sexta-feira, 9 de abril de 2021

Perdido

 

                                                   (Serena Rosenfeld)


Sinto-me perdido neste ciclo de acontecimentos que surgem rapidamente umas vezes e, muito lentamente, outras. Perdido e desgastado, cansado, às vezes triste, muitas sequioso de mais e mais. Hoje sinto um aperto no coração, mas não é sempre. É hoje que sinto, talvez por estar vivo e não morto, digo fisicamente, porque posso estar morto de outras maneiras, por exemplo de desespero, por não conseguir mudar o destino. Amanhã posso sentir o oposto, não sentir medo, nem dor, nem vazio , como a preparar-me para nascer outra vez. Por isso olho no espelho e penso que se fosse mágico podia escolher o meu destino, amanhecer com sol sempre que quisesse, enterrar a morte das coisas que gosto. 


Maria Luís Koen


terça-feira, 6 de abril de 2021

Outono mas parece Primavera

 

(@Anna Silivonshik)



São seis da manhã e é Outono mas parece Primavera. O sol ainda não nasceu e a claridade passa pelas gretas da janela. O autocarro é só às oito, ainda tenho tempo para ganhar coragem e dizer-lhe, sim coragem, porque há certos assuntos que são difíceis de abordar e, por isso mesmo, não os dizemos. Mas hoje talvez consiga. Talvez consiga e não fique calado, mas tenho medo. Umas vezes falamos e o outro entende algo diferente, não o que dissemos. Parece que o som transforma as nossas palavras noutras palavras e noutros sons. Ainda assim, é melhor dizer, é melhor eu hoje falar, ganhar coragem e dizer, senão pode acontecer nunca mais ter essa conversa e ficaremos com saudades daquilo que não dissemos, das palavras que não ouvimos e, por causa disso, do que não sentimos. O autocarro é só às oito, vou levantar-me, chegar perto e, ao pequeno-almoço, falar-lhe de como gosto de sentir o fio dos seus cabelos nas minhas mãos ou do seu sorriso manso quando largamos as bicicletas junto à nossa árvore,  passeamos de mãos dadas no jardim e paramos para ver sempre o mesmo pato, colorido. Eu sei que não digo as coisas ou digo só com o pensamento e, por isso, ela não ouve mas mesmo com todos os silêncios, sabe que gosto dela quando a abraço de uma forma especial ou quando lhe toco nos fios dourados do cabelo. Os beijos que damos à sombra da nossa árvore fazem-me cantar loucamente por dentro mas sei que vai rir se o disser, ou melhor, não sei mas imagino e continuo a querer e a crer que as mãos que damos são verdadeiras, que os nossos corpos nus não são miragens e que  não quero continuar nesta incerteza que me mata.


Maria Luís Koen


segunda-feira, 5 de abril de 2021

Carícias

 

                                                    (@João Alfaro)


     Todas as tardes de sexta feira havia encontro. Ele esperava ansiosamente por ela, mas só no início. Depois tornou-se um hábito e ele, certo de que ela não faltava, já nem esperava com anseio ou desespero, nem comprava os doces que ela tanto gostava ou fazia sequer as pequenas surpresas que ela tanto adorava. Era assim e foi assim durante muito tempo. A rotina era tanta que muitas vezes não falavam, só o estar ali juntos era suficiente. Sentados, viam um filme, ou dois ou três filmes, quase a noite toda e pouco sobrava para se olharem por dentro. Outras vezes ficavam por ali, em casa, cada um entregue aos seus pensamentos, sem nada esperar um do outro, sem frustrações, medos ou acusações. Era assim. Desamparo que ambos amparavam. Não sabe o que fez alterar a situação, tentou muitas vezes relembrar qualquer detalhe diferente ou algo que tivesse despoletado a mudança, mas nada lhe ocorreu.  Ela não apareceu. Esperou a tarde toda, foi ao calendário do telemóvel verificar se era de facto sexta-feira e era, mas não ficou ansioso. Desesperadamente procurou na memória algo que ele ou ela tivessem dito mas raramente diziam algo. Pensou : talvez tivesse sido o que não foi dito. Talvez. Ou a falta de carícias.


