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Foi uma sorte ter
olhado para os anúncios do jornal da terra nesse dia, que é coisa que nunca
faço. Anúncios descartáveis, como as cartas que me escrevias quando estavas
longe. Agora já não escreves, já não me deixas inquieta de tanta espera. Quando
quero, sei que estás sempre ali, fechado, naquele canto, naquele lugar para
onde todos vamos um dia. Mas nada acontece por acontecer: os sentimentos, as
pessoas, as emoções, as paixões, as bebidas que tomamos juntos, os filmes que
alugamos, o nada que me deixaste, os cacos de felicidade deitados no lixo.
Acasos proibidos, ilusões.
Nesse dia,
folheei sem objectivo as páginas do jornal, sentada no sofá, o cinzeiro cheio
de beatas malcheirosas de uma ou muitas noites mal dormidas, como quando era feliz
e esperava que tu viesses, limpa e calma, a casa a cheirar a comida e a bolo de
chocolate. Mas agora não, agora as taquicardias deixaram de me preocupar, não
tenho mais as unhas roídas, afundo-me na ansiedade do dia a dia, do
casa-trabalho, do quotidiano feio e sem chama, as olheiras fundas de um cansaço
que vem de dentro. No sofá, reparo em letras mais gordas:
Vendo apartamento T2 no
Condomínio da Roda
Excelente
localização
2 quartos,
armários no W.C. e cozinha, 1 lugar de garagem, sistema automático no portão
principal e nas entradas, madeira na
sala, 5 anos de uso, único dono. 70.000,00.Euros
Contacto: Isaac Azenha – 915 904 481
Localidade: Evora
Quartos: 2 quartos
Lugar
de garagem: 1
Unidades
por andar: 2 por andar
Área
(m²): De 60 a 90m²
Valor
de Condomínio: 70 euros
O
imóvel possui: Armários no W.C
e cozinha, pré-instalação de ar condicionado e lareira na sala
O Condomínio
possui: 2 court de ténis, piscina exterior, sauna, banho turco, espaços verdes,
garagens na cave, elevador, portas com controlo automático, estacionamento
exterior
Contacto:
isaacazenha@hotmail.com
Durante todo o
dia “A Roda” não me largou nem sequer no consultório. O nome agradava-me, o
preço também era bom, não podia deixar escapar esta oportunidade de sair do
local onde vivia no momento, que me sufocava, me prendia, me deixava em
insónias permanentes, que pareciam espinhos, picos, arestas encontradas em
feios barracões das quintas. O nome do contacto também me trazia reminiscências
positivas dos tempos em que Roberta e eu conversávamos ininterruptamente ao
longo da ribeira e em direcção às azenhas. Dizíamos tudo sem vergonha ou pudor,
os sentimentos mais descarnados, o amor de um só dia ou noite, a estranheza da
solidão que existe no campo, a vontade de construir não sei o quê, de destruir
as rejeições, os quotidianos dramáticos, o prazer artificial. Depois despíamos
a roupa e mergulhávamos na ribeira fresca, em risadas de alegria e
cumplicidade.
Não é que não
gostasse do local ou da pessoa com quem actualmente partilhava as despesas, mas
desejava muito ter o meu próprio espaço. Outro espaço. Aquele em que me
sentisse livre. De memórias, de segredos, de vivências. Longe de recordações
amargas, de recordações felizes, de perdas ou loucuras. Sei que nem sempre era
a companhia ideal e gostava de uma certa solidão ou calma, sem intromissões de qualquer espécie, o que
se tornava difícil, dividindo o espaço com uma pessoa tão extrovertida,
constantemente a trocar de namorado - que fazia questão em me apresentar - como
a minha companheira de casa. Além do mais, o nome deste contacto não me era
totalmente estranho mas não sabia bem onde, ou da boca de quem, o tinha ouvido.
Quando saí, às
nove, chego à antiga casa que partilho, agora,
com a interna de medicina e, já no quarto, ligo ao senhor Isaac Azenha,
combino para o dia seguinte a visita ao dito apartamento. Daí à compra é um
mês, que o dono queria vender, sem especificar qualquer razão, apenas que
queria vender. Estranhei, mas o espaço acolhedor, o fim da tarde, o azul
límpido da piscina, o cheiro a flores e a verde já seco, a Setembro, o sossego
do local, foram suficientes para não perguntar coisa alguma.
Vendeu.
Maria Luís Koen
(continua)
Belíssimo texto, de uma sensibilidade que se sente gritar, palavra por palavra.
ResponderEliminarDesencanto? Ou reencontro?
Mistério!!
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