A Roda - Parte I -2. Joana
2.
JOANA
É Domingo outra
vez. Acordo sozinha como sempre. Gosto do meu pequeno apartamento, decorado em
tons brancos, com uns salpicos de cor aqui e ali. Adoro a varanda larga e
comprida, em u, de onde, um pouco ao
longe ou do alto, é certo, vislumbro o azul da piscina que quase sempre me faz
lembrar o mar. O suficiente para me acalmar quando acordo com pouco alento ou
quando me sinto sozinha ou um pouco mais deprimida. A culpa é dele, era sempre
ele que, já na caminhada sem retorno, me
fazia sentir assim, despida, crua, raivosa, retalhada das mentiras que dizia e
que disse até ao fim. Está tudo bem, sim não te preocupes, eu vou ganhar a
batalha. O culpado do tédio era ele, do bocejo nas esplanadas poeirentas e,
agora, das memórias que não param de me assolar, de me amargar, numa montanha
infinita de sensações desavergonhadamente frias, como a água, como o sem sentir
dos objectos que me rodeiam, assim, ocos, parados, desiludidos. Canso-me deste
sentimento frio, desta incapacidade de alegria, deste gelo nos joelhos. A água,
essa que me lava os copos vazios, que me transforma numa fresta de uma janela,
essa, tem a capacidade de quase me purificar, defender das energias menos
positivas que carrego, que odeio, que me embaraçam. Quando os meus olhos estão
vazios, o tapete rasgado, a folhagem seca, e tudo é definitivamente pouco
interessante, mergulho na água quente da banheira, ou fixo o olhar na piscina
azul escura do condomínio. Vejo-me de novo no mesmo sonho, no jorro quente do
nascimento, na água morna que me aplaca a dor, sabendo que não estou sozinha,
que outra vem atrás de mim, no mesmo jorro, na mesma água morna, no mesmo
desejo de luz, que só uma acaba por ver. Aí, recordo a minha tia que, sempre
que me julgava de olhos mais cinzentos, buscava uma taça com água límpida e,
depois de alguma reza e uns pingos de azeite, benzia e afastava o mau-olhado de
que, segundo ela, eu estava carregada. Calçava sapatos de pano branco ou botins
brancos, um horror, falta de gosto, mas não podia dizer, ela não gostaria e
trazia-me sempre flores, alento, muitas vezes dúvidas sobre o que eu sentia e
vivia. Sempre que vinha a minha casa, libertava-me da ansiedade, nunca duvidei
dos seus poderes, do anel que carregava no dedo, da lanterna que eram os olhos
dela. Colocava, dentro de um copo alto, liso e transparente, água até chegar a
dois dedos da borda, misturava sal grosso, que ia buscar à cozinha, e
recomendava uma e outra vez:
“Deixa sempre o
copo atrás da porta da entrada principal da tua casa, filha. Vinte e quatro
horas depois, tens que deitar fora a água que sobrou e o copo pode ser usado
novamente mas, não te esqueças, o copo tem que estar bem limpo e a água também.
Isto, minha filha, para afastar os maus fluidos e os invejosos que entrarem na
tua casa”.
O condomínio é
sossegado, calmo, redondo, rodeado de espaços verdes com uma pinta azul no
meio, que o purifica. Não é o pântano que muitas vezes vejo de noite quando
acordo meio sonâmbula, ávida de algo que me falta, esfomeada de sentir o que
não sei e quero. Às vezes parece o paraíso, como eu o imagino, o cheiro a
jasmim e a ervas pelo ar, os anjos esvoaçando brancos e brilhantes, a regar a
secura do meu peito. Aí quase o sinto sagrado. Não foi essa a opinião da minha
tia quando me visitou pela primeira vez. Disse até que não devia ter comprado
ali apartamento ou coisa alguma. Que os fluidos eram maus e que isso me traria
desordens de carácter físico, a mim e a quem aqui vivesse. Dizia que os
ambientes eram turvos, com um pulsar desordenado e que as folhas não estavam
tão brilhantes quanto deveriam. Afirmou os fumos negros que só ela via, as
moscas fedorentas, sinal de azar, o odor a fruta podre de quando se está a
morrer. Não contente com estas afirmações, não esteve com meias medidas, foi ao
carro buscar a prenda que tinha escolhido para mim por ter uma nova casa: uma
linda pimenteira de tons amarelos e vermelhos, que colocou do lado direito das
grandes janelas, certa de que captaria todos os maus fluidos que a casa tivesse
e eu de tal facto teria a certeza se a dita a qualquer momento secasse.
