Parte I
1.
ROBERTA
Setembro. Está sol.
Olhamos ambas através dos óculos escuros. Há gestos
sinuosos que nos dizem ser aquele um encontro entre amantes e não entre
namorados. Rimo-nos da nossa conversa sem maldade, incomodamos o casalinho que
nos olha de soslaio e, secretamente, ambas desejamos ser ela, naquela mesma
situação: a que recebe o presente de amor. O mar fustiga-nos com aquele cheiro
afrodisíaco, mas pequenos goles do fino relembra-nos que estamos ali e só ali.
Conversamos por entre tremoços gelados, sem perdermos um gesto ou um beijo ou
um olhar mais quente vindo do par nosso vizinho. Que bom sentir aquele sol,
ouvir aquele mar, receber aquela luz, aquele amor! Habituámo-nos a esta
conversa mensal, sempre ao som das ondas, às vezes da música serena do bar, num
doce e calmo entrelaçar de palavras, tantas vezes as mesmas, sobre nós e as
nossas vidas. O vento vem muitas vezes sussurrar, ouvimos, por vezes nem
falamos muito, não é preciso. A idade, a amizade, ensinou-nos a amanhecer ou
entardecer pacientemente, a suspirar, a calar.
O bar do Zé do Peixe é todo o ano visitado : o peixe é
bom e fresco, a música agradável, as bebidas sempre a saber ao que queremos. O
Zé é calmo embora brejeiro no trato, sempre disponível para uma boa gargalhada
ou uma piadinha mais seca. Conhece-nos e quando ligamos para saber se é preciso
marcar mesa, responde que para nós há sempre lugar reservado. Havendo sol, ficamos numa mesa lá fora, nas tábuas castanhas e compridas da
esplanada; se frio e chuva, ficamos lá dentro, com os vidros molhados de gotas
doces e de mar... mas sempre sem falhar, como se de um ritual secreto se
tratasse – o de estarmos as duas, Roberta e eu. Amigas de infância, durante dez
anos perdemos o contacto mas, uma vez o reencontro, num café de esquina onde
nunca entráramos antes, mera coincidência não sei, não mais parámos. Roberta
agora casada mas sempre magra. Roberta agora mãe de filhas, mas sempre criança.
Roberta agora nos quarenta mas no olhar intenso, no corpo e na postura uma
mulher de trinta, aquela que sempre conhecera: alegre, comedida, tímida na sua
beleza latina. O casal do encontro levanta-se. Quem será ele? E ela? Que paixão
escondida partilham? Que história de amor não podem revelar? Roberta recomeça a
tagarelice, ri, fala das filhas, da escola, dos sobreiros, dos penteados das
miúdas, da azáfama do dia a dia. Do Rafael. O homem que com ela partilha os
suspiros e os desejos.
- És feliz Ana?
És
feliz Ana.
A pergunta entra e não pára: Ana, tu és feliz?
És feliz?
És feliz?
Olhamo-nos nos olhos. O mar fustiga-nos as narinas.
Não consigo responder. Uma mordaça invisível impede-me de responder.
Sou feliz?
A cerveja já não tem bolhas, vejo de novo o poço
escuro, as promessas não cumpridas, os olhos tristes que me olhavam já sem
desespero, numa desistência calma, do que não tem remédio, e agora não sei, não
sei se sou feliz.
Porquê esta pergunta ao fim de tantos encontros
mensais? Porquê esta e não outra qualquer? Eu não sei se sou feliz. Tenho medo
de me perguntar, de analisar, de buscar
a verdade, a resposta. Vejo-me em direcção ao quarto branco, lentamente reparo
nas folhas caídas do diário, nas fotografias que escondo dentro da caixa
fechada a cadeado, amarelecidas, gastas pelo uso dos meus olhos, penetro nos
detalhes das imagens que visualizo, distantes, o vestido branco, uns discos de
que me lembro vagamente, umas músicas a bailarem no vácuo das lembranças, na cabeça um labirinto de incertezas, a chuva
ou as lágrimas a molharem um qualquer jornal esborratado, a cama vazia, a dor
do não-precisar-de-ninguém. Também os cheiros a mogango com açúcar amarelo, as
narinas abertas ao aroma do café escuro, fumegante, e a chuva a bater sem
parar, sem parar, na solidão dos cigarros fumados sempre da mesma forma. O
último suspiro. Fugir é mais fácil, fugir à perda, à invasão do deserto, ao
pensamento do que foi, ao contacto turvo do passado.
Deixei que os olhos negros de Roberta me trouxessem de
novo à realidade, me afastassem da tristeza congelada, da crueldade do tempo e
que mergulhassem nos meus, que os ouvidos voltassem, lentamente, aos sons da
esplanada, que a sua voz suave me encaminhasse do passado ao presente:
- Não respondes Ana? És feliz ou não? Porque eu não
sou. Tenho tudo e não sou feliz. Tenho dinheiro e marido e casa e duas filhas
maravilhosas e um bom emprego. Mas não sou feliz.
Parecem-me pedras no charco. O azul do céu fica mais
escuro, impressão minha, as ondas revoltosas de repente. A música continua a
tocar e eu não sei se ouvi ou não, se percebi bem. Parecem-me palavras sem
sentido, as dela, fico doída, o azul esborratado do mar a tolher-me, devagar, e o sol que se esconde a um canto. Mas penso que sim,
os meus olhos fixos nos dela, penso que sim, que este, afinal, é um dia em que
não podemos fugir, de nós, do que nos pesa, da nossa angústia escondida, da
fuga que nos assusta ou da falta, da tremenda falta do que queremos. Estou
encharcada das pingas de infelicidade de Roberta, a bela.
“When I’m feeling blue... I can hear your heart beating...”, a
música continua a tocar...
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