Maria Luís Koen

quinta-feira, 1 de abril de 2021

 

Tom Shropshire


Como é possível ficarmos cegos e aceitarmos tudo o que antes não queríamos? Dizemos que sim, sim e não resistimos. Deixamos em parte incerta todos os nossos sonhos e projetos, sem nos apercebermos que estamos errados, que devemos lutar, que não devemos aceitar só porque é importante para a outra pessoa. Imersa nestes pensamentos, distraio -me com o som que vem da janela da sala: chove. São pequenas pedras brancas minúsculas, que batem às vezes com força nos vidros e depois desenham pequenos ribeiros de água, que sigo com os olhos, até fazerem um pequeno lago do lado de fora. É isso. Vejo no espelho que é o vidro da janela, um percurso frio, que nos alaga e, no final, mais tarde, dizemos:

– como é possível ter aceite, como é possível não ter mudado, como é possível ter hesitado, não ter resistido?


Maria Luís Koen

quarta-feira, 31 de março de 2021

Fantasmas

 

  Vincent van Gogh


São duas da manhã e não se ouve um som, tudo está calmo e dorme. Pode ser Domingo ou Sábado ou um qualquer outro, não interessa. Imagino as pessoas deitadas, em sonos profundos. Menos eu que deambulo, sem nexo, pelos armários da cozinha, para comer qualquer coisa, para pensar nada, o que é impossível. A sala está ali mesmo em frente, posso remexer nos livros apesar de não querer lêr, posso ligar a TV e nada ver, posso sentar-me no sofá e comer um iogurte grego com bolachas e banana. Posso isso tudo porque são duas da manhã e não há barulho que me incomode.  Fico feliz com isso, mas o silêncio também pode perturbar- às vezes mais do que o barulho, porque não silencia os pensamentos, não apaga  as memórias e as preocupações que não queremos ter. É isso que irrita. O dia inteiro imersa em atividades e, depois, o pretenso descanso transforma-se num turbilhão de inseguranças e a noite torna-se maldição. É isto, não é? Tudo fica nu e a crueldade nua das coisas magoa. Por vezes, o som de um cão ou de uma gata que mia distrai-nos destas noites insensatas, em que não suportamos os fantasmas que nos confundem e não entendem nada.


Maria Luís Koen


terça-feira, 30 de março de 2021

 


                                                                  Paulo Potinari

         



Todos os dias é mais do mesmo, a mesma lenga lenga do dia a dia, a mesma rotina seca e fria, os mesmos monocórdicos pensamentos, talvez o mesmo sol, as mesmas plantas. Parece que a vida não passa, o jogo mantém-se igual e depois, afinal, há movimento porque a planta murchou, eu reguei mas não foi suficiente ou não falei com ela e não fotografei, não mimei o bastante. Não soube entender a sua língua, as fadas foram morar noutros vasos que não os meus. Por isso, os dias passam lentamente, até as emoções virarem pó e eventualmente morrerem.


Maria Luís Koen


Amor ou Teia?

 


@Palma OneShot



Chegou, tocou à campainha e pediu-me para caminhar, respirar o mar, que precisava muito. A incerteza minava -lhe a mente, o não saber o que fazer, o que responder, o que dizer. Queria muito amar a pessoa que ele era, com os seus defeitos algo exóticos, as paranóias fantásticas que tinha e que a cansavam, demasiado.  O desejo e o medo, os dois que a paralizavam, não a deixavam respirar, decidir. Não queria arrepender-se, não queria ferir e ferir-se,  também não queria esta amargura triste de nada fazer. Era como cair num poço ou quase cair, sentia isso mesmo, a cabeça à roda, tonta de tanto pensar e cada vez mais emaranhada nas suas próprias angústias. Noites sem dormir, a ver o poço no fundo e as nuvens no alto. Acordar, beber leite quente para tentar dormir. Digo que sim? Mas ele é louco. Esgota-me sempre, todos os dias, com o seu egoísmo indecente, a sua fome individualista que me prende. Sinto-me presa, presa, não vês? Luto pela liberdade mas quero estar na prisão. Sinto-me morrer se o aceitar, estou já morta se não o fizer. Diz-me, isto é o quê? Amor ou teia?


Maria Luís Koen


segunda-feira, 29 de março de 2021

Tão depressa veio como foi.

 

@Palma OneShot


     Tão depressa veio como foi.

