Memórias da Aldeia
4. O conto do João Soldado ou João Sem Medo
Sentados à lareira, todos ouvíamos o conto, contado pelo avô:
Era uma vez
um soldado, chamado João, que foi servir a pátria.
Ao
fim de vinte e quatro anos ganhou quatro vinténs e um pão.
Um
dia, no caminho, encontrou o Senhor e S. Pedro disfarçados de
mendigos, que lhe pediram uma esmola. Ele não os reconheceu e disse:
-“ Andei
vinte e quatro anos a servir o rei e a paga que tive foi um pão e quatro vinténs
e ainda me pedem esmola?”
Mas, apesar
do pouco que tinha, acabou por dividir o pão em partes e cada um
ficou com o seu bocado. E foram à sua vida.
Ia
o João Soldado novamente no caminho, quando encontrou os pobres outra vez.
Disfarçados, pediram esmola e ele deu mais um bocado do que tinha.
Foram embora e voltaram a encontrar-se. O João
Soldado, que quase nada tinha, deu-lhes mais dois vinténs e ficou
sem nada. Então S. Pedro disse ao Senhor:
–
“Lembrai- vos do pobre soldado que repartiu connosco tudo o que tinha.” E Nosso
Senhor disse a S. Pedro que perguntasse ao soldado o que ele queria. João
pensou um bocado no que havia de pedir e depois, apresentando a Nosso Senhor o
saco que levava, disse:
– “Peço para que este bornal tenha o condão de entrar para dentro
dele o que eu quiser.”
E Nosso Senhor concedeu o que João
Soldado pediu.
-
“Sempre que quiseres algo, só tens que dizer- venha aqui para o meu
bornal.” E foram embora.
O
João Soldado, contente mas não muito convencido, decidiu
experimentar. Estava com fome, passou perto de uma mercearia e disse:
-
“Pães, chouriços e água pé, venham já pró meu bornal”. Para espanto seu, uma
fileira de pães, chouriço e água pé entraram para dentro do bornal. A partir
daí, sempre que queria alguma coisa dizia :
-“...venha
aqui para o meu bornal” e o pão, a carne, tudo o que queria, saltavam para
dentro do bornal.
Era quase noite e o soldado estava cansado de
andar todo o dia. Foi à procura de uma pousada, mas só lhe
ofereceram uma casa que estava desabitada há muito tempo, e para onde ninguém
queria ir, porque lá aparecia de noite uma alma do outro mundo. Dizia-se que
era a alma do dono que lá tinha morrido, um grande avarento que morrera a uma
sexta feira. O soldado João gostou daquela história de almas do outro
mundo. Viu a grande casa e decidiu entrar. Se houvesse
algum problema, ele tinha o seu bornal!
–
“Sou um soldado que servi o rei durante vinte e quatro anos por um pão e quatro
vinténs e não tenho medo de nada. Sempre quero vêr essa alma do outro mundo...”
Entrou, havia uma salgadeira com boa carne, presuntos no fumeiro e
bom vinho. Acendeu o lume de chão e pôs-se à lareira pronto a assar a carne.
Estava esfomeado. De repente ouviu uma voz grave e forte vinda do alto da
chaminé da lareira:
-
“Olha que eu caio !...”
Ele, sem medo, bebeu um copinho de vinho.
-
“Olha que eu caio!”- disse a voz outra vez.
-
“Olha que eu caio!!”- gritou.
-
“ Cai para aí à vontade. Eu sou o João Soldado, andei vinte e quatro anos a
servir o rei, ganhei um pão e quatro vinténs e não tenho medo de ti”- disse o
João Soldado.
- “Então, lá vai a minha cabeça.”.
E cai a cabeça do homem.
-
“Olha que eu caio!”
-
“ Cai para aí à vontade,
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou."- repetiu o João Soldado.
E cai o braço do homem. E a seguir o outro.
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou."- repetiu o João Soldado.
