segunda-feira, 29 de abril de 2013

A Roda



Foi uma sorte ter olhado para os anúncios do jornal da terra nesse dia, que é coisa que nunca faço. Anúncios descartáveis, como as cartas que me escrevias quando estavas longe. Agora já não escreves, já não me deixas inquieta de tanta espera. Quando quero, sei que estás sempre ali, fechado, naquele canto, naquele lugar para onde todos vamos um dia. Mas nada acontece por acontecer: os sentimentos, as pessoas, as emoções, as paixões, as bebidas que tomamos juntos, os filmes que alugamos, o nada que me deixaste, os cacos de felicidade deitados no lixo. Acasos proibidos, ilusões.
Nesse dia, folheei sem objectivo as páginas do jornal, sentada no sofá, o cinzeiro cheio de beatas malcheirosas de uma ou muitas noites mal dormidas, como quando era feliz e esperava que tu viesses, limpa e calma, a casa a cheirar a comida e a bolo de chocolate. Mas agora não, agora as taquicardias deixaram de me preocupar, não tenho mais as unhas roídas, afundo-me na ansiedade do dia a dia, do casa-trabalho, do quotidiano feio e sem chama, as olheiras fundas de um cansaço que vem de dentro. No sofá, reparo em letras mais gordas:
Vendo apartamento T2 no Condomínio da Roda
Excelente localização
2 quartos, armários no W.C. e cozinha, 1 lugar de garagem, sistema automático no portão principal e nas entradas,  madeira na sala, 5 anos de uso, único dono. 70.000,00.Euros
Contacto:   Isaac Azenha – 915 904 481
Localidade: Evora
Quartos: 2 quartos
Lugar de garagem: 1
Unidades por andar: 2 por andar
Área (m²): De 60 a 90m²
Valor de Condomínio: 70 euros
O imóvel possui: Armários no W.C e cozinha, pré-instalação de ar condicionado e lareira na sala
O Condomínio possui: 2 court de ténis, piscina exterior, sauna, banho turco, espaços verdes, garagens na cave, elevador, portas com controlo automático, estacionamento exterior
Contacto: isaacazenha@hotmail.com

Durante todo o dia “A Roda” não me largou nem sequer no consultório. O nome agradava-me, o preço também era bom, não podia deixar escapar esta oportunidade de sair do local onde vivia no momento, que me sufocava, me prendia, me deixava em insónias permanentes, que pareciam espinhos, picos, arestas encontradas em feios barracões das quintas. O nome do contacto também me trazia reminiscências positivas dos tempos em que Roberta e eu conversávamos ininterruptamente ao longo da ribeira e em direcção às azenhas. Dizíamos tudo sem vergonha ou pudor, os sentimentos mais descarnados, o amor de um só dia ou noite, a estranheza da solidão que existe no campo, a vontade de construir não sei o quê, de destruir as rejeições, os quotidianos dramáticos, o prazer artificial. Depois despíamos a roupa e mergulhávamos na ribeira fresca, em risadas de alegria e cumplicidade.
Não é que não gostasse do local ou da pessoa com quem actualmente partilhava as despesas, mas desejava muito ter o meu próprio espaço. Outro espaço. Aquele em que me sentisse livre. De memórias, de segredos, de vivências. Longe de recordações amargas, de recordações felizes, de perdas ou loucuras. Sei que nem sempre era a companhia ideal e gostava de uma certa solidão ou calma,  sem intromissões de qualquer espécie, o que se tornava difícil, dividindo o espaço com uma pessoa tão extrovertida, constantemente a trocar de namorado - que fazia questão em me apresentar - como a minha companheira de casa. Além do mais, o nome deste contacto não me era totalmente estranho mas não sabia bem onde, ou da boca de quem, o tinha ouvido.
Quando saí, às nove, chego à antiga casa que partilho, agora,  com a interna de medicina e, já no quarto, ligo ao senhor Isaac Azenha, combino para o dia seguinte a visita ao dito apartamento. Daí à compra é um mês, que o dono queria vender, sem especificar qualquer razão, apenas que queria vender. Estranhei, mas o espaço acolhedor, o fim da tarde, o azul límpido da piscina, o cheiro a flores e a verde já seco, a Setembro, o sossego do local, foram suficientes para não perguntar coisa alguma.

Vendeu.



Maria Luís Koen
(continua)



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