sexta-feira, 3 de julho de 2020



Memórias da Aldeia

4. O conto do João Soldado ou João Sem Medo


Sentados à lareira, todos ouvíamos o conto, contado pelo avô:

     

Era uma vez um soldado, chamado João,  que foi servir a pátria.

     Ao fim de vinte e quatro anos ganhou quatro vinténs e um pão.
     Um dia, no caminho,  encontrou o Senhor e S. Pedro disfarçados de mendigos,  que lhe pediram uma esmola. Ele não os reconheceu e disse:
-“ Andei vinte e quatro anos a servir o rei e a paga que tive foi um pão e quatro vinténs e ainda me pedem esmola?”
     Mas,  apesar do pouco que tinha, acabou por dividir o pão em  partes e cada um ficou com o seu bocado. E foram à sua vida.
     Ia o João Soldado novamente no caminho, quando encontrou os pobres outra vez. Disfarçados,  pediram esmola e ele deu mais um bocado do que tinha. Foram  embora e  voltaram a encontrar-se.  O João Soldado, que quase nada tinha, deu-lhes mais dois  vinténs e ficou sem nada. Então S. Pedro disse ao Senhor:
         – “Lembrai- vos do pobre soldado que repartiu connosco tudo o que tinha.” E Nosso Senhor disse a S. Pedro que perguntasse ao soldado o que ele queria. João pensou um bocado no que havia de pedir e depois, apresentando a Nosso Senhor o saco que levava, disse:
– “Peço para que este bornal tenha o condão de entrar para dentro dele o que eu quiser.”
     E Nosso Senhor concedeu o que João Soldado pediu.
- “Sempre que quiseres algo, só tens que dizer- venha aqui para o meu bornal.” E foram embora.
     O João Soldado, contente mas não muito convencido,  decidiu experimentar. Estava com fome, passou perto de uma mercearia e disse:
- “Pães, chouriços e água pé, venham já pró meu bornal”. Para espanto seu, uma fileira de pães, chouriço e água pé entraram para dentro do bornal. A partir daí, sempre que queria alguma coisa dizia :
-“...venha aqui para o meu bornal” e o pão, a carne, tudo o que queria, saltavam para dentro do bornal. 
     Era quase noite e o soldado estava cansado de andar todo o dia.  Foi à procura de uma pousada, mas só lhe ofereceram uma casa que estava desabitada há muito tempo, e para onde ninguém queria ir, porque lá aparecia de noite uma alma do outro mundo. Dizia-se que era a alma do dono que lá tinha morrido, um grande avarento que morrera a uma sexta feira. O soldado João gostou daquela história de almas do outro mundo.    Viu a grande casa e decidiu entrar. Se houvesse algum problema, ele tinha o seu bornal!
– “Sou um soldado que servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs e não tenho medo de nada. Sempre quero vêr essa alma do outro mundo...”
     Entrou, havia uma salgadeira com boa carne, presuntos no fumeiro e bom vinho. Acendeu o lume de chão e pôs-se à lareira pronto a assar a carne. Estava esfomeado. De repente ouviu uma voz grave e forte vinda do alto da chaminé da lareira:
- “Olha que eu caio !...”
     Ele, sem medo, bebeu um copinho de vinho.
- “Olha que eu caio!”- disse a voz outra vez. 
- “Olha que eu caio!!”- gritou.
- “ Cai para aí à vontade. Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- disse o João Soldado.
     - “Então, lá vai a minha cabeça.”.
     E cai a cabeça do homem.
- “Olha que eu caio!”
- “ Cai para aí à vontade, 
que eu apanhar-te não vou, 
para que hei-de eu levantar-me, 
se tão bem sentado estou."- repetiu o João Soldado.
 E cai o braço do homem. E a seguir o outro.
     João Soldado ia bebendo sem medo.
- “Olha que eu caio!”
- “Cai para aí à vontade, 
que eu apanhar-te não vou, 
para que hei-de eu levantar-me, 
se tão bem sentado estou.
     E cairam o tronco e as pernas.
     Finalmente, depois de estar o homem inteiro caído no chão, o João Soldado disse:
- “E agora?”
- “ Une-me a cabeça ao tronco!”.
     E ele assim fez.
- “Une-me os braços ao tronco”
     E ele assim fez.
-“Une-me as pernas ao tronco”.
     E ele assim fez.
     O homem ficou completo.
- “ E agora?”
- “Agora ajuda-me a levantar”. 
     E ele assim fez.
- “És valente!”
- “Servi o rei durante vinte e quatro anos e recebi em troca um pão e quatro vinténs!”, disse João Soldado muito senhor de si.
- “Se és pobre, podes ficar rico se fizeres o que eu disser”.
- “O que tenho que fazer?”- perguntou.
- “Anda comigo.”
 E a alma do outro mundo, seguida do soldado, encaminhou-se para uma casa subterrânea, que havia por baixo da cozinha. Levantou uma grande pedra que tapava uma cova e mostrou ao João soldado três grandes potes cheios de dinheiro.
– “Vês todo este dinheiro?”-  disse a alma do outro mundo.
– “Vejo sim”.
– “Pois parte deste dinheiro será para ti se cumprires as minhas ordens”.
– “Vamos a isso”, respondeu o soldado.
– “Então reparte este dinheiro em três partes. Uma é para dar de esmolas aos pobres; outra é para mandares dizer missas pela minha alma; e a terceira parte é para ti se cumprires à risca a minha vontade.”
– “Está bem”, disse o soldado. “Eu que servi o rei durante vinte e quatro anos, por um pão e quatro vinténs, melhor cumpro as tuas ordens, com tão bom pagamento”.
E o João Soldado foi logo tratar de dar as esmolas aos pobres e de mandar dizer as missas pela alma do avarento. Com o dinheiro que restou, comprou uma boa casa e teve uma boa vida, cheia de vinho e comida.
     O Diabo, porém, jurou vingar-se do soldado João, por ele lhe ter tirado a alma do avarento, que afinal se salvou com as esmolas e as missas. Mandou logo ter com o João um diabinho dos mais espertos que tinha no Inferno, e ao qual prometeu mundos e fundos, se lhe trouxesse o João Soldado para o Inferno.
     Estava  o João sentado à sombra de uma árvore, na sua quinta, quando lhe apareceu um homemzinho muito cumprimentadeiro :
– “Como passou o sr. João?”
– “Ainda agora me vês e já sabes o meu nome?!”, respondeu o soldado meio desconfiado com aquele homemzinho esquisito e feio.
– “Tens má cara para santo”, continuou o soldado,” mas se queres uma pinga anda cá beber”.
     O diabinho , muito esperto, respondeu que não queria beber e convidou o João para que o acompanhasse.
– “Mas para onde me queres tu levar? Olha que eu servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs, e não tenho medo de ti. Se é para o inferno que me queres levar, deixa que vá arranjar provisões para a viagem. Olha, essa figueira tem bons frutos, come enquanto eu vou buscar o que preciso.”
     E o diabinho, cada vez mais contente, saltou para a figueira a saborear os figos grandes.
     Quando o soldado voltou, trazia consigo o bornal e logo disse:
- “Salta já para o meu bornal!”
     O diabinho bem lhe prometeu mundos e fundos mas teve que entrar no bornal. Levou uma valente sova e foi queixar-se e chorar, com o rabo entre as pernas, para o Inferno, berrando  que metia dó.
     O Diabo esperava-o indignado por não ter cumprido a tarefa, e vociferou infernalmente contra o diabinho, por se ter deixado apanhar como um parvo, pelo soldado que assim zombava do seu poder.
– “Quem vai agora buscá-lo sou eu”, disse, muito soberbo o Diabo para o diabinho, que estava todo encolhido a um canto do inferno, muito dorido e chorando.
     Estava o João a jantar, muito satisfeito, quando bateram à porta  com força tal que tudo estremeceu.
– “Há-de ser o Diabo”, disse o soldado. “Já cá o esperava depois da sova que dei ao outro”.
     E assim foi.
     O Diabo entrou de rompante. Os olhos faiscavam raios de lume e cheio de raiva disse:
– “Vais pagar tudo o que fizeste ao meu enviado!”
– “Se vens para cá com essas palavras, vais pelo mesmo caminho do teu diabinho”, disse o soldado, pondo o bornal a jeito.
– “Isso é que vamos vêr. Desta vez levo-te para as profundezas do meu reino, como o mais refinado patife cá deste mundo.”
– “Olha eu não tenho medo, meu grande Diabo. Servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs!”
     O Diabo, cada vez mais furioso,  ia a deitar as suas garras ao soldado, quando este, dando um pulo para traz, abriu o bornal em frente ao Diabo, e gritou:
– “Já para dentro do bornal!”
     Ouviu se um grande rugido, que o Diabo soltou de dentro do bornal e debatendo-se furiosamente dava pulos até ao teto, enquanto  o soldado armado com um pau dava pauladas ao Diabo até o deixar quase morto, e a pedir humildemente por todos os diabos que o deixasse ir para o Inferno.
– “Ah! Já pedes misericórdia! Pois vai para o Inferno!” e o João abriu o bornal de onde saiu o Diabo todo partido, de cauda escorrida, mal se podendo arrastar.
     Quando o Diabo chegou ao Inferno ia em tal estado que os diabinhos ficaram aterrados e todos se uniram cheios de medo à espera das ordens do Diabo. Ele então ordenou que forjassem grossas trancas de ferro e fabricassem grandes ferrolhos para trancar as portas do Inferno, com medo que o João soldado lá entrasse.
     Entretanto o João soldado viveu a sua vida de excessos e morreu. Foi parar ao Inferno. Os diabos assim que o viram começaram a gritar:
- “Fechem tudo, fechem as portas e os postigos ou seremos todos batidos!”Assim fizeram e o soldado não pôde entrar no Inferno. 
     Foi então bater às portas do Céu. S. Pedro assim que o viu disse:
- “Vens enganado. Não entras aqui. Não te lembras da má vida que levaste?”
– “ Sr. Porteiro, então um soldado que serviu o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro vinténs, não pode entrar no Céu?”
     S. Pedro teimou e o João soldado, sem respeitar as barbas brancas de S. Pedro ameaçou metê-lo dentro do bornal.
– “Olha que foi a meu pedido que o Senhor te deu esse bornal e tu não te deves servir dele contra mim.”
– “Para as ocasiões é que ele serve”, disse o soldado, “e agora é uma boa ocasião. Ou me deixas entrar, ou vais para dentro do bornal!”.
     E, como S. Pedro ía  fechar o postigo, sem lhe dar tempo para mais discussões, o soldado gritou:
– “Já para dentro do bornal!”
     S. Pedro  viu-se preso dentro do bornal e o João  soldado dentro do céu.
– “Tira-me daqui” - gritava S.Pedro. “Olha que entra toda a gente!”
     Assim entrou no Céu o João Soldado que serviu o rei durante  vinte quatro anos por um pão e quatro vinténs.


Maria Luís Koen






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