quinta-feira, 25 de abril de 2013

Pétalas estória1


Pétalas - dez estórias



1.
Passou cinco anos num torpor adormecido até que um dia, num sonho,  ao pegar numa flor, cai uma pétala e ela acorda dentro do sonho. Acorda sem saber sair dali, sem conseguir pegar na pétala que esvoaçou, com a flor incompleta na mão, os olhos esbugalhados de surpresa, dormindo acordada dentro de si própria, a querer voar com a pétala, a querer agarrá-la para poder voltar a dormir.
E é assim todas as noites.
Todas as noites Isabel tem o mesmo sonho dentro do sono. Todas as noites a mesma falta de descanso, a mesma busca, o mesmo descontrolo. De manhã quando acorda, no entanto, a flor continua no vaso, intacta, viçosa, suave. Não parece a mesma do sonho interminável de todas as noites dos últimos cinco anos.
Isabel pensa naquilo todos os segundos durante o dia, quando trabalha e quando descansa, quando come, quando está absorta num filme e deixa de estar, porque a imagem da flor sem a pétala torna-se numa obsessão carregada de porquês, de tentativas de explicação, de buscas e interrogações. São dias cansativos, em que tudo se transforma em branco sedoso, todos em forma sinuosa e macia ao toque, todos cúmplices de um mesmo sonho – o dela.
No trabalho acham-na estranha, tipo bicho do mato, com quem é difícil estabelecer uma conexão, uma qualquer ligação, um qualquer contacto. Parece que ela nunca está ali, nunca está presente, nunca é capaz de ouvir, sempre com um olhar distante, que sim mas não, a escrever as frases ditas numa agenda ou apenas a consultar não se sabe bem o quê. Até chegar o fim do dia e ela sair, sem dizer nada ou então dizendo muito pouco, com o vaso na mão. Para chegar no outro dia, com o mesmo vaso, a mesma flor, a mesma loucura espelhada no olhar, o mesmo desconforto.
Chega à noite cansada de tanto pensar na pétala, desejosa de voltar a sonhar o mesmo sonho, de sentir o vento quente e doce a levar-lhe a pétala, a pétala a desprender-se da flor, ligeira no ar, em círculos lentos e ela a olhar, a tentar seguir-lhe o rasto, os círculos, os movimentos que só uma pétala pode ter. A tentar até conseguir dobrar assim o corpo, moldar-se assim ao movimento, ao ar, ao quente, ser pétala.
Acorda na frustração de  mais um dia, como todos os outros, em que, de vaso na mão, não é a pétala do sonho. Mas vai, segue o  caminho que conhece desde sempre, o café no mesmo sítio, o cheiro sempre o mesmo do emprego. Os papéis, a agenda, o restolhar de sons sempre iguais e inseparáveis do lugar sem fantasia.
É aí que poisa o vaso e recomeça a sonhar.

(continua)

Maria Luís Koen

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