quinta-feira, 25 de abril de 2013

A Roda - PARTE I - 1.Roberta

Parte I
1.
ROBERTA
Setembro. Está sol.
Olhamos ambas através dos óculos escuros. Há gestos sinuosos que nos dizem ser aquele um encontro entre amantes e não entre namorados. Rimo-nos da nossa conversa sem maldade, incomodamos o casalinho que nos olha de soslaio e, secretamente, ambas desejamos ser ela, naquela mesma situação: a que recebe o presente de amor. O mar fustiga-nos com aquele cheiro afrodisíaco, mas pequenos goles do fino relembra-nos que estamos ali e só ali. Conversamos por entre tremoços gelados, sem perdermos um gesto ou um beijo ou um olhar mais quente vindo do par nosso vizinho. Que bom sentir aquele sol, ouvir aquele mar, receber aquela luz, aquele amor! Habituámo-nos a esta conversa mensal, sempre ao som das ondas, às vezes da música serena do bar, num doce e calmo entrelaçar de palavras, tantas vezes as mesmas, sobre nós e as nossas vidas. O vento vem muitas vezes sussurrar, ouvimos, por vezes nem falamos muito, não é preciso. A idade, a amizade, ensinou-nos a amanhecer ou entardecer pacientemente, a suspirar, a calar.
O bar do Zé do Peixe é todo o ano visitado : o peixe é bom e fresco, a música agradável, as bebidas sempre a saber ao que queremos. O Zé é calmo embora brejeiro no trato, sempre disponível para uma boa gargalhada ou uma piadinha mais seca. Conhece-nos e quando ligamos para saber se é preciso marcar mesa, responde que para nós há sempre lugar reservado. Havendo sol,  ficamos numa mesa lá fora,  nas tábuas castanhas e compridas da esplanada; se frio e chuva, ficamos lá dentro, com os vidros molhados de gotas doces e de mar... mas sempre sem falhar, como se de um ritual secreto se tratasse – o de estarmos as duas, Roberta e eu. Amigas de infância, durante dez anos perdemos o contacto mas, uma vez o reencontro, num café de esquina onde nunca entráramos antes, mera coincidência não sei, não mais parámos. Roberta agora casada mas sempre magra. Roberta agora mãe de filhas, mas sempre criança. Roberta agora nos quarenta mas no olhar intenso, no corpo e na postura uma mulher de trinta, aquela que sempre conhecera: alegre, comedida, tímida na sua beleza latina. O casal do encontro levanta-se. Quem será ele? E ela? Que paixão escondida partilham? Que história de amor não podem revelar? Roberta recomeça a tagarelice, ri, fala das filhas, da escola, dos sobreiros, dos penteados das miúdas, da azáfama do dia a dia. Do Rafael. O homem que com ela partilha os suspiros e os desejos.
- És feliz Ana?
             És feliz Ana.
A pergunta entra e não pára: Ana, tu és feliz?
És feliz?
És feliz?
Olhamo-nos nos olhos. O mar fustiga-nos as narinas. Não consigo responder. Uma mordaça invisível impede-me de responder.
Sou feliz?
A cerveja já não tem bolhas, vejo de novo o poço escuro, as promessas não cumpridas, os olhos tristes que me olhavam já sem desespero, numa desistência calma, do que não tem remédio, e agora não sei, não sei se sou feliz.
Porquê esta pergunta ao fim de tantos encontros mensais? Porquê esta e não outra qualquer? Eu não sei se sou feliz. Tenho medo de me perguntar,  de analisar, de buscar a verdade, a resposta. Vejo-me em direcção ao quarto branco, lentamente reparo nas folhas caídas do diário, nas fotografias que escondo dentro da caixa fechada a cadeado, amarelecidas, gastas pelo uso dos meus olhos, penetro nos detalhes das imagens que visualizo, distantes, o vestido branco, uns discos de que me lembro vagamente, umas músicas a bailarem no vácuo das lembranças,  na cabeça um labirinto de incertezas, a chuva ou as lágrimas a molharem um qualquer jornal esborratado, a cama vazia, a dor do não-precisar-de-ninguém. Também os cheiros a mogango com açúcar amarelo, as narinas abertas ao aroma do café escuro, fumegante, e a chuva a bater sem parar, sem parar, na solidão dos cigarros fumados sempre da mesma forma. O último suspiro. Fugir é mais fácil, fugir à perda, à invasão do deserto, ao pensamento do que foi, ao contacto turvo do passado.
Deixei que os olhos negros de Roberta me trouxessem de novo à realidade, me afastassem da tristeza congelada, da crueldade do tempo e que mergulhassem nos meus, que os ouvidos voltassem, lentamente, aos sons da esplanada, que a sua voz suave me encaminhasse do passado ao presente:
- Não respondes Ana? És feliz ou não? Porque eu não sou. Tenho tudo e não sou feliz. Tenho dinheiro e marido e casa e duas filhas maravilhosas e um bom emprego. Mas não sou feliz.
Parecem-me pedras no charco. O azul do céu fica mais escuro, impressão minha, as ondas revoltosas de repente. A música continua a tocar e eu não sei se ouvi ou não, se percebi bem. Parecem-me palavras sem sentido, as dela, fico doída, o azul esborratado do mar a tolher-me,  devagar, e o sol  que se esconde a um canto. Mas penso que sim, os meus olhos fixos nos dela, penso que sim, que este, afinal, é um dia em que não podemos fugir, de nós, do que nos pesa, da nossa angústia escondida, da fuga que nos assusta ou da falta, da tremenda falta do que queremos. Estou encharcada das pingas de infelicidade de Roberta, a bela.
When I’m feeling blue... I can hear your heart beating...”, a música continua a tocar...










(continua)

Maria Luís Koen



thank you Olívia and Mª João

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