Memórias da Aldeia
8. A Matança
(sopa de cachola)
Na aldeia quase todos os habitantes tinham
horta e animais: galinhas, patos, coelhos, cabras, ovelhas, vacas e porcos. O
meu avô tinha galinhas, coelhos, patos, cabras e porcos. Depois da engorda, vinha a época das
matanças. Geralmente era em janeiro ou fevereiro. Às vezes no Natal. Estava frio. Vinham os
filhos, os netos e os vizinhos também.
A primeira recordação que tenho, é dorida.
Ir para um grande espaço e ouvir guinchos alucinantes de um animal em
sofrimento, foi algo que nunca esqueci. Era pequena na altura. Mãos nos ouvidos
para tapar o som que não queria ouvir. O porco preso, os homens, vários, a
segurá-lo, o grito lancinante do animal e o meu, para não ouvir o dele.
Mas, já maior e noutro espaço – no quintal
da casa da tia e depois na casa do boqueirão - os guinchos foram iguais e a recordação dorida,
mantém-se.
Preparado o local onde o animal ia ser
colocado, também tinha que haver homens em número suficiente, cordas para o
segurar e pendurar, faca para o matar, carqueja para o chamuscar e lenha para o
cozinhar. As mulheres também preparavam a matança: a avó e a tia buscavam
alguidares de barro que iriam receber as carnes que por elas iriam ser
temperadas bem como os alguidares que receberiam as tripas do porco e o sangue
ainda quente.
O avô e outros homens iam buscar o porco à
pocilga, que traziam para o local onde iria ser morto. Era atado, vários homens
o seguravam- o avô, os primos já homens, o tio, o pai, às vezes mais um ou dois
e, era depois morto com uma grande faca espetada no coração. A imagem dos guinchos e do espernear do porco
mantém-se viva. A faca espetada no
coração, o alguidar em baixo a receber o sangue quente, que a tia ou a avó
mexiam continuamente. Com ele fazia-se a sopa de cachola comida ao almoço e posteriormente
as morcelas.
O porco
era então chamuscado com carqueja a arder. Ainda sinto
o cheiro a queimado nas narinas. Depois de chamuscado era raspado com uma faca
e lavado.
Eram sempre dias de grande agitação e festa
familiar.
Para o matar havia vários homens, embora
apenas um o fizesse, para o levantar e pendurar no quarto da desmancha, outros
tantos.
Esse quarto tinha um grande gancho preso
ao teto. Era aí que o porco era pendurado, já chamuscado, raspado e lavado. Ali
ficava a escorrer. O avô, então, abria o
porco de alto a baixo para tirar as tripas e o estômago para um lado e os rins,
o fígado, os pulmões e o coração para outro alguidar.
Havia, ainda, muito a fazer. Limpar o
espaço onde o animal tinha sido morto, preparar o almoço. O lume de chão já
tinha brasas, pronto para se assarem umas febrinhas só com sal ou o rabo do
porco. As primeiras. Preparavam-se as laranjas que acompanhavam a sopa de
cachola. Havia queijo que cheirava mal e vinho feito pelo avô. Pão caseiro . Febras
e carne de porco assada na brasa. Do resto do almoço, não lembro.
A matança não acontecia só num dia. Um dia
não chegava para tanta azáfama.
As mulheres tinham a incumbência das
tripas do porco. Estas eram muito bem lavadas e esfregadas pela avó, mãe, tia e
outras mulheres numa ribeira com água corrente. Não falo do cheiro. Também não
gostava dessa parte. Era um trabalho meticuloso pois se assim não fosse, tudo o
que se seguiria ficava estragado. Ficavam guardadas, com sal e não sei se mais
alguma coisa, até serem utilizadas. O intestino grosso para umas carnes e o
delgado para outros. No porco tudo se aproveitava.
Só o avô desmanchava o porco. Tenho a
imagem bem presente do porco pendurado e
mais tarde, não sei se já no chão, ele a escolher e cortar: os presuntos,
orelha, pedaços para isto e para aquilo, cada pedaço no seu alguidar, o
toucinho. Daí viriam as morcelas, os paios, as cacholeiras, o bucho,
farinheiras, linguiças. No entretanto,
havia sempre umas febrinhas para assar no lume de chão.
Desmanchado o porco – tudo se aproveitava
– voltava o trabalho das mulheres. A avó, a tia e outras mulheres da aldeia
cortavam as carnes em pequenos pedaços e temperavam. Este trabalho era feito com a
porta fechada. Sentadas nas pequenas cadeira de palha, migavam, temperavam,
mexiam, preparavam. E se alguma mulher, que não elas, entrasse no quarto das
carnes, olhavam diretamente nos olhos das pessoas, a saber se estavam com
sangue ou não, para não estragar a carne.
Preparada a carne, deixada a tomar sabor
por não sei quantos dias, havia outros preceitos a fazer: escolher o que por na
salgadeira, preparar o fumeiro da chaminé.
Depois havia que encher as tripas lavadas
e preparadas. Era trabalho das mulheres, outra vez. Parece que as estou a ver.
E a ver-me. E à minha irmã. E à minha mãe. À avó e à tia. Ao pé da grande
chaminé. Os alguidares com as carnes, o cheiro a cominhos, as tripas, os funis
para poder encher as tripas, o cordel para as atar. O dedo polegar a trabalhar
ou um pauzinho. Eram depois fervidas em água, as morcelas naquele dia as outras
carnes noutro, que depois se colocavam nas varas do fumeiro: os presuntos, as
cacholeiras, as morcelas de sangue, os paios... e ali ficavam até estarem
prontos a comer.
Lembro as conversas e os cheiros.
Maria Luís Koen