Pétalas - dez estórias
1.
Passou cinco anos num torpor adormecido até que um dia, num
sonho, ao pegar numa flor, cai uma
pétala e ela acorda dentro do sonho. Acorda sem saber sair dali, sem conseguir
pegar na pétala que esvoaçou, com a flor incompleta na mão, os olhos
esbugalhados de surpresa, dormindo acordada dentro de si própria, a querer voar
com a pétala, a querer agarrá-la para poder voltar a dormir.
E é assim todas as noites.
Todas as noites Isabel tem o mesmo sonho dentro do sono. Todas
as noites a mesma falta de descanso, a mesma busca, o mesmo descontrolo. De
manhã quando acorda, no entanto, a flor continua no vaso, intacta, viçosa,
suave. Não parece a mesma do sonho interminável de todas as noites dos últimos
cinco anos.
Isabel pensa naquilo todos os segundos durante o dia, quando
trabalha e quando descansa, quando come, quando está absorta num filme e deixa
de estar, porque a imagem da flor sem a pétala torna-se numa obsessão carregada
de porquês, de tentativas de explicação, de buscas e interrogações. São dias
cansativos, em que tudo se transforma em branco sedoso, todos em forma sinuosa
e macia ao toque, todos cúmplices de um mesmo sonho – o dela.
No trabalho acham-na estranha, tipo bicho do mato, com quem é
difícil estabelecer uma conexão, uma qualquer ligação, um qualquer contacto.
Parece que ela nunca está ali, nunca está presente, nunca é capaz de ouvir,
sempre com um olhar distante, que sim mas não, a escrever as frases ditas numa
agenda ou apenas a consultar não se sabe bem o quê. Até chegar o fim do dia e
ela sair, sem dizer nada ou então dizendo muito pouco, com o vaso na mão. Para
chegar no outro dia, com o mesmo vaso, a mesma flor, a mesma loucura espelhada
no olhar, o mesmo desconforto.
Chega à noite cansada de tanto pensar na pétala, desejosa de
voltar a sonhar o mesmo sonho, de sentir o vento quente e doce a levar-lhe a
pétala, a pétala a desprender-se da flor, ligeira no ar, em círculos lentos e
ela a olhar, a tentar seguir-lhe o rasto, os círculos, os movimentos que só uma
pétala pode ter. A tentar até conseguir dobrar assim o corpo, moldar-se assim
ao movimento, ao ar, ao quente, ser pétala.
Acorda na frustração de mais um dia, como todos os outros, em que, de
vaso na mão, não é a pétala do sonho. Mas vai, segue o caminho que conhece desde sempre, o café no
mesmo sítio, o cheiro sempre o mesmo do emprego. Os papéis, a agenda, o
restolhar de sons sempre iguais e inseparáveis do lugar sem fantasia.
É aí que poisa o vaso e recomeça a sonhar.
(continua)
Maria Luís Koen
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