…
(continua)
Maria Luís Koen
A Roda - Parte I -2. Joana
2.
JOANA
É Domingo outra
vez. Acordo sozinha como sempre. Gosto do meu pequeno apartamento, decorado em
tons brancos, com uns salpicos de cor aqui e ali. Adoro a varanda larga e
comprida, em u, de onde, um pouco ao
longe ou do alto, é certo, vislumbro o azul da piscina que quase sempre me faz
lembrar o mar. O suficiente para me acalmar quando acordo com pouco alento ou
quando me sinto sozinha ou um pouco mais deprimida. A culpa é dele, era sempre
ele que, já na caminhada sem retorno, me
fazia sentir assim, despida, crua, raivosa, retalhada das mentiras que dizia e
que disse até ao fim. Está tudo bem, sim não te preocupes, eu vou ganhar a
batalha. O culpado do tédio era ele, do bocejo nas esplanadas poeirentas e,
agora, das memórias que não param de me assolar, de me amargar, numa montanha
infinita de sensações desavergonhadamente frias, como a água, como o sem sentir
dos objectos que me rodeiam, assim, ocos, parados, desiludidos. Canso-me deste
sentimento frio, desta incapacidade de alegria, deste gelo nos joelhos. A água,
essa que me lava os copos vazios, que me transforma numa fresta de uma janela,
essa, tem a capacidade de quase me purificar, defender das energias menos
positivas que carrego, que odeio, que me embaraçam. Quando os meus olhos estão
vazios, o tapete rasgado, a folhagem seca, e tudo é definitivamente pouco
interessante, mergulho na água quente da banheira, ou fixo o olhar na piscina
azul escura do condomínio. Vejo-me de novo no mesmo sonho, no jorro quente do
nascimento, na água morna que me aplaca a dor, sabendo que não estou sozinha,
que outra vem atrás de mim, no mesmo jorro, na mesma água morna, no mesmo
desejo de luz, que só uma acaba por ver. Aí, recordo a minha tia que, sempre
que me julgava de olhos mais cinzentos, buscava uma taça com água límpida e,
depois de alguma reza e uns pingos de azeite, benzia e afastava o mau-olhado de
que, segundo ela, eu estava carregada. Calçava sapatos de pano branco ou botins
brancos, um horror, falta de gosto, mas não podia dizer, ela não gostaria e
trazia-me sempre flores, alento, muitas vezes dúvidas sobre o que eu sentia e
vivia. Sempre que vinha a minha casa, libertava-me da ansiedade, nunca duvidei
dos seus poderes, do anel que carregava no dedo, da lanterna que eram os olhos
dela. Colocava, dentro de um copo alto, liso e transparente, água até chegar a
dois dedos da borda, misturava sal grosso, que ia buscar à cozinha, e
recomendava uma e outra vez:
“Deixa sempre o
copo atrás da porta da entrada principal da tua casa, filha. Vinte e quatro
horas depois, tens que deitar fora a água que sobrou e o copo pode ser usado
novamente mas, não te esqueças, o copo tem que estar bem limpo e a água também.
Isto, minha filha, para afastar os maus fluidos e os invejosos que entrarem na
tua casa”.
O condomínio é
sossegado, calmo, redondo, rodeado de espaços verdes com uma pinta azul no
meio, que o purifica. Não é o pântano que muitas vezes vejo de noite quando
acordo meio sonâmbula, ávida de algo que me falta, esfomeada de sentir o que
não sei e quero. Às vezes parece o paraíso, como eu o imagino, o cheiro a
jasmim e a ervas pelo ar, os anjos esvoaçando brancos e brilhantes, a regar a
secura do meu peito. Aí quase o sinto sagrado. Não foi essa a opinião da minha
tia quando me visitou pela primeira vez. Disse até que não devia ter comprado
ali apartamento ou coisa alguma. Que os fluidos eram maus e que isso me traria
desordens de carácter físico, a mim e a quem aqui vivesse. Dizia que os
ambientes eram turvos, com um pulsar desordenado e que as folhas não estavam
tão brilhantes quanto deveriam. Afirmou os fumos negros que só ela via, as
moscas fedorentas, sinal de azar, o odor a fruta podre de quando se está a
morrer. Não contente com estas afirmações, não esteve com meias medidas, foi ao
carro buscar a prenda que tinha escolhido para mim por ter uma nova casa: uma
linda pimenteira de tons amarelos e vermelhos, que colocou do lado direito das
grandes janelas, certa de que captaria todos os maus fluidos que a casa tivesse
e eu de tal facto teria a certeza se a dita a qualquer momento secasse.
…
(continua)
Maria Luís Koen
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