    Disse isto cem vezes sem falar, ou talvez mais, disse com o pensamento porque veio rápido sim,  mas foi tão depressa que não deixou rasto profundo ou sentimento que valesse a pena guardar cá dentro. Um foguete, algo assim de sopetão, como uma imagem que surge no canto do olho quando caminhamos no campo ou quando, sentados no sofá da sala, olhamos sem ver para a televisão. Uma bola, gigante. Ainda assim, fui conferir se a presença dele valeu a pena, se deixou saudade, algo que faça falta. Posso dizer que sim, que deixou silêncios e fragmentos sem conexão, depois de dois ou três almoços. E posso dizer que não, que falta realmente não faz mas fica sempre um vazio de não sei o quê, talvez do nada ou do vago, que se esvazia rápido. Uma possibilidade fragmentada  ou algo que poderia fazer sentido se o magnetismo fosse outro, que suavemente puxasse ou obssessivamente matasse.

     Talvez por isso depressa foi, por redondas travessas, no meio da poeira de um dia seco, a fumar pensando que ninguém  via o rasto da sua presença breve,  ausência.


Maria Luís Koen


Primavera

   

Carmen Guedez

    Todas as flores do campo, 

todos os cheiros,

todas as cores que o vento empurra.

Toda a maresia, areia dourada

Toda a lua cheia

Que abraça e aperta

Um nó que atravessa.

Não é dor no peito, não é tristeza

É celebração que não se aguenta.

Dizem que é o aroma anestesiante, 

potente

Dos maios e damas da noite

Ou a cor suave do amor perfeito

Amarelo estasiante.

Há quem morra hoje

E a Primavera (re)nasça 

amanhã.


Maria Luís Koen


quarta-feira, 5 de agosto de 2020



Memórias da Aldeia

15. O falar





     Da primeira vez que levei uma amiga para passar uns dias na aldeia percebi que a pronúncia típica da região era um quebra-cabeças para os de fora. Primeiro porque muito cerrada, segundo porque rica em palavras diferentes do vocabulário habitual. Se para mim era, às vezes, um desafio tentar descobrir os sinónimos de algumas palavras, para quem vinha de fora, de Lisboa, por exemplo, era muito mais complicado.
     Quando levei a Cris comigo para passar uns dias na casa dos avós, foi uma alegria, confesso. Para ela foi uma experiência diferente pois, como lisboeta com costela espanhola, estar ali era como estar algures num país desconhecido. “Falam como nos Açores” – disse. “Não percebo nada do que diz a tua avó”- voltou a dizer. “Que dialeto falam aqui?” – perguntou.
     Tenho na memória o susto que apanhou quando a avó lhe disse que tinha uma grande garra na blusa. Pensando ser um qualquer bicho estranho da região, a Cris berrou para que rapidamente alguém a ajudasse. Claro que rimos, incluindo a avó. Parece-me que, agora à distância, ela talvez tivesse dito aquilo de propósito para brincar.
     Do que disse e perguntou, não foi a única, pois sempre que levava alguém de outros locais, as constatações e dificuldades eram as mesmas. Por um lado, a avó e as pessoas da aldeia pronunciavam os “u” como os franceses o fazem, por outro, com as outras vogais do alfabeto acontecia algo parecido. Com os ditongos também era diferente. Resultado: era difícil compreender o que diziam: a pronúncia era “muito fechada”.  Há estudos de linguístas sobre este assunto e sobre as razões historico-culturais destas diferenças. A tese de doutoramento em linguística “Linguagem do sueste da Beira no tempo e no espaço” de Fernando Jorge Brissos, é disso um exemplo.
     Apesar de ter que ser a “tradutora” sempre que os avós ou outros falavam, isso não impediu que a minha amiga Cris gostasse das pessoas, das suas vestes, da aldeia e da paisagem campestre. Foi um susto para nós quando não a encontrámos em casa... Afinal tinha decidido ir até ao campo, mesmo ali ao lado, relaxar e sentir os cheiros e as cores que lhe eram oferecidos.
     Ficou tão impressionada com esta primeira experiência que, aquando de um trabalho para uma cadeira de linguística, foi buscar alguns exemplos do que ouvira na aldeia.
     O falar próprio da aldeia é difícil de se perder e muitos, mesmo mudando de vida e de terra, continuam com o mesmo sotaque fechado característico da zona.


