quinta-feira, 9 de julho de 2020



Memórias da Aldeia


8.  A Matança


(sopa de cachola)



(fumeiro)

     Na aldeia quase todos os habitantes tinham horta e animais: galinhas, patos, coelhos, cabras, ovelhas, vacas e porcos. O meu avô tinha galinhas, coelhos, patos, cabras e porcos.  Depois da engorda, vinha a época das matanças. Geralmente era em janeiro ou fevereiro.  Às vezes no Natal. Estava frio. Vinham os filhos, os netos e os vizinhos também.
    A primeira recordação que tenho, é dorida. Ir para um grande espaço e ouvir guinchos alucinantes de um animal em sofrimento, foi algo que nunca esqueci. Era pequena na altura. Mãos nos ouvidos para tapar o som que não queria ouvir. O porco preso, os homens, vários, a segurá-lo, o grito lancinante do animal e o meu, para não ouvir o dele.
     Mas, já maior e noutro espaço – no quintal da casa da tia e depois na casa do boqueirão -  os guinchos foram iguais e a recordação dorida, mantém-se.  
     Preparado o local onde o animal ia ser colocado, também tinha que haver homens em número suficiente, cordas para o segurar e pendurar, faca para o matar, carqueja para o chamuscar e lenha para o cozinhar. As mulheres também preparavam a matança: a avó e a tia buscavam alguidares de barro que iriam receber as carnes que por elas iriam ser temperadas bem como os alguidares que receberiam as tripas do porco e o sangue ainda quente.
     O avô e outros homens iam buscar o porco à pocilga, que traziam para o local onde iria ser morto. Era atado, vários homens o seguravam- o avô, os primos já homens, o tio, o pai, às vezes mais um ou dois e, era depois morto com uma grande faca espetada no coração.  A imagem dos guinchos e do espernear do porco mantém-se viva.  A faca espetada no coração, o alguidar em baixo a receber o sangue quente, que a tia ou a avó mexiam continuamente. Com ele fazia-se a sopa de cachola comida ao almoço e posteriormente as morcelas.
     O porco  era  então  chamuscado com carqueja a arder. Ainda sinto o cheiro a queimado nas narinas. Depois de chamuscado era raspado com uma faca e lavado.
    Eram sempre dias de grande agitação e festa familiar.
    Para o matar havia vários homens, embora apenas um o fizesse, para o levantar e pendurar no quarto da desmancha, outros tantos.
     Esse quarto tinha um grande gancho preso ao teto. Era aí que o porco era pendurado, já chamuscado, raspado e lavado. Ali ficava a escorrer. O avô, então,  abria o porco de alto a baixo para tirar as tripas e o estômago para um lado e os rins, o fígado, os pulmões e o coração para outro alguidar.
     Havia, ainda, muito a fazer. Limpar o espaço onde o animal tinha sido morto, preparar o almoço. O lume de chão já tinha brasas, pronto para se assarem umas febrinhas só com sal ou o rabo do porco. As primeiras. Preparavam-se as laranjas que acompanhavam a sopa de cachola. Havia queijo que cheirava mal e vinho feito pelo avô. Pão caseiro . Febras e carne de porco assada na brasa. Do resto do almoço, não lembro.
     A matança não acontecia só num dia. Um dia não chegava para tanta azáfama.
     As mulheres tinham a incumbência das tripas do porco. Estas eram muito bem  lavadas e esfregadas pela avó, mãe, tia e outras mulheres numa ribeira com água corrente. Não falo do cheiro. Também não gostava dessa parte. Era um trabalho meticuloso pois se assim não fosse, tudo o que se seguiria ficava estragado. Ficavam guardadas, com sal e não sei se mais alguma coisa, até serem utilizadas. O intestino grosso para umas carnes e o delgado para outros. No porco tudo se aproveitava.
     Só o avô desmanchava o porco. Tenho a imagem bem presente do porco pendurado  e mais tarde, não sei se já no chão, ele a escolher e cortar: os presuntos, orelha, pedaços para isto e para aquilo, cada pedaço no seu alguidar, o toucinho. Daí viriam as morcelas, os paios, as cacholeiras, o bucho, farinheiras, linguiças.  No entretanto, havia sempre umas febrinhas para assar no lume de chão.
     Desmanchado o porco – tudo se aproveitava – voltava o trabalho das mulheres. A avó, a tia e outras mulheres da aldeia cortavam as carnes em pequenos pedaços e  temperavam. Este trabalho era feito com a porta fechada. Sentadas nas pequenas cadeira de palha, migavam, temperavam, mexiam, preparavam. E se alguma mulher, que não elas, entrasse no quarto das carnes, olhavam diretamente nos olhos das pessoas, a saber se estavam com sangue ou não, para não estragar a carne.
    Preparada a carne, deixada a tomar sabor por não sei quantos dias, havia outros preceitos a fazer: escolher o que por na salgadeira, preparar o fumeiro da chaminé.
     Depois havia que encher as tripas lavadas e preparadas. Era trabalho das mulheres, outra vez. Parece que as estou a ver. E a ver-me. E à minha irmã. E à minha mãe. À avó e à tia. Ao pé da grande chaminé. Os alguidares com as carnes, o cheiro a cominhos, as tripas, os funis para poder encher as tripas, o cordel para as atar. O dedo polegar a trabalhar ou um pauzinho. Eram depois fervidas em água, as morcelas naquele dia as outras carnes noutro, que depois se colocavam nas varas do fumeiro: os presuntos, as cacholeiras, as morcelas de sangue, os paios... e ali ficavam até estarem prontos a comer.
       Lembro as conversas e os cheiros.



Maria Luís Koen






1 comentário:

  1. Bom dia
    Foi arrepiante ler esta história da matança. Partilho memórias praticamente iguais: os gritos do porco, o cheiro, a agitação, a angústia....tudo isto marcou a minha infância. Foi noutra diferente aldeia, noutra latitude, mas as memórias são muito iguais. Não é agradável recordar estas coisas. Mas é importante. É pela memória que guardamos que somos quem somos.
    Sabes o que te digo, sinceramente? Que cada vez escreves melhor. Que os teus textos não deviam restringir-se a um blogue, deviam ganhar o Mundo. A sério. Gosto.

    ResponderEliminar