sexta-feira, 3 de maio de 2013

A Roda - continuação



Artista: João Alfaro


Ontem fui à festa de despedida de solteira da Joana. Joana, a louca. Trago do frigorífico um copo de leite frio, não me apetece comer nada. Não estou desesperada, não estou nada. É esse o problema, esta lucidez do nada de especial, do ninguém em particular, este lamurio contínuo do que não se tem, este caroço na garganta, que não passa. A visão da piscina redonda e azul lembra-me férias e descanso, fantasias e cansaços. Pouso o copo na mesinha verde da varanda, sento-me agastada. É bom estar aqui. Acho que ontem bebi demais… Tenho um fraquinho por Gin Tónico e abusei. É mesmo bom. A minha casa é a minha concha, a minha protecção,  embora não consiga tirá-lo da cabeça. Já passaram cinco anos e às vezes não durmo, a cabeça cheia de teias, memórias perdidas, andando pela casa até de madrugada, agulhas finas que se espetam, que magoam, difíceis de controlar. A escuridão dos óculos escuros, o cheiro do cemitério, a outra a chorar como eu. Há barulho na piscina, a que eu chamo, com alguma ironia, o meu lago. Um lago azul de onde partem ou chegam vários caminhos, mais precisamente oito, que levam aos diferentes apartamentos do condomínio redondo, como se de uma roda gigante se tratasse. Do lago chegam vozes de brincadeira, salpicos de alegria que condizem com o espaço. Fecho os olhos, saboreio o momento vivo, não tenho saída, não quero beber demais, não vale a pena arranjar uma razão à pressa para viver, para ser idiota em querer encontrar o verdadeiro amor, aquele que é eterno. Não existe, é história de príncipe encantado, cavaleiro montado em corcel branco. Suspiro com um certo desgaste, como nos dias em que não há trabalho e que, ainda assim, nos sentimos pesadas. Um peso doentio, que nunca deixa saudade, um pó que custa a limpar, um vazio de nada querer, nada fazer, nada poder.
Começo a estar cansada das festas de despedida de solteira da Joana. Esta é a terceira mas não é o terceiro casamento. Nem sequer o primeiro e não sei se ela vai ficar por aqui. Quando me telefonou nem imaginei que fosse mais do mesmo:
-Ana a minha festa de despedida de solteira é no próximo Sábado, no “Arriba”. Aparece cá em casa por volta das dez da noite. Depois conto, aparece.
A Joana sempre me conseguiu surpreender com as suas maluquices. Boa advogada, independente, mas com dois terríveis defeitos: falar demais e adorar homens. Sim, sempre procurou conquistá-los mas, conseguido o feito... acabava o romance, o amor, como ela diz. De facto nunca entendi bem este lado tão exageradamente sensual de Joana.
“O que queres Ana? Não consigo evitar, aqueles olhos verdes... aquela boca... aquelas mãos... quero tudo para mim, por toda a minha vida. Este é o tal, Ana.”
Quantas vezes ouvi estas palavras ou similares? Sorrio. A Joana não é bonita. É cor de chocolate de leite, baixinha e um pouco roliça, mas tem um charme e uma sensualidade felina que põe de lado qualquer mulher. Quando ela anda, eles olham. E quando ela fala... não conseguem evitá-la. Um perigo ambulante, como gostam de me confidenciar.  “Quando casar aquilo passa”, dizia-me em segredo a avó. “Eu também era assim. Até que conheci o meu homem e me perdi de amores por ele. Aos quinze anos fugi para a mata para me encontrar com um rapaz de quem muito gostava e só parei quando na Praça um homem me deu um tal encontrão que deixei cair as maçãs. Foi fulminante filha. Tiro e queda. Até ao dia em que ele morreu não quis outro homem”. O avô de Joana não era homem pobre, a herdade onde vivia era grande como ele, como a vontade dele, as viagens e as mulheres que tinha sem conhecimento da esposa, pensava ele. Mas a avó de Joana sabia. E sofria.  Minguava a olhos vistos, mas sorria. Anos e anos sorriu e dormiu com ele, amou-o cheia de dor, de desespero, de raiva. Amou-o de solidão, amou-o até um dia, seca de paixão, ele morrer. Talvez que a Joana tivesse herdado essa costela passional da avó, do avô as inúmeras paixões descartáveis, consideradas mais masculinas do que femininas. Por isso era muitas vezes criticada, em especial por colegas invejosos ou por mulheres mal amadas, mas ela somava e seguia. Como me dizia a avó:  “Enrolados num cordel chegam até Portel!”. Já teve namorados e noivos de todos os géneros e feitios. Mas todos com um denominador comum: sempre engenheiros. Poderia chamar-lhe fetiche e, quando abordo essa questão, ela ri e diz que não sabe a razão de tal tendência. Talvez porque goste de números, opostos a uma carreira de letras, como a dela. Para não variar, o futuro marido é engenheiro. Não, não sei como ela os conhece, só sei que se apaixona por eles e depois os deixa.
(continua)
Maria Luís Koen

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