Maria Luís Koen






12

(Luís Silveira)



quinta-feira, 30 de julho de 2020



OITO

( @João Alfaro)


       A profundidade dos teus olhos cansa-me.
      Sabê-los escuros e não conseguir penetrar (te) deixa-me em raivas, surdos desejos na alma, que se torna angústia do desconhecido.
      Vejo- te passar na noite e o passeio é um eterno caminho cujo fim não descortino, cujo princípio não adivinho.
       A imagem ou mistério é a tua, mas só os olhos sobressaem, só eles têm sentido, só eles são tempestade de mim.
     Quando penso em ti, penso no formato desses brilhos da tua face. Raramente o corpo te revela, apenas quando é frenético de música ou lânguido de paixão. No entanto, sei-te o contorno dos dedos, o tamanho do pulso e a lisura das costas. Também a humidade, que é o mel da tua boca, eu vejo.
       Fecho os olhos assim, que te quero meu.


Maria Luís Koen





Memórias da Aldeia



14.

A árvore do avô e da avó






 (João Batista Nunes)
(António Nunes da Rosa)



       O avô tinha um irmão, cujo apelido era diferente. Pelas fotos são parecidos. O João e o António. Em comum o nome Nunes, que não é o sobrenome. O porquê, não sei.
     O avô João Batista Nunes e o irmão António Nunes da Rosa eram filhos de Francisco Dionísio e de Nazaré Nunes, cujos pais foram o José Mendes Dionísio e Maria Dias – pais do primeiro e Manuel Nunes da Rosa e Mariana Joaquina Rola – pais da segunda.
       O avô João Batista Nunes nasceu em 1907, no dia 6 de junho e os seus padrinhos foram António Nunes e Maria Nunes.  Faleceu com 93 anos de idade. O seu irmão António Nunes da Rosa nasceu em 31 Agosto de 1892 e faleceu em 1971.
      Os irmãos João e António casaram. O António com a Maria de Jesus Branco e o avô João com a Isabel da Cruz a 4 de setembro de 1929, tinha ele 21 anos.
     Ambos os irmãos tiveram filhos:  o António teve dois rapazes – o João Batista Nunes Branco que nasceu em 1926 e o José Maria Nunes que nasceu em 1922. Os sobrenomes, no entanto, continuam a baralhar-me.
 O avô João teve gémeos: o  Francisco da Cruz Nunes e a Rosária da Cruz Nunes que nasceram no dia 25 de outubro de 1930.
      Um dos filhos do António  (irmão do meu avô), o José Maria, casou com a Isaura, de quem teve uma filha, a Aura Celeste Nunes. O outro filho de António (irmão do meu avô), o João,  tomou-se de amores pela prima, a filha do seu tio João (meu avô), irmão do seu pai, e ela correspondeu.
      O amor entre os dois era grande e nada os demoveu. Após muita celeuma, o João e a Rosária casaram no dia 6 de setembro de 1950 e viveram felizes até ele morrer em 2007.
      Desse casamento nasceram dois filhos a quem chamo os primos que, por sua vez, também casaram e tiveram cada um dois filhos.
     O outro gémeo, filho do avô João Batista Nunes, o Francisco, casou com a Rosalina e teve duas filhas. A primeira teve dois filhos .
     Voltando atrás, aos dois irmãos, ao meu avô João Batista Nunes e seu irmão António Nunes da Rosa,  foi-me contado pelo primo mais velho e também escrito por ele no ORACIUS, que os irmãos eram diferentes na personalidade. Enquanto o João era o homem da pedra e do martelo e bom contador de histórias, o António gostava de ler, de números e de improvisar quadras e, quando a carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian passava na aldeia, era uma alegria.
     Desta árvore da parte do avô, nada mais sei. Talvez o primo mais novo  saiba pois elabora a árvore da família.
     


 (João Batista Nunes Branco)
 (José Maria Nunes)
 (Francisco da Cruz Nunes)
 (Rosária da Cruz Nunes)
(Aura Nunes)


      A avó Isabel, que nasceu no dia 27 de julho de 1908,  teve como pais Ernesto Dias Delfim Delgado e Rosária Jorge Mendes (meus bisavós).  Talvez por isso tenha decidido dar à filha o nome de sua mãe: Rosária.
     Teve como padrinhos António da Cruz Granchinho e Isabel de Cruz Granchinha.
     Faleceu com 84 anos.

     Mais haverá a dizer sobre estas árvores mas no momento, há pesquisa a fazer. Do que for descoberto, aqui será acrescentado.



 Isabel da Cruz Nunes)
(Os pais e os filhos gémeos)



Maria Luís Koen


quarta-feira, 29 de julho de 2020