terça-feira, 23 de abril de 2019

SEIS de(s)atino



SEIS

Julia Hamilton


De súbito o claro fica escuro, fiquei parada sem avançar ou recuar. Parada no tempo, parada na vida, na vontade,  sem conseguir seguir em frente. E era algo que precisava muito fazer: não ficar ali, procurar o depois. E há sempre um depois -  depois da chuva parar, depois do vento abrandar, depois da porta se entreabrir, depois dos medos voarem , depois das más lembranças se desvanecerem. Mas é  difícil, nem sempre conseguimos amenizar os estragos , os cantos escuros da nossa mente, o amargo de boca que aparece quando não queremos. Então, parada ali, na estrada, parecia que a mente me obrigava a voltar atrás no tempo. Conduzi sem ver o trânsito, como um autómato, e os factos passados ali estavam, nem sempre por ordem cronológica, nem sempre da maneira que eu queria, nem sempre exactamente como tinham acontecido, numa onda que ia crescendo, crescendo, crescendo. Às vezes os factos passados ainda eram presente e, por isso, essa já gigante onda parecia não ter fim. E depois, repentinamente, algo pareceu acontecer, como uma buzinadela, um peão que se atravessou na passadeira ou uma travagem busca e tudo se desvaneceu, tudo se tornou  num novelo imaginário de lembranças pouco nítidas, que agora pareciam sem valor.
Muitas vezes assim, vemos o que não queremos e, num qualquer movimento, vagamente absurdo ou não, num dia especial ou não, aquela lembrança desaparece, aquelas nuvens escuras já não estão ali, aquela triste irritação já não é nada disso. Ficam apenas imagens sem dor.

Maria Luís Koen



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