sábado, 27 de abril de 2013




A Roda - Parte I -2. Joana

2.
JOANA
É Domingo outra vez. Acordo sozinha como sempre. Gosto do meu pequeno apartamento, decorado em tons brancos, com uns salpicos de cor aqui e ali. Adoro a varanda larga e comprida, em u,  de onde, um pouco ao longe ou do alto, é certo, vislumbro o azul da piscina que quase sempre me faz lembrar o mar. O suficiente para me acalmar quando acordo com pouco alento ou quando me sinto sozinha ou um pouco mais deprimida. A culpa é dele, era sempre ele que, já na caminhada sem retorno,  me fazia sentir assim, despida, crua, raivosa, retalhada das mentiras que dizia e que disse até ao fim. Está tudo bem, sim não te preocupes, eu vou ganhar a batalha. O culpado do tédio era ele, do bocejo nas esplanadas poeirentas e, agora, das memórias que não param de me assolar, de me amargar, numa montanha infinita de sensações desavergonhadamente frias, como a água, como o sem sentir dos objectos que me rodeiam, assim, ocos, parados, desiludidos. Canso-me deste sentimento frio, desta incapacidade de alegria, deste gelo nos joelhos. A água, essa que me lava os copos vazios, que me transforma numa fresta de uma janela, essa, tem a capacidade de quase me purificar, defender das energias menos positivas que carrego, que odeio, que me embaraçam. Quando os meus olhos estão vazios, o tapete rasgado, a folhagem seca, e tudo é definitivamente pouco interessante, mergulho na água quente da banheira, ou fixo o olhar na piscina azul escura do condomínio. Vejo-me de novo no mesmo sonho, no jorro quente do nascimento, na água morna que me aplaca a dor, sabendo que não estou sozinha, que outra vem atrás de mim, no mesmo jorro, na mesma água morna, no mesmo desejo de luz, que só uma acaba por ver. Aí, recordo a minha tia que, sempre que me julgava de olhos mais cinzentos, buscava uma taça com água límpida e, depois de alguma reza e uns pingos de azeite, benzia e afastava o mau-olhado de que, segundo ela, eu estava carregada. Calçava sapatos de pano branco ou botins brancos, um horror, falta de gosto, mas não podia dizer, ela não gostaria e trazia-me sempre flores, alento, muitas vezes dúvidas sobre o que eu sentia e vivia. Sempre que vinha a minha casa, libertava-me da ansiedade, nunca duvidei dos seus poderes, do anel que carregava no dedo, da lanterna que eram os olhos dela. Colocava, dentro de um copo alto, liso e transparente, água até chegar a dois dedos da borda, misturava sal grosso, que ia buscar à cozinha, e recomendava uma e outra vez: 
“Deixa sempre o copo atrás da porta da entrada principal da tua casa, filha. Vinte e quatro horas depois, tens que deitar fora a água que sobrou e o copo pode ser usado novamente mas, não te esqueças, o copo tem que estar bem limpo e a água também. Isto, minha filha, para afastar os maus fluidos e os invejosos que entrarem na tua casa”.
O condomínio é sossegado, calmo, redondo, rodeado de espaços verdes com uma pinta azul no meio, que o purifica. Não é o pântano que muitas vezes vejo de noite quando acordo meio sonâmbula, ávida de algo que me falta, esfomeada de sentir o que não sei e quero. Às vezes parece o paraíso, como eu o imagino, o cheiro a jasmim e a ervas pelo ar, os anjos esvoaçando brancos e brilhantes, a regar a secura do meu peito. Aí quase o sinto sagrado. Não foi essa a opinião da minha tia quando me visitou pela primeira vez. Disse até que não devia ter comprado ali apartamento ou coisa alguma. Que os fluidos eram maus e que isso me traria desordens de carácter físico, a mim e a quem aqui vivesse. Dizia que os ambientes eram turvos, com um pulsar desordenado e que as folhas não estavam tão brilhantes quanto deveriam. Afirmou os fumos negros que só ela via, as moscas fedorentas, sinal de azar, o odor a fruta podre de quando se está a morrer. Não contente com estas afirmações, não esteve com meias medidas, foi ao carro buscar a prenda que tinha escolhido para mim por ter uma nova casa: uma linda pimenteira de tons amarelos e vermelhos, que colocou do lado direito das grandes janelas, certa de que captaria todos os maus fluidos que a casa tivesse e eu de tal facto teria a certeza se a dita a qualquer momento secasse.

(continua)
Maria Luís Koen

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