E cai o braço do homem. E a seguir o outro.
João Soldado ia bebendo sem medo.
-
“Olha que eu caio!”
-
“Cai para aí à vontade,
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou.”
que eu apanhar-te não vou,
para que hei-de eu levantar-me,
se tão bem sentado estou.”
E cairam o tronco e as pernas.
Finalmente, depois de estar o homem inteiro caído no chão, o João
Soldado disse:
-
“E agora?”
-
“ Une-me a cabeça ao tronco!”.
E ele assim fez.
-
“Une-me os braços ao tronco”
E ele assim fez.
-“Une-me
as pernas ao tronco”.
E ele assim fez.
O homem ficou completo.
-
“ E agora?”
-
“Agora ajuda-me a levantar”.
E ele assim fez.
-
“És valente!”
-
“Servi o rei durante vinte e quatro anos e recebi em troca um pão e quatro
vinténs!”, disse João Soldado muito senhor de si.
-
“Se és pobre, podes ficar rico se fizeres o que eu disser”.
-
“O que tenho que fazer?”- perguntou.
-
“Anda comigo.”
E
a alma do outro mundo, seguida do soldado, encaminhou-se para uma casa
subterrânea, que havia por baixo da cozinha. Levantou uma grande pedra que
tapava uma cova e mostrou ao João soldado três grandes potes cheios de
dinheiro.
–
“Vês todo este dinheiro?”- disse a alma do outro mundo.
–
“Vejo sim”.
–
“Pois parte deste dinheiro será para ti se cumprires as minhas ordens”.
–
“Vamos a isso”, respondeu o soldado.
–
“Então reparte este dinheiro em três partes. Uma é para dar de esmolas aos
pobres; outra é para mandares dizer missas pela minha alma; e a terceira parte
é para ti se cumprires à risca a minha vontade.”
–
“Está bem”, disse o soldado. “Eu que servi o rei durante vinte e quatro anos,
por um pão e quatro vinténs, melhor cumpro as tuas ordens, com tão bom pagamento”.
E
o João Soldado foi logo tratar de dar as esmolas aos pobres e de mandar dizer
as missas pela alma do avarento. Com o dinheiro que restou, comprou uma boa
casa e teve uma boa vida, cheia de vinho e comida.
O
Diabo, porém, jurou vingar-se do soldado João, por ele lhe ter tirado a alma do
avarento, que afinal se salvou com as esmolas e as missas. Mandou logo ter com
o João um diabinho dos mais espertos que tinha no Inferno, e ao qual prometeu
mundos e fundos, se lhe trouxesse o João Soldado para o Inferno.
Estava o João sentado à sombra de uma árvore, na sua quinta,
quando lhe apareceu um homemzinho muito cumprimentadeiro :
–
“Como passou o sr. João?”
–
“Ainda agora me vês e já sabes o meu nome?!”, respondeu o soldado meio
desconfiado com aquele homemzinho esquisito e feio.
–
“Tens má cara para santo”, continuou o soldado,” mas se queres uma pinga anda
cá beber”.
O diabinho , muito esperto, respondeu que não queria beber e
convidou o João para que o acompanhasse.
–
“Mas para onde me queres tu levar? Olha que eu servi o rei durante vinte e
quatro anos por um pão e quatro vinténs, e não tenho medo de ti. Se é para o
inferno que me queres levar, deixa que vá arranjar provisões para a viagem.
Olha, essa figueira tem bons frutos, come enquanto eu vou buscar o que
preciso.”
E o diabinho, cada vez mais contente, saltou para a figueira a
saborear os figos grandes.
Quando o soldado voltou, trazia consigo o bornal e logo disse:
-
“Salta já para o meu bornal!”
O
diabinho bem lhe prometeu mundos e fundos mas teve que entrar no bornal. Levou
uma valente sova e foi queixar-se e chorar, com o rabo entre as pernas, para o
Inferno, berrando que metia dó.
O Diabo esperava-o indignado por não ter cumprido a tarefa, e
vociferou infernalmente contra o diabinho, por se ter deixado apanhar como um
parvo, pelo soldado que assim zombava do seu poder.
–
“Quem vai agora buscá-lo sou eu”, disse, muito soberbo o Diabo para o diabinho,
que estava todo encolhido a um canto do inferno, muito dorido e chorando.
Estava
o João a jantar, muito satisfeito, quando bateram à porta com força
tal que tudo estremeceu.
–
“Há-de ser o Diabo”, disse o soldado. “Já cá o esperava depois da sova que dei
ao outro”.
E
assim foi.
O
Diabo entrou de rompante. Os olhos faiscavam raios de lume e cheio de raiva
disse:
–
“Vais pagar tudo o que fizeste ao meu enviado!”
–
“Se vens para cá com essas palavras, vais pelo mesmo caminho do teu diabinho”,
disse o soldado, pondo o bornal a jeito.
–
“Isso é que vamos vêr. Desta vez levo-te para as profundezas do meu reino, como
o mais refinado patife cá deste mundo.”
–
“Olha eu não tenho medo, meu grande Diabo. Servi o rei durante vinte e quatro
anos por um pão e quatro vinténs!”
O Diabo, cada vez mais furioso, ia a deitar as suas garras
ao soldado, quando este, dando um pulo para traz, abriu o bornal em frente ao
Diabo, e gritou:
–
“Já para dentro do bornal!”
Ouviu
se um grande rugido, que o Diabo soltou de dentro do bornal e debatendo-se
furiosamente dava pulos até ao teto, enquanto o soldado armado com
um pau dava pauladas ao Diabo até o deixar quase morto, e a pedir humildemente
por todos os diabos que o deixasse ir para o Inferno.
–
“Ah! Já pedes misericórdia! Pois vai para o Inferno!” e o João abriu o bornal
de onde saiu o Diabo todo partido, de cauda escorrida, mal se podendo arrastar.
Quando
o Diabo chegou ao Inferno ia em tal estado que os diabinhos ficaram aterrados e
todos se uniram cheios de medo à espera das ordens do Diabo. Ele então ordenou
que forjassem grossas trancas de ferro e fabricassem grandes ferrolhos para
trancar as portas do Inferno, com medo que o João soldado lá entrasse.
Entretanto o João soldado viveu a sua vida de excessos e morreu.
Foi parar ao Inferno. Os diabos assim que o viram começaram a gritar:
-
“Fechem tudo, fechem as portas e os postigos ou seremos todos batidos!”Assim
fizeram e o soldado não pôde entrar no Inferno.
Foi então bater às portas do Céu. S. Pedro assim que o viu disse:
-
“Vens enganado. Não entras aqui. Não te lembras da má vida que levaste?”
–
“ Sr. Porteiro, então um soldado que serviu o rei durante vinte e quatro anos
por um pão e quatro vinténs, não pode entrar no Céu?”
S.
Pedro teimou e o João soldado, sem respeitar as barbas brancas de S. Pedro
ameaçou metê-lo dentro do bornal.
–
“Olha que foi a meu pedido que o Senhor te deu esse bornal e tu não te deves
servir dele contra mim.”
–
“Para as ocasiões é que ele serve”, disse o soldado, “e agora é uma boa
ocasião. Ou me deixas entrar, ou vais para dentro do bornal!”.
E,
como S. Pedro ía fechar o postigo, sem lhe dar tempo para mais
discussões, o soldado gritou:
–
“Já para dentro do bornal!”
S.
Pedro viu-se preso dentro do bornal e o João soldado
dentro do céu.
–
“Tira-me daqui” - gritava S.Pedro. “Olha que entra toda a gente!”
Assim
entrou no Céu o João Soldado que serviu o rei durante vinte quatro
anos por um pão e quatro vinténs.
Maria
Luís Koen
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