo a vida delas mas ainda não enlouqueci. Madalena, minha louca amiga, minha grande lavadeira de tachos, Madalena que lavou um tacho durante pelo menos vinte minutos ou mais, que eu contabilizasse, que esfregou, passou por água quente, depois por água fria, depois mais espuma para tirar qualquer resto de gordura, lavou, lavou, lavou com o imaginário “ele” a olhar para ela, sem perceber que este  imaginário “ele” lhe havia partido as asas, quando a levou e quando finalmente a trouxe do edifício branco, onde todos riam, tinham olhares pardos e de repente choravam ou gritavam fantasmas que só eles viam.É isto mesmo que penso -  tirou-lhe as asas. E eu também não tenho asas. Sinto-as partidas e é por isso que choro e tenho raiva ao meu automóvel, que consome gasolina até mais não. Não tenho asas. A Madalena já não podia voar, “já não consigo sentir o vento a passar rente ao corpo, agora doem-me as pernas, agora já não sinto o corpo leve, Eva” e   esfregava o tacho sem esforço, a pensar que a tinham depenado para lhe enfiarem aquele vestido feio, para que se sentasse com as dos olhos secos e com o rapaz que assobiava de noite e gritava de dia. E ela tinha muito medo outra vez porque o tacho continuava sujo, havia pó, estava nua, não podia voar, não podia olhar a imensidão do verde, não podia ouvir aquilo que queria. Disse-me que já não era pomba, já não era livre, já não havia o seu milagre, o que lhe  importava - a ilusão, desaparecera de vez. A minha ilusão de felicidade também desapareceu num dia de trovoada, como o dia de hoje, em que andei às voltas de carro para esquecer ou para lembrar ou para sentir ou não sentir, para fugir do medo de ficar sozinha e reencontrei a mel-ancia num semáforo que estava vermelho. É aquele medo que eu não queria que voltasse, de não conseguir soltar o que tenho cá dentro, porque não sei se isso ainda existe, se ainda lá está. Nem sei se me apetece jantar com a Lídia amanhã. Não quero abrir a conversa, o peito, soltar a dor. Não quero ouvir a história que ela me vai contar, não quero saber de mais desgraças, não lhe quero dizer que todos os dias quando me sento sozinha no sofá, vejo que não escolhi o caminho certo, percebo que andei tempo demais a vaguear, que me deixei enredar e não soube manter o que é efetivamente importante. Tenho quase a certeza que não vou jantar, não vou, não. 
   A campainha toca, a Lídia-mel-ancia desbocada e sentimental ali à porta, a entrar sem pudor na minha casa, como se vinte anos fossem meros vinte minutos, os olhos a  vaguearem pela sala, por ali, pelas peças decorativas que já não sei se comprei ou se foi ele e ela sente uma dor miúda e calada, igual à minha, copiada de mim ou que eu copiei dela,  que a faz desviar os olhos e mergulhar na paisagem que aparece ao longe, que vê da janela da sala, à espera que o tempo passe, mais vinte anos passem, que apaguem ou amenizem o que calamos. Mas ela fala, a Lídia fala. Diz as estórias que eu não queria ouvir e oiço, diz o desassossego da alma, que eu tão bem entendo, diz do medo e da esperança que o sol a deixe mais animada, que uma das poucas amigas que lhe restam telefone, para ela poder dizer algumas palavras, lembrar-se de como se conversa, de como se confia. E eu a ouvir mas a repetir o que ela me diz, como se fosse o eco dela. E tinha sede do que lhe faltara naqueles anos todos. Muita sede e vontade de se embebedar de outros, de se enfrascar no que eles dizem, barbaridades ou ninharias do dia a dia, tanto faz para ela. E eu pensava, enquanto ouvia, pensava que me tinha afastado dos outros, que os outros se tinham transformado nele e que ele tinha fugido com outra.Ele tinha fugido com outra, ele tinha levado com ele os sonhos e as asas que precisava para voar.  Lídia, minha querida Lídia, minha querida amiga, minha mel-ancia, eu só não quero ou não posso continuar a sentir que lutei tanto para nada, para ter nada, para acabar com as mãos cheias de vazio. Finalmente falo, finalmente digo, finalmente abro o coração e digo que era isso mesmo que não conseguia digerir, era isso que tinha dificuldade em expressar, esse sentimento enraivecido de que tinha tanta coisa que era um nada translúcido. Nem a paz me sobrava. Os dias passam e de repente lá estou eu sentada no sofá à espera que a ausência de tudo seja preenchida, o vazio fique ocupado e que esta espera contínua e tão grande seja interrompida sem dor. E Lídia diz-me que também quer a alegria roubada em tempos porque também  ela não pode mais viver morta. Está cansada de si mesma, tem uma saudade imensa das pedras coloridas, das palavras que gritava com as amigas, das risadas, do tricôt que era o pretexto para inventar possíveis estórias, tem saudade do antes de morrer. Quer o carrossel gigante. Como eu. Não uma coisa ausente, um carrossel gigante e colorido.

Maria Luís